domingo, 13 de julho de 2025

Palavras não bastam– Dorrit Harazim

O Globo

Por ora, prosseguem sem trégua as duas guerras que o presidente americano prometera encerrar em 24 horas

Benjamin Netanyahu retornou como queria de sua terceira visita a Donald Trump: de mãos vazias, sem cessar-fogo nem precisar interromper o esmagamento do que resta de vida possível em Gaza. Como mimo de consolação ao anfitrião, entregou-lhe apenas uma estapafúrdia indicação ao Nobel da Paz, honraria que Trump persegue há anos com cobiça obsessiva. É torcer para Trump não conseguir comprar a honraria num futuro distópico, quando integridade pessoal e valores universais tiverem se tornado sucata.

Por ora, prosseguem sem trégua as duas guerras que o presidente americano prometera encerrar em 24 horas. Se alteração houve nestes sete primeiros meses da era Trump 2, foi para pior, tanto na Ucrânia quanto, sobretudo, no inferno a céu aberto de Gaza.

Dias atrás coube a mais de 170 entidades humanitárias globais finalmente levantar a voz. Entre elas, por ironia, várias laureadas com um autêntico Nobel da Paz, além de um balaio de organizações humanitárias do próprio Estado de Israel, como a Combatentes pela Paz, a Yesh Din, e a Médicos por Direitos Humanos – Israel.

— Hoje — diz o manifesto — os palestinos em Gaza enfrentam uma escolha impossível: morrer de fome ou arriscar ser morto a tiros.

O texto refere-se ao amadorismo selvagem do sistema de distribuição de comida imposto por Israel e Estados Unidos ao castigado enclave, em substituição ao trabalho desempenhado há décadas por entidades internacionais conhecedoras daquela terra e do povo ali confinado.

— É preciso rejeitar a falsa opção entre uma distribuição de comida sob controle militar, mortal, e uma negação total de ajuda — diz a denúncia.

Também faz um chamamento à comunidade internacional para pôr fim ao “cerco sufocante” e à “violação de princípios humanitários” impostos a Gaza.

São palavras em tom edificante, mas são apenas palavras. É baixo o custo individual de apontar para a caçada humana que ocorre à luz do dia em pleno século XXI. Indignar-se, no caso, costuma ser fácil e barato — inclusive neste espaço. Difícil é migrar do conforto da indignação para o patamar mais exigente de correr riscos físicos ou materiais, pessoais ou afetivos, profissionais ou morais em defesa do que aprendemos o que é ser humano.

Enquanto isso, o lado perverso dessa equação dispensa palavras e segue planejando o impensável. Entre outubro de 2024 e maio deste ano, a empresa americana Boston Consulting Group (BCG) participou da elaboração do malfadado projeto “Aurora”, codinome do sistema de distribuição de comida que já resultou em mais de 500 mortos e 4 mil feridos, segundo dados do Ministério da Saúde de Gaza. Diante das cenas de horror terminal em condições degradantes a que os palestinos foram submetidos na busca do que comer, o próprio BCG desligou-se da empreitada.

Mas isso não é tudo. Segundo revelações exclusivas do Financial Times, o grupo também havia elaborado modelos financeiros para o pós-guerra em Gaza, com uma estimativa de custos para a transferência de centenas de milhares de palestinos do enclave. Um dos modelos apresentados ao governo Netanyahu estimou em mais de meio milhão o número de civis que deixariam Gaza, ao custo de US$ 9 mil por cabeça, ou US$ 5 bilhões no total. Outro modelo de “realocação voluntária” inclui um “kit partida” de US$ 5 mil, além de quatro meses de aluguel subsidiado e um ano de ajuda alimentar. Pela estimativa apresentada nesse cenário, 25% da população aceitaria abandonar seu chão, e dois terços desses expatriados jamais retornariam a Gaza.

É espantoso que o governo de um povo tão enraizado em sua história, sobrevivência e apego à terra como o de Israel seja tão míope em relação ao enraizamento de outro povo, o palestino, a sua história e capacidade de sobreviver. Uma coluna só pode ser quebrada se já estiver curvada, diz o ditado.

Voltemos às palavras, no caso nada fáceis, do médico irlandês Michael Ryan, que foi cirurgião de traumatologia por décadas e hoje atua como diretor executivo do Programa de Emergências da Organização Mundial da Saúde. Expressou sua frustração com vozeirão carregado, dirigindo-se a repórteres na sede da OMS em Genebra:

— Estamos a quebrar os corpos e as mentes das crianças de Gaza. É horrendo. Como médico e como quem vê mais de mil crianças mutiladas e milhões de crianças com lesões graves de que jamais se recuperarão, estou com raiva de mim por não fazer o bastante, estou com raiva de vocês e do mundo. Isso tudo é uma abominação.

 

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