Mundo ganha com acordo Mercosul-EU
O Globo
Num momento de avanço do protecionismo,
tratado resgata benefícios do livre-comércio
O fim das negociações do acordo entre Mercosul e União
Europeia (UE) é um passo decisivo para o Brasil. Agora, além de
trâmites burocráticos, o único risco que paira sobre a parte comercial do
tratado — a mais relevante — são as pressões de bastidor para que seja
rejeitado pelo Conselho Europeu ou pelo Parlamento Europeu. Mas, apesar da
resistência empedernida de uns poucos países como França ou Polônia, é pouco
provável que a iniciativa de 25 anos naufrague depois de tanto esforço.
Trata-se de uma enorme conquista para o Mercosul, para a UE e para o livre-comércio, tão combalido com o avanço do protecionismo. Ao longo do tempo, o impacto em geração de riqueza e crescimento deverá ser significativo. Apesar das mudanças em relação à versão preliminar de 2019, o acordo representa um avanço substantivo, resultado da persistência do Itamaraty ao longo de administrações de todas as inclinações ideológicas.
A conjuntura global dá ao acordo um sentido
especial. Os americanos elegeram Donald Trump com uma plataforma ainda mais
protecionista que no primeiro mandato. Mesmo antes de assumir, ele ameaça impor
tarifas para obter concessões em temas como imigração ou drogas. É possível
que, uma vez de volta à Casa Branca, reconsidere seus planos, pois a economia
americana teria muito a perder com restrições a importações, que resultam
invariavelmente em mais inflação e menos empregos. Tratando-se de Trump, tudo é
possível. Paradoxalmente, a perspectiva de isolamento americano ajudou a
destravar o acordo Mercosul-UE.
Do lado do Mercosul, o maior beneficiado será
o agronegócio, que ganhará acesso ao gigantesco mercado europeu. O setor
europeu é protegido, sustentado há anos por subsídios. Na média, as tarifas da
UE até que são baixas. O problema são as exceções, que afetam um terço das
importações. Do lado europeu, o objetivo é abrir mercado a vendas da indústria.
A tarifa de importação média para manufaturados no Brasil, maior mercado do
Mercosul, é 11,7%. Qualquer redução para os produtos da UE será vantagem em relação
aos demais concorrentes.
Como é comum em negociações dessa magnitude,
as medidas deverão ser adotadas em prazos longos, de modo a não dar um
solavanco repentino na produção local. Mas os passos vão na direção do
livre-comércio. O acordo também inclui desenvolvimento sustentável, defesa da
concorrência, compras governamentais, temas institucionais e cooperação
política.
Apenas os capítulos políticos exigem
aprovação no Parlamento dos 27 países da UE. Toda a parte comercial poderá
entrar em vigor assim que aprovada no Conselho Europeu — que reúne os chefes de
Estado — e no Parlamento Europeu. Feito isso, para valer no Brasil, bastará o
acordo ser aprovado pelo Congresso Nacional, sem a necessidade de esperar o
endosso legislativo nos demais países do Mercosul.
Nas últimas duas décadas, o livre mercado
virou bode expiatório de todo tipo de frustração. A evidência empírica mostra,
porém, que economias abertas têm desempenho superior ao das fechadas. Podendo
importar mais barato, um país dirige seus recursos às atividades em que é mais
produtivo. O crescimento lento do Brasil, país historicamente fechado, é prova
das limitações do discurso protecionista. A conclusão do acordo Mercosul-UE é
uma bem-vinda correção de rumo.
Profusão de obras paralisadas envergonha
gestão pública brasileira
O Globo
Relatório do TCU constatou haver quase 12 mil
projetos interrompidos, mais da metade dos contratos federais
Deveria causar constrangimento a gestores e
políticos o relatório do Tribunal de Contas da União (TCU)
que aponta a existência de 11.941 obras públicas paralisadas em todo o país,
situação considerada “alarmante”. Não só pela quantidade absurda de construções
abandonadas em 5.570 municípios, mas também porque o número representa mais da
metade (52%) dos contratos em execução com recursos federais.
A maioria (73%) se concentra nas áreas de
saúde (4.580) e educação (4.094), que costumam estar entre as maiores
preocupações dos brasileiros. São unidades básicas de saúde, hospitais de
pronto atendimento, escolas, creches e outras obras do tipo. A elas se juntam
outras não menos importantes nos setores de habitação, mobilidade, saneamento,
esportes, infraestrutura e
defesa civil. Os estados com mais obras empacadas são Maranhão (1.232), Bahia
(972) e Pará (938), onde elas chegam a superar aquelas em execução.
Esses monumentos à incúria já sugaram R$ 9
bilhões em recursos públicos. Demandariam mais R$ 20 bilhões para ser
concluídos, nos cálculos do TCU. É verdade que o montante não é desprezível,
mas obras inacabadas não servem rigorosamente para nada, a não ser acumular
água parada, atrair doenças, degradar a vizinhança e desperdiçar o dinheiro do
contribuinte. Se são projetos relevantes, seria mais racional levá-los adiante,
uma vez que gerariam emprego, renda e benefícios às comunidades. Se não são,
nem deveriam ter começado. E caberia responsabilizar quem começou.
O relatório também revela alguma melhora. Ao
menos 1.169 obras que estavam paradas em 2023 foram retomadas neste ano. Outras
5.463 foram concluídas desde o último levantamento do TCU. Mas a fábrica de
construções inacabadas continua a funcionar. Em 2024, 2.180 foram
interrompidas.
É um contrassenso — e uma insensibilidade —
manter paralisadas obras de escolas, creches, unidades de saúde e moradias
enquanto crianças deixam de estudar por falta de vagas, mães ficam privadas de
trabalhar por não ter onde deixar os filhos, unidades de saúde não dão conta da
demanda, e famílias arriscam a vida em habitações precárias.
Muitos motivos impedem o bom andamento das
obras. Projetos malfeitos, licitações falhas, empresas ineptas, problemas na
alocação de verbas, falta de continuidade na administração pública, e por aí
afora. Um gestor público que herda uma obra do antecessor não se sente na
obrigação de acabá-la, porque pensa apenas em seu projeto político, e não no
interesse da população. Prefere começar uma nova para deixar sua marca. É
preciso mudar esse comportamento. Independentemente dos motivos das
paralisações, governos deveriam se empenhar para concluir obras paradas antes
de iniciar outras. Fariam bem aos cidadãos e aos combalidos cofres públicos.
Acordo Mercosul-UE é alento ante escalada
protecionista
Folha de S. Paulo
Expectativa de mais restrições ao comércio
sob Trump dá impulso a pacto histórico para maior integração entre os blocos
Neste momento de redesenho das cadeias
produtivas globais, de transição energética e de escalada do protecionismo
nos Estados
Unidos, é especialmente digno de celebração o
entendimento político enfim firmado nesta sexta-feira (6) para maior
integração econômica e comercial entre o Mercosul e
a União
Europeia.
Por mais resistências que haja, sobretudo no
continente europeu, o Acordo de
Parceria entre o Mercosul e a UE assinado em Montevidéu compreenderá
um mercado conjunto de US$ 22 trilhões —17% da economia mundial—
e de 750 milhões de consumidores em potencial.
Para além da liberalização gradual de mais de
90% do comércio birregional e da alavancagem de investimentos, o arcabouço
político do pacto salvaguarda as democracias e, na seara ambiental, os
compromissos nacionais com o Acordo de
Paris.
Há de ser missão prioritária dos dois lados
do Atlântico cuidar para que tais compromissos não sejam esquecidos —como se
deu sob Jair
Bolsonaro (PL), quando o avanço
do desmatamento no
Brasil intensificou a má vontade da UE com o acordo— e para impedir a
reabertura de seus termos, como ocorreu em 2023.
O processo decerto vai demandar alguma
paciência, seja nos procedimentos de revisão jurídica e de tradução para 24
idiomas, seja na delicada costura de Bruxelas para
levar racionalidade às nações europeias avessas ao acordo, primordialmente
a França.
As indicações sobre a maioria já consolidada
de votos favoráveis no Conselho e no Parlamento europeus, assim como nos
legislativos nacionais do Mercosul, permitem otimismo cauteloso. É importante
que o acordo seja posto em prática com a maior celeridade possível, dado o
horizonte nebuloso para a economia global.
Como afirmou em Montevidéu a presidente da
Comissão Europeia, Ursula von
der Leyen, o pacto cria um ambiente de ganhos mútuos entre os blocos
e responde aos "crescentes isolamento e fragmentação" do comércio
mundial, bem como a necessidades políticas.
Entraves acrescidos desde 2023, quando
retomadas as negociações, acabaram superados. A exigência brasileira de
restrições ao acesso dos europeus às compras governamentais foi parcialmente
acatada. A imposição de retaliações a desrespeito às regras, sobretudo
ambientais, obteve o aceite do Mercosul.
Certamente, o esperado agravamento do
protecionismo americano, sob a futura presidência de Donald Trump,
deu o impulso político para o ponto final de uma negociação que se alongou por
mais de duas décadas.
Mesmo que os achaques do subvencionado setor
agrícola e da ultradireita da União Europeia ainda não tenham sido superados, o
pragmatismo prevaleceu em boa hora. Há que levá-lo adiante e, a partir dele,
fazer com que o Mercosul se converta em plataforma de integração com o restante
do mundo.
Justiça confusa sobre trabalho por
aplicativos
Folha de S. Paulo
Decisões conflitantes a respeito do vínculo
de emprego nesses serviços cria insegurança jurídica nociva à economia
Duas decisões do Tribunal Regional do
Trabalho da 2ª Região, em São Paulo,
revelam a barafunda da Justiça brasileira em relação ao trabalho de entrega e
transporte por aplicativos, que pode prejudicar o ambiente de negócios no país.
Na quinta-feira (5), a 14ª Turma do TRT-2 condenou
a plataforma de delivery Ifood a pagar multa de R$ 10 milhões, por
considerar que deve haver vínculo pela CLT entre entregadores e a empresa.
Mas, um dia antes, a 3ª Turma do mesmo
tribunal decidiu que não há
relação empregatícia entre motoristas e o aplicativo 99.
Tal entendimento, ao contrário do anterior,
alinha-se com o da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, que em dezembro de
2023 não reconheceu vínculo entre um motorista e a plataforma Cabify.
Segundo os ministros, reconhecê-lo
contrariaria casos precedentes da corte que validam modelos de trabalho não
ligados à CLT. Desde 2021, o STF decidiu
assim em ao menos cinco ações.
A justificativa é que aplicativos são
mediadores e motoristas têm liberdade para trabalhar quando quiserem e
estabelecer vínculos com outras empresas do mesmo ramo ou de outras áreas.
Pesquisa do Datafolha de
2023, encomendada por Ifood e Uber,
mostrou que 49% dos motoristas e entregadores em plataformas têm outras fontes
de renda e que 75% deles preferem o "modelo atual", sem carteira
assinada.
Discrepâncias entre instâncias da Justiça
criam insegurança jurídica nefasta a investimentos em setores inovadores da
economia.
O governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT),
com sua visão sindicalista, contribuiu
para a confusão ao propor, em fevereiro, projeto de lei que,
apesar de não instituir contratação de motoristas de aplicativo pela CLT,
exigia contribuição ao INSS,
remuneração mínima e limitação da jornada.
O projeto está parado no Congresso, por
sorte, dadas as inconsistências oriundas do açodamento e da politização da
pauta.
Portanto, fez bem o STF ao aplicar, em
fevereiro, repercussão geral à futura decisão sobre um caso que trata do
vínculo empregatício de profissionais que atuam pelo Uber, o chamado Tema 1291.
Na segunda e na terça (9 e 10), haverá
audiências públicas no Supremo com a participação de mais de 50 especialistas e
representantes de associações, sindicatos,
empresas e do Judiciário.
Por óbvio há problemas que precisam ser
avaliados, como é o caso da contribuição previdenciária. Mas a modernização das
leis trabalhistas deve se dar em bases técnicas e, principalmente, realistas,
adequadas às transformações tecnológicas do século 21.
Finalmente, Mercosul e UE apertam as mãos
O Estado de S. Paulo
Na era de ‘desglobalização’, blocos
privilegiam o multilateralismo. Mas, além dos esforços pela ratificação do
acordo, o Brasil tem muito a fazer em termos de integração econômica
Chegou ao fim a novela do Acordo de
Associação Mercosul-União Europeia. Ou quase. O que se encerrou ontem, na
Cúpula do Mercosul, em Montevidéu, foi uma longa etapa de 25 anos de
negociações. Abre-se agora o capítulo final da ratificação pelos países-membros
dos dois blocos, com espaço para muito drama. O maior foco de resistência vem
de países europeus liderados pela França. Com base na experiência de acordos
anteriores, estima-se que esse processo possa levar cerca de quatro anos.
De todo modo, o anúncio da conclusão do
acordo é um marco. É o primeiro acordo do mundo que une dois blocos regionais,
o primeiro acordo abrangente do Mercosul e o maior da União Europeia (UE). Será
a maior parceria de comércio e investimento do mundo, abrangendo cerca de 700
milhões de pessoas e um PIB conjunto de US$ 22 trilhões.
Isso se for ratificado. Nesta semana, o
presidente francês, Emmanuel Macron, voltou a classificar o acordo como
“loucura”. A França tentará barrá-lo na Comissão Europeia arregimentando uma
minoria qualificada, ou seja, pelo menos quatro países do bloco que representem
mais de 35% de sua população. Ao menos caiu a máscara piedosa da proteção
ambiental, e agora nem sequer se disfarçam as reais motivações da recusa:
protecionismo puro e simples, no caso para produtores agrícolas.
É uma batalha a ser travada no campo da
diplomacia e, sobretudo, no campo da comunicação. O protecionismo, como sempre,
serve para privilegiar setores pouco produtivos à custa da totalidade dos
consumidores. Pelas contas de ambos os blocos, no geral o acordo trará grandes
benefícios mútuos para seus mercados.
Segundo a UE, o acordo resultará num aumento
do PIB de até US$ 15,8 bilhões para o bloco europeu e de US$ 12 bilhões para o
sul-americano. Para o Brasil, o Ipea projeta até 2040 um aumento de 0,46% no
PIB (cerca de US$ 9,3 bilhões), um crescimento de 1,49% dos investimentos e um
ganho de US$ 302 milhões na balança comercial. Em termos comparativos, o País
será mais beneficiado que a UE e seus parceiros no Mercosul.
Entre o processo de ratificação e
implementação, setores impactados terão algum tempo para se adaptar e melhorar
suas condições de competitividade. Essa lógica vale para o Brasil. Setores como
o de equipamentos elétricos e produtos farmacêuticos sofrerão impactos
negativos. No entanto, a indústria como um todo terá acesso a insumos e
tecnologias a custos menores. Setores mais competitivos, como o de autopeças,
poderão ampliar suas exportações. Daí o apoio de federações industriais, como a
CNI e a Fiesp.
Os ganhos comerciais tampouco são
desprezíveis. Mas em certa medida o acordo tem um valor institucional e
simbólico ainda maior. Vale ressaltar que não se trata apenas de um pacto
comercial, mas de uma associação estratégica. Ela “cria o quadro institucional
necessário para facilitar a cooperação numa vasta gama de áreas de interesse
mútuo, desde a proteção dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável
até a regulação da economia digital e a luta contra o crime organizado”,
apontou o representante da UE para Negócios Estrangeiros, Josep Borrell. “Esse
acordo reforçará as nossas relações não só entre governos e instituições, mas
também entre parlamentares, sociedade civil, empresários, estudantes,
universidades, cientistas e criadores.”
Numa época de irrupção de conflitos armados e
ameaças de protecionismo e guerras comerciais, intensificadas com a eleição de
Donald Trump nos EUA, os dois blocos marcam uma posição a favor do sistema
multilateral baseado em regras.
O Brasil e o Mercosul se orientam na direção
certa. Melhor será, contudo, se encararem o acordo menos como uma linha de
chegada e mais como um primeiro passo num longo caminho. É preciso recuperar
muito tempo perdido em termos de abertura comercial, cooperação institucional e
modernização produtiva. O Mercosul ainda é em grande medida um bloco
inoperante, e o Brasil ainda é um país muito fechado, juridicamente instável e
ruim para fazer negócios. Desde sexta-feira são um pouco menos. Mas ainda há
muito por fazer.
Um partido em estado de negação
O Estado de S. Paulo
Após a derrota nas eleições municipais,
cúpula do PT culpa as emendas parlamentares pelo triunfo do Centrão e evita uma
necessária autocrítica de seu papel na criação das emendas Pix
A cúpula do PT acredita ter descoberto o
motivo pelo qual seus candidatos tiveram desempenho pífio nas eleições
municipais deste ano. De acordo com reportagem publicada pelo Estadão, a
Executiva Nacional do PT avalia que as realizações do governo foram eclipsadas
pelas emendas parlamentares, cuja distribuição, na avaliação do partido,
privilegiou “máquinas municipais de aliados da base”, leia-se Centrão.
A resolução que traz essas conclusões ainda
passará pelo crivo do Diretório Nacional do PT, que se reunirá em Brasília
hoje, mas revela, desde já, o quanto o partido do presidente Lula da Silva gira
em círculos no diagnóstico de sua derrota eleitoral.
Ninguém nega que as emendas parlamentares
tenham sido extremamente relevantes nas eleições deste ano, e que o índice de
candidatos reeleitos esteja diretamente relacionado a essas transferências. Mas
o PT também foi bastante beneficiado pelo que chamou, na primeira versão da
resolução, agora modificada, de “republicanismo excessivo” na distribuição
dessas verbas bilionárias.
Atrás apenas do União Brasil e do PL, o PT
foi o terceiro que mais destinou verbas de emendas individuais na Câmara e no
Senado para prefeituras entre o início de 2021 e o fim de outubro deste ano,
segundo o Estadão.
De execução obrigatória, as indicações feitas
por parlamentares do PT somaram R$ 6,2 bilhões nesse período. Desse total, R$
4,6 bilhões foram enviados diretamente aos prefeitos pelos deputados e
senadores petistas, R$ 572 milhões a mais que o valor encaminhado, por exemplo,
por parlamentares do PSD, um dos grandes vencedores da eleição municipal.
O argumento central da corrente que hoje
lidera o PT – retirado da resolução a pedido do Palácio do Planalto – era o de
que a “dinheirama distribuída num piscar de olhos, ou no átimo de um Pix”,
havia deixado o partido sem discurso “frente a nomes do Centrão e da direita”.
Em primeiro lugar, se fosse apenas uma questão de dinheiro, o PSD não teria
emplacado quase quatro vezes mais prefeitos do que o PT neste ano.
E, em segundo lugar, seria realmente irônico
que viessem do partido críticas tão mordazes às chamadas emendas Pix,
transferências especiais que permitem a remessa de dinheiro diretamente para o
caixa das prefeituras, sem que seja preciso firmar convênio com o governo
federal, definir uma finalidade prévia para o uso dos recursos ou vincular a
verba a uma política pública.
Afinal, essas emendas, criadas pela Emenda
Constitucional 105/2019, são fruto da Proposta de Emenda à Constituição
61/2015, elaborada pela atual presidente do partido, deputada Gleisi Hoffmann
(PR), quando ela ainda era senadora. O texto foi modificado durante a
tramitação, mas a intenção de Gleisi, segundo a justificativa da proposta, era
reduzir a burocracia nas transferências de recursos federais a Estados e
municípios.
Aprovado por ampla maioria de deputados e
senadores, o texto se converteu em um retrocesso no controle de verbas do
Orçamento, impedindo a rastreabilidade, a transparência e a fiscalização do uso
dos recursos. Mas só agora o PT parece ter se dado conta do que fez e, como é
tradição no partido, culpa terceiros por todos os problemas que lhe acometem,
inclusive aqueles que ele mesmo ajudou a gerar.
Obviamente, o pandemônio no qual esse
imbróglio se converteu começou antes, mais precisamente em 2015, quando a
impositividade das emendas individuais foi aprovada. Depois disso, as emendas
de bancada também se tornaram obrigatórias e o Congresso inflou as emendas de
relator e de comissão.
Mas o fato é que ninguém no Legislativo pode
se declarar inocente nesse caso, nem o PT. Todos os partidos se beneficiaram
desse esquema, e o PT conseguiu manter um valor relevante de emendas mesmo sob
o governo Bolsonaro. Avaliar os motivos de seu declínio eleitoral exigiria do
PT uma autocrítica que ele jamais fez ao avaliar seus erros do passado.
Para Lula da Silva, como se sabe, o governo
de Dilma Rousseff não foi derrubado por sua rematada inabilidade e sua
prolífica incompetência, e sim porque a Operação Lava Jato se mancomunou com a
CIA para sabotar a petista. Portanto, a julgar por esse histórico de negação e
pelos debates para a escolha do novo comando do partido no ano que vem, o PT
continuará a ser o PT de sempre. O texto final da resolução é prova disso.
Correção de rota
O Estado de S. Paulo
Tarcísio de Freitas admite, enfim, que estava
errado sobre as câmeras corporais. Melhor assim
Ante a sucessão de episódios de truculência
protagonizados por policiais militares (PMs), o governador de São Paulo,
Tarcísio de Freitas, disse agora não ter mais dúvidas: admitiu que errou na
avaliação sobre a eficácia das câmeras nos uniformes dos agentes de segurança e
reconheceu a necessidade de estudar o aperfeiçoamento da corporação. “Eu era
uma pessoa que estava completamente errada nessa questão”, disse o governador.
“Hoje estou absolutamente convencido de que é um instrumento de proteção da sociedade
e do policial”, emendou, prometendo “não só manter, mas ampliar o programa”.
Melhor assim. Não importa se a mudança de
rota se deu como resultado do choque causado pelas imagens de brutalidade
policial ou do instinto de sobrevivência política do governador. O que
interessa a todos é a correção de rota. A admissão de Tarcísio não só é
auspiciosa, como não deixa de ser um gesto de grandeza – raramente autoridades,
mesmo movidas por oportunismo, admitem um erro publicamente. Tarcísio ainda
defendeu estudos para entender como investir em melhorias na PM paulista. Ele
falou em programa de treinamento, reciclagem, intercâmbio entre polícias e
compra de armamento não letal.
São bons caminhos, mas já razoavelmente
conhecidos e difundidos por quem entende do assunto. Bastava que o governador e
seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, estivessem dispostos a
ouvi-los. Não foi o caso, por exemplo, do programa de uso das câmeras
corporais. Nesses dois anos, o governador chegou a afirmar categoricamente que
o dispositivo não oferecia benefícios à sociedade. Depois passou a dizer que
manteria o modelo. Entre idas e vindas, jamais comprou a ideia com entusiasmo,
apesar das evidências.
Desde o início do mandato de Tarcísio, a
eficácia das câmeras como medida essencial num programa de profissionalização
das polícias já era bem conhecida. É uma tendência observada em países como
EUA, Canadá e Reino Unido. O modelo ganhou força também no Brasil, com
resultados atestados em boa parte dos Estados que começaram a adotar o
programa, inclusive São Paulo. Os maiores ganhos estão na redução da letalidade
policial, o calcanhar de aquiles do governador e da política da brutalidade
concebida e executada por Derrite. No início deste ano, a Fundação Getulio
Vargas divulgou um estudo apontando seu efeito direto e calculou que as câmeras
evitaram nada menos que 104 mortes na Região Metropolitana nos 14 meses
analisados. Também reduziram em 57% o número de mortes decorrentes de ações
policiais em relação a unidades onde, até aquele momento, não havia a
implantação da tecnologia.
Resta torcer para que o governador não tenha
falado da boca para fora. Mas só as câmeras não bastam. Programas do gênero só
são eficientes quando envolvem o comprometimento das lideranças, a começar pelo
próprio governador e seu secretário de Segurança, que comanda a PM; segundo, há
um longo trabalho de infraestrutura, treinamento, convencimento das corporações
e compartilhamento seguro de evidências. Tudo isso estava em curso até a
chegada de Derrite, e havia bons resultados. Mas o governo paulista não acreditou
neles, por implicância puramente ideológica, e agora será preciso recomeçar –
antes que mais tragédias aconteçam.
Uso indevido da violência precisa ser punido
Correio Braziliense
Quem precisa temer a polícia são os
criminosos, cada vez mais audaciosos, e não o cidadão comum
O conceito de monopólio da força ou monopólio
legítimo da violência é uma ideia central na concepção de que o Estado
democrático se sustenta também no direito legítimo de usar a força física
dentro de seu território, desde que seja exercida nos limites das leis e normas
aceitas pela sociedade. Esse monopólio é fundamental para manter a ordem social
e evitar conflitos entre indivíduos ou grupos que possam recorrer à violência
por conta própria. Entretanto, isso não significa que o sistema de segurança pública
e seus agentes se coloquem acima dos direitos dos cidadãos — entre os quais a
integridade física e a liberdade de expressão.
O emprego da violência pelas forças policiais
não é uma forma de livre arbítrio; está delimitado pela Constituição e as leis
que a complementam e/ou a regulamentam, como o Código de Processo Penal. Quando
esse poder é extrapolado ou desviado de seu propósito legítimo, o agente
responsável por isso perde sua legitimidade. O fato de estar credenciado e
fardado não lhe garante esse poder, somente agrava o seu abuso de poder.
Na sociedade brasileira, cujo cotidiano é
marcado pela violência, com altos índices de criminalidade e desigualdades
sociais, a fronteira entre a ação policial dentro dos limites legais e o
respeito aos direitos humanos é muito sinuosa e tensa quando o emprego legítimo
da força, ou seja, da violência, se faz necessário.
Ao agir dentro dos limites legais e
respeitando os direitos humanos, o agente de segurança reforça o monopólio
legítimo da força. No entanto, a violência desproporcional ou a discriminação
corroem essa legitimidade. Quem precisa temer a polícia são os criminosos, cada
vez mais audaciosos, e não o cidadão comum.
Os recentes casos de violência praticados por
policiais militares em serviço em São Paulo puseram na ordem do dia essa
questão, com foco em duas questões: a utilização de câmeras corporais e o uso
progressivo da força pelos agentes da segurança pública. Trata-se do uso de
tecnologia para garantir transparência na ação policial e produzir registros
sobre as ocorrências.
É impossível não ficar indignado com as cenas
que temos visto nos últimos dias, como as imagens que flagraram um jovem sendo
jogado por um PM de uma ponte e o registro, pelas câmeras de segurança, de um
policial de folga matando com 11 tiros um homem que havia furtado produtos de
limpeza em um mercadinho. Um relatório elaborado pela Ouvidoria de Polícia de
São Paulo, com a colaboração de organizações da sociedade civil e movimentos de
defesa dos direitos humanos, revelou que, de julho de 2023 a abril deste ano,
as operações Escudo e Verão deixaram 84 mortos. Foram as ações mais letais do
Estado desde o massacre de 111 presos do Carandiru, há 32 anos.
Culturalmente, a polícia brasileira gosta de bater, sobretudo em pretos e pardos. Essa é uma herança colonial, da escravidão. Não precisa ninguém mandar. Por isso mesmo, o governador de São Paulo,Tarcisio de Freitas, ao estimular esse comportamento, perdeu o controle da situação. Se a maior autoridade manda os policiais não terem dó nem piedade, quem conterá os abusos? Somente a reação da sociedade e a Justiça.
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