O Globo
Cobrar mais de quem ganha mais não é dividir
o país, mas sim elevar a justiça tributária e a qualidade da democracia
Em um país profunda e historicamente desigual
é um bálsamo ouvir no discurso do cineasta Walter
Salles que a democracia exige justiça, e parte desse objetivo se
atinge buscando a justiça tributária. Houve uma distorção deste debate
recentemente. O tema foi tratado como, se de um lado, houvesse um Congresso
virtuoso, a favor de todos os contribuintes e, do outro lado, a sanha de um
governo cobrador de impostos de todos os cidadãos. Cobrar mais impostos de quem
tem renda maior não é dividir o país.
Os fatos estão bem distantes das mistificações feitas na guerra política. É preciso ter sempre em mente que o peso dos impostos é distribuído desigualmente no Brasil e de forma meio anárquica. Os grupos de interesses conquistaram ao longo do tempo o direito de que setores, áreas, produtos, aplicações, atividades pagassem menos impostos do que a maior parte da sociedade. Os pesos da carga tributária são mal distribuídos.
O IOF não é um bom imposto para se falar em
justiça tributária, porque ele contamina o custo de todas as operações
financeiras, de qualquer valor. As mudanças feitas no projeto se concentraram
em operações que não são feitas pelos pobres. Contudo, há outros exemplos de
propostas que o governo fez nas quais fica fácil enxergar a justiça tributária.
O projeto em que esse propósito fica evidente
é o PL 1087 que isenta quem ganha até R$ 5 mil, compensando essa renúncia
fiscal com a cobrança de um imposto mínimo de até 10% de quem tenha renda não
tributada. O projeto beneficia 14 milhões de pessoas e cobra imposto de 140 mil
pessoas. Dito de outra forma, se essas 140 mil pagarem esse imposto mínimo será
o suficiente para cobrir o custo de isentar 14 milhões de contribuintes. Esse
projeto vai à votação nessa semana. Quem tem renda não tributada de R$ 600 mil
por ano ou mais passaria a pagar em alíquota crescente até chegar a 10% para
quem ganha mais de R$ 1, 2 milhão por ano. Isso, repetindo, caso essa renda
seja não tributada ou pague imposto efetivo abaixo do que está previsto no
projeto.
O
deputado Arthur Lira disse que havia uma sobra de dinheiro e ameaçou reduzir a
alíquota de 10% para 8%. Estava errado, porque 10% é bem menos do que
os 27,5% pagos na fonte por assalariados que tenham a mesma renda. Acabou
decidindo melhorar a proposta para a base em vez de poupar o topo. Ampliou de
R$ 7 mil para R$ 7.350 a renda de quem será beneficiado com a redução
decrescente do imposto de renda.
— A democracia também exige algo que é
justiça. Bernard Appy (o secretário especial de Reforma Tributária) estava aqui
em cima e eu acho que ele nos lembra que a gente tem a chance de dar um passo
importante hoje na construção de um país justo e igualitário, corrigindo as
distorções de um sistema que, como a gente sabe, cobra mais de quem tem menos.
Então eu queria deixar aqui todo o meu apoio à tributação progressiva. O meu
apoio à taxação das grandes fortunas e à democracia com justiça tributária.
O país precisa ter essa discussão de forma
serena e informada. O Brasil não é desigual por acaso. É uma longa construção.
Uma grande parte dela deriva da distribuição desigual dos tributos. Na MP 1303,
a proposta foi que os sites de apostas, as bets, paguem mais impostos, que as
grandes fintechs tenham uma redução do benefício fiscal e que os títulos hoje
isentos passem a pagar.
Houve uma corrida, nos últimos anos, para
esses títulos que não pagam imposto ou que são incentivados, como LCI, LCA,
CRI, CRA e debêntures de infraestrutura. O resultado é que os aplicadores
nesses papéis deixam de pagar R$ 40 bilhões ao ano. Muitas vezes uma renda que
é isenta na origem, como dividendos, é aplicada nesses papéis isentos,
escalando o benefício para o mesmo indivíduo.
No Brasil, tributa-se mais o consumo do que a
renda e o patrimônio. A renda de uma pessoa pobre é toda gasta no consumo, por
isso ela chega a pagar 32% de imposto. Apenas uma parte da renda dos ricos vai
para consumo. O resto vira investimento. Assim, pagam muito menos imposto. Nada
disso exime o governo de controlar suas despesas, fazer ajuste fiscal e evitar
a escalada da dívida pública. Mas eliminar benefícios e isenções tributárias é
também cortar gastos.
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