CartaCapital
Apostas em outras moedas e nas taxas de juro podem ser também, como o são realizadas em reais na Terra Brasilis
Na mítica trilogia épica, Indiana Jones,
nosso arqueólogo corre desesperadamente atrás da Arca da Aliança e o Santo
Graal. Assim como Indiana, nossos “especialistas” procuram neuroticamente o
dinheiro nas “arcas” dos mercados!
O dinheiro não está lá, mas exerce seus poderes nas altas esferas da abstração real. Suas poderosas funções – unidade de conta, meio de troca e de pagamento, reserva de valor – escaparam das algemas da imediatidade material e buscam realizar o seu conceito em formas cada vez mais ideais e abstratas.
Estamos diante da manifestação escancarada do
processo de abstração real que opera nos subterrâneos das sociedades
capitalistas e deforma suas superfícies. Na verdade, diz o filósofo Roberto
Finelli, a abstração real não se opõe ao mundo do concreto, não o força ou o
obriga como força externa, mas o coloniza por dentro, o assimila às suas leis.
A abstração real é um vetor da realidade nem visível nem tangível: tão
invisível que, em sua construção da realidade, essa força subterrânea só pode
produzir o esvaziamento real do concreto. Isso significa que, simultaneamente,
produz e dissimula a realidade.
Produz e dissimula a “realidade”. Na
interioridade da realidade, dominada pela abstração, pelo concreto
naturalizado, o ser humano se perde, pois tudo se traduz em funções econômicas
de produção e reprodução do abstrato. Mas essas funções econômicas do abstrato
têm a face do concreto, que, em vez de ser aniquilado, como uma dialética do
negativo gostaria, foi desvitalizado e esvaziado.
Desde os primórdios do capitalismo, as
transações que se realizam no mercado contemplam, de fato, não só vendas
normais com “dinheiro vivo”, à vista, mas também, em medida não negligenciável,
vendas a descoberto, contratos de opções, derivados financeiros, de conteúdo
complexo e altamente especulativo na imaginação e nas mentes dos homens comuns
e dos incomuns agentes do mercado.
Vamos recordar as meditações de um pensador
do século XIX: “A natureza particular do dinheiro evidencia-se de novo na
separação dos negócios do dinheiro das relações mercantis propriamente ditas.
Vemos, portanto, como é imanente ao dinheiro realizar suas finalidades à medida
que simultaneamente se empenha em negá-las; se autonomiza em relação às
mercadorias; de meio, devir fim; realizar o valor de troca das mercadorias ao
se separar dele; facilitar a troca ao cindi-la; superar as dificuldades da
troca imediata de mercadorias ao generalizá-las; autonomizar a troca em relação
aos produtores na mesma medida em que os produtores devêm dependentes da
troca”.
Na última terça-feira, na parte da manhã,
Bolsa subindo e dólar futuro na faixa de 5,80, em quase 48 horas bateu de manhã
a máxima de 6,11 reais na B3, a Bolsa brasileira. Se os “cabras cegos”
acreditam em oferta e demanda, o dólar sobe porque tem mais gente querendo
comprar do que vender, certo?
É típico do dinheiro realizar suas
finalidades à medida que, ao mesmo tempo, trata de negá-las
Elementar, meu caro Watson. Até a última
quinta-feira, os estrangeiros detinham uma posição comprada no dólar futuro de,
aproximadamente, 80 bilhões de reais, segundo relatório diário da Bolsa. Grosso
modo, uma variação aproximada de +5%, quanto os comprados ganhariam se
vendessem os contratos na alta da última sexta-feira? Fácil, 4 bilhões de
reais. Quem estava na ponta contrária é o inverso: nos contratos futuros, quem
perde paga para quem ganha e, a Bolsa administra o fluxo de pagamentos e
recebimentos diariamente.
Os “cabras cegos” exclamam: mas cadê os 80
bilhões de reais? Olhamos o balanço de pagamentos, não vimos os dólares
entrando no Brasil? Para os leigos, o balanço de pagamentos é o registro de
todas as transações do Brasil com o exterior, contabilizado diariamente
pelo Banco
Central. Com essa bufunfa verde entrando no País, o câmbio deveria
valorizar, não? Não, porque o dinheiro não entrou, já estava aqui, nas
tesourarias, em reais!
Ao ser apresentado ao 6LF2025, um desses
“cabras cegos” indagou espantado: é uma nova marca de smartphone? Marca de
carro híbrido? Placa do carro de Prêmio Nobel em Economia?
Nada disso. Esse é um contrato futuro de
real/dólar em Chicago na CME, com vencimento agora em dezembro. Nos mercados
futuros, o contrato vigente é sempre do mês seguinte, a aposta é para a frente!
Nossos newtonianos da massa constante indagam: onde está o fluxo de saída para
comprar esses contratos no balanço de pagamentos? Saiu capital, desvalorizou a
moeda, a macroeconomia não falha…. falha sim, porque as apostas estavam lá na
terra de Tio Sam! Apostas em outras moedas e nas taxas de juro podem também, como
o são, ser realizadas em reais na Terra Brasilis!
“Trata-se, por assim dizer, de brincadeiras
como o jogo do anel, a cabra-cega, as cadeiras musicais. É preciso passar o
anel ao vizinho antes de o jogo acabar, agarrar o outro para ser por este
substituído, encontrar uma cadeira vaga antes que a música pare. Esses
passatempos podem constituir agradáveis distrações e despertar muito
entusiasmo, embora todos os participantes saibam que é a cabra-cega que está
dando voltas a esmo ou que, quando a música para alguém ficará sem assento
(Keynes, Teoria Geral, Cap. XII).”
Os contratos futuros e os mercados de
derivativos nos permitem passar o anel a qualquer hora, em qualquer lugar, sem
tirar as nádegas da cadeira!
Numa dessas, o hedge fund administrado pelos
ganhadores do Prêmio Nobel, Merton & Scholes, entrou pelo cano. Apostaram
na convergência entre os preços dos bônus do governo americano e papéis
semelhantes de outros países – entre os quais alguns emergentes. Como o
movimento esperado de preços não se verificou, nossos cientistas fogueteiros
ficaram obrigados a atender às chamadas de margem, ou seja, tiveram de botar
grana no negócio à medida que os preços se afastavam da direção imaginada pelos
jogadores.
Para cumprir essa obrigação, os
administradores foram forçados a “buscar liquidez”, mediante a venda de ativos,
provocando uma queda adicional de seus preços. O Federal Reserve teve de
intervir, obrigando os bancos financiadores a sustentar a liquidez dos
especuladores, com o propósito de evitar uma crise sistêmica.
Esses episódios e outros semelhantes demonstram cabalmente o que já se suspeitava: os modelos de avaliação de risco e o uso de derivativos para a proteção contra os movimentos de preços adversos são incapazes de prevenir situações de stress.
Publicado na edição n° 1340 de CartaCapital,
em 11 de dezembro de 2024.
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