sábado, 7 de dezembro de 2024

Sem bufunfa no colchão - Luiz Gonzaga Belluzzo e Manfred Back

CartaCapital

Apostas em outras moedas e nas taxas de juro podem ser também, como o são realizadas em reais na Terra Brasilis

Na mítica trilogia épica, Indiana Jones, nosso arqueólogo corre desesperadamente atrás da Arca da Aliança e o Santo Graal. Assim como Indiana, nossos “especialistas” procuram neuroticamente o dinheiro nas “arcas” dos mercados!

O dinheiro não está lá, mas exerce seus poderes nas altas esferas da abstração ­real. Suas poderosas funções – unidade de conta, meio de troca e de pagamento, reserva de valor – escaparam das algemas da imediatidade material e buscam realizar o seu conceito em formas cada vez mais ideais e abstratas.

Estamos diante da manifestação escancarada do processo de abstração ­real que opera nos subterrâneos das sociedades capitalistas e deforma suas superfícies. Na verdade, diz o filósofo Roberto Finelli, a abstração real não se opõe ao mundo do concreto, não o força ou o obriga como força externa, mas o coloniza por dentro, o assimila às suas leis. A abstração real é um vetor da realidade nem visível nem tangível: tão invisível que, em sua construção da realidade, essa força subterrânea só pode produzir o esvaziamento real do concreto. Isso significa que, simultaneamente, produz e dissimula a realidade.

Produz e dissimula a “realidade”. Na interioridade da realidade, dominada pela abstração, pelo concreto naturalizado, o ser humano se perde, pois tudo se traduz em funções econômicas de produção e reprodução do abstrato. Mas essas funções econômicas do abstrato têm a face do concreto, que, em vez de ser aniquilado, como uma dialética do negativo gostaria, foi desvitalizado e esvaziado.

Desde os primórdios do capitalismo, as transações que se realizam no mercado contemplam, de fato, não só vendas normais com “dinheiro vivo”, à vista, mas também, em medida não negligenciável, vendas a descoberto, contratos de opções, derivados financeiros, de conteúdo complexo e altamente especulativo na imaginação e nas mentes dos homens comuns e dos incomuns agentes do mercado.

Vamos recordar as meditações de um pensador do século XIX: “A natureza particular do dinheiro evidencia-se de novo na separação dos negócios do dinheiro das relações mercantis propriamente ditas. Vemos, portanto, como é imanente ao dinheiro realizar suas finalidades à medida que simultaneamente se empenha em negá-las; se autonomiza em relação às mercadorias; de meio, devir fim; realizar o valor de troca das mercadorias ao se separar dele; facilitar a troca ao cindi-la; superar as dificuldades da troca imediata de mercadorias ao generalizá-las; autonomizar a troca em relação aos produtores na mesma medida em que os produtores devêm dependentes da troca”.

Na última terça-feira, na parte da manhã, Bolsa subindo e dólar futuro na faixa de 5,80, em quase 48 horas bateu de manhã a máxima de 6,11 reais na B3, a Bolsa brasileira. Se os “cabras cegos” acreditam em oferta e demanda, o dólar sobe porque tem mais gente querendo comprar do que vender, certo?

É típico do dinheiro realizar suas finalidades à medida que, ao mesmo tempo, trata de negá-las

Elementar, meu caro Watson. Até a última quinta-feira, os estrangeiros detinham uma posição comprada no dólar futuro de, aproximadamente, 80 bilhões de reais, segundo relatório diário da Bolsa. Grosso modo, uma variação aproximada de +5%, quanto os comprados ganhariam se vendessem os contratos na alta da última sexta-feira? Fácil, 4 bilhões de reais. Quem estava na ponta contrária é o inverso: nos contratos futuros, quem perde paga para quem ganha e, a Bolsa administra o fluxo de pagamentos e recebimentos diariamente.

Os “cabras cegos” exclamam: mas cadê os 80 bilhões de reais? Olhamos o balanço de pagamentos, não vimos os dólares entrando no Brasil? Para os leigos, o balanço de pagamentos é o registro de todas as transações do Brasil com o exterior, contabilizado diariamente pelo Banco Central. Com essa bufunfa verde entrando no País, o câmbio deveria valorizar, não? Não, porque o dinheiro não entrou, já estava aqui, nas tesourarias, em reais!

Ao ser apresentado ao 6LF2025, um desses “cabras cegos” indagou espantado: é uma nova marca de smartphone? Marca de carro híbrido? Placa do carro de Prêmio Nobel em Economia?

Nada disso. Esse é um contrato futuro de real/dólar em Chicago na CME, com vencimento agora em dezembro. Nos mercados futuros, o contrato vigente é sempre do mês seguinte, a aposta é para a frente! Nossos newtonianos da massa constante indagam: onde está o fluxo de saída para comprar esses contratos no balanço de pagamentos? Saiu capital, desvalorizou a moeda, a macroeconomia não falha…. falha sim, porque as apostas estavam lá na terra de Tio Sam! Apostas em outras moedas e nas taxas de juro podem também, como o são, ser ­realizadas em reais na Terra Brasilis!

“Trata-se, por assim dizer, de brincadeiras como o jogo do anel, a cabra-cega, as cadeiras musicais. É preciso passar o anel ao vizinho antes de o jogo acabar, agarrar o outro para ser por este substi­tuído, encontrar uma cadeira vaga antes que a música pare. Esses passatempos podem constituir agradáveis distrações e despertar muito entusiasmo, embora todos os participantes saibam que é a cabra-cega que está dando voltas a esmo ou que, quando a música para alguém ficará sem assento (Keynes, Teoria Geral, Cap. XII).”

Os contratos futuros e os mercados de derivativos nos permitem passar o anel a qualquer hora, em qualquer lugar, sem tirar as nádegas da cadeira!

Numa dessas, o hedge fund administrado pelos ganhadores do Prêmio Nobel, Merton & Scholes, entrou pelo cano. Apostaram na convergência entre os preços dos bônus do governo americano e papéis semelhantes de outros países – entre os quais alguns emergentes. Como o movimento esperado de preços não se verificou, nossos cientistas fogueteiros ficaram obrigados a atender às chamadas de margem, ou seja, tiveram de botar grana no negócio à medida que os preços se afastavam da direção imaginada pelos jogadores.

Para cumprir essa obrigação, os administradores foram forçados a “buscar liquidez”, mediante a venda de ativos, provocando uma queda adicional de seus preços. O Federal Reserve teve de intervir, obrigando os bancos financiadores a sustentar a liquidez dos especuladores, com o propósito de evitar uma crise sistêmica.

Esses episódios e outros semelhantes demonstram cabalmente o que já se suspeitava: os modelos de avaliação de risco e o uso de derivativos para a proteção contra os movimentos de preços adversos são incapazes de prevenir situações de stress. 

Publicado na edição n° 1340 de CartaCapital, em 11 de dezembro de 2024.

 

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