Folha de S. Paulo
Cada deputado, um Justo Veríssimo de Chico
Anysio, embolsa por mês R$ 341.297, e ao pobre eleitor é dado salário mínimo de
R$ 1.518
Muito já se escreveu sobre humor, mas nada
sobre seu poder antecipatório. Quando Freud diz que se trata de "um dom precioso e
raro" (em "O Chiste e suas Relações com o Inconsciente"), adianta
que pode ser também álibi para uma verdade que não podia ser expressa. No
psiquismo, o inconsciente abre caminho pelo riso, sem o sofrimento dos
sintomas, para uma realidade recalcada. Mas antecipar é virtude desconhecida ou
deixada de lado.
Oportuno, assim, evocar Justo Veríssimo, personagem do saudoso Chico Anysio nos anos 90, prefiguração hilária de um deputado que abominava desprovidos da sorte, trabalhadores, o povo em geral. "Eu quero que o pobre se exploda!", seu bordão. A criação televisiva ia ao encontro de uma ácida denominação, recorrente na coluna de Stanislaw Ponte Preta (pseudônimo de Sérgio Porto), década de 60: "Depufede".
Isso existia ainda em grau concebível de
indecência quando Lula em 1993
resumiu sua experiência parlamentar numa frase lapidar sobre a composição do
Congresso: "Uma
maioria de 300 picaretas cuidando apenas de seus próprios interesses. E não
caíram de paraquedas, foram eleitos". Havia, portanto, bases
político-sociais para que o humorismo antecipasse o choque de hoje ante um
Congresso, necessário à República, mas por inteiro alienado da representação
popular. Representação definida apenas pelo conceito numérico da votação é uma
falácia, avessa à real delegação de classe social.
Focado na centralização presidencial, o
eleitorado é letárgico frente ao Legislativo. Mas agora o chorume moral do
"depufede" chega às narinas populares. E assim surge a Frente Povo sem Medo, que prega a taxação dos bilionários,
junto com a redução dos salários de deputados e senadores. Cada Justo Veríssimo
embolsa por mês um total de R$ 341.297 (R$ 47.700 de salário, R$ 94.300 de
verba de gabinete, R$ 53.400 de auxílio paletó, R$ 5 mil de combustível, R$ 22
mil de auxílio moradia, R$ 59 mil de passagens aéreas, R$ 17.997 de auxílio
saúde, R$ 12.100 de auxílio educação, R$ 16.400 de auxílio restaurante, R$
13.400 de auxílio cultural). Para o eleitor pobre, um salário mínimo de R$ 1.518. Logo, que se
exploda.
Mas a questão não se contém nesse mensalão
obsceno. A derrama das emendas é tanto rombo orçamentário descontrolado quanto sintoma de
surda conspiração contra a governabilidade executiva. Decorre das
circunstâncias eleitorais, que seriam em princípio pretexto de reorganização da
ordem do Estado. Eleições parlamentares, entretanto, passaram a favorecer a desorganização
da ordem liberal, a saber, obstrução da participação democrática a partir da
ideia de representação. Assim como os partidos (exceto talvez os pequenos) não
espelham fração de classe nenhuma, a eleição de deputados e senadores não
constitui forma de democracia direta pelo voto. É autonomia patrimonialista da
atividade política.
Deste modo, o poder de legislar, moldado cada
vez mais pelo princípio do vazio social, abre-se ao pleno dos interesses
pessoais. Emendas sem transparência são mecanismos de reeleição
e manutenção de feudos regionais, assim como instrumentos de chantagem contra
um Executivo acuado. Nada menos que uma modulação do golpismo permanente,
modernizado em 2016. Para Justo Veríssimo se atualizar, só lhe faltam um punhal
verde e amarelo nos porões, boné de Trump nos palanques e pitadas de inglês
para conspirar lá fora contra o país dos pobres.
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