O Globo
Por ora, prosseguem sem trégua as duas
guerras que o presidente americano prometera encerrar em 24 horas
Benjamin Netanyahu retornou como queria de
sua terceira visita a Donald Trump:
de mãos vazias, sem cessar-fogo nem precisar interromper o esmagamento do que
resta de vida possível em Gaza. Como mimo de
consolação ao anfitrião, entregou-lhe apenas uma estapafúrdia indicação ao
Nobel da Paz, honraria que Trump persegue há anos com cobiça obsessiva. É
torcer para Trump não conseguir comprar a honraria num futuro distópico, quando
integridade pessoal e valores universais tiverem se tornado sucata.
Por ora, prosseguem sem trégua as duas guerras que o presidente americano prometera encerrar em 24 horas. Se alteração houve nestes sete primeiros meses da era Trump 2, foi para pior, tanto na Ucrânia quanto, sobretudo, no inferno a céu aberto de Gaza.
Dias atrás coube a mais de 170 entidades
humanitárias globais finalmente levantar a voz. Entre elas, por ironia, várias
laureadas com um autêntico Nobel da Paz, além de um balaio de organizações
humanitárias do próprio Estado de Israel, como a
Combatentes pela Paz, a Yesh Din, e a Médicos por Direitos Humanos – Israel.
— Hoje — diz o manifesto — os palestinos em
Gaza enfrentam uma escolha impossível: morrer de fome ou arriscar ser morto a
tiros.
O texto refere-se ao amadorismo selvagem do
sistema de distribuição de comida imposto por Israel e Estados Unidos ao
castigado enclave, em substituição ao trabalho desempenhado há décadas por
entidades internacionais conhecedoras daquela terra e do povo ali confinado.
— É preciso rejeitar a falsa opção entre uma
distribuição de comida sob controle militar, mortal, e uma negação total de
ajuda — diz a denúncia.
Também faz um chamamento à comunidade
internacional para pôr fim ao “cerco sufocante” e à “violação de princípios
humanitários” impostos a Gaza.
São palavras em tom edificante, mas são
apenas palavras. É baixo o custo individual de apontar para a caçada humana que
ocorre à luz do dia em pleno século XXI. Indignar-se, no caso, costuma ser
fácil e barato — inclusive neste espaço. Difícil é migrar do conforto da
indignação para o patamar mais exigente de correr riscos físicos ou materiais,
pessoais ou afetivos, profissionais ou morais em defesa do que aprendemos o que
é ser humano.
Enquanto isso, o lado perverso dessa equação
dispensa palavras e segue planejando o impensável. Entre outubro de 2024 e maio
deste ano, a empresa americana Boston Consulting Group (BCG) participou da
elaboração do malfadado projeto “Aurora”, codinome do sistema de distribuição
de comida que já resultou em mais de 500 mortos e 4 mil feridos, segundo dados
do Ministério da Saúde de Gaza. Diante das cenas de horror terminal em
condições degradantes a que os palestinos foram submetidos na busca do que
comer, o próprio BCG desligou-se da empreitada.
Mas isso não é tudo. Segundo revelações
exclusivas do Financial Times, o grupo também havia elaborado modelos
financeiros para o pós-guerra em Gaza, com uma estimativa de custos para a
transferência de centenas de milhares de palestinos do enclave. Um dos modelos
apresentados ao governo Netanyahu estimou em mais de meio milhão o número de
civis que deixariam Gaza, ao custo de US$ 9 mil por cabeça, ou US$ 5 bilhões no
total. Outro modelo de “realocação voluntária” inclui um “kit partida” de US$ 5
mil, além de quatro meses de aluguel subsidiado e um ano de ajuda alimentar.
Pela estimativa apresentada nesse cenário, 25% da população aceitaria abandonar
seu chão, e dois terços desses expatriados jamais retornariam a Gaza.
É espantoso que o governo de um povo tão
enraizado em sua história, sobrevivência e apego à terra como o de Israel seja
tão míope em relação ao enraizamento de outro povo, o palestino, a sua história
e capacidade de sobreviver. Uma coluna só pode ser quebrada se já estiver
curvada, diz o ditado.
Voltemos às palavras, no caso nada fáceis, do
médico irlandês Michael Ryan, que foi cirurgião de traumatologia por décadas e
hoje atua como diretor executivo do Programa de Emergências da Organização
Mundial da Saúde. Expressou sua frustração com vozeirão carregado, dirigindo-se
a repórteres na sede da OMS em Genebra:
— Estamos a quebrar os corpos e as mentes das
crianças de Gaza. É horrendo. Como médico e como quem vê mais de mil crianças
mutiladas e milhões de crianças com lesões graves de que jamais se recuperarão,
estou com raiva de mim por não fazer o bastante, estou com raiva de vocês e do
mundo. Isso tudo é uma abominação.
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