O Globo
Ardor ativista dos anos 1990 e 2000 parece
ter colaborado para as profundas e perigosas transformações que vivemos
Vinte e cinco anos atrás, protestos contra a
rodada do milênio da Organização Mundial do Comércio pararam a cidade de Seattle, nos Estados
Unidos. Na época, os protestos foram vistos como um divisor de eras.
O historiador inglês Eric Hobsbawm havia dito que o breve século XX começava
com a Primeira Guerra Mundial e terminava com a queda do Muro de Berlim. O
sociólogo francês Edgar Morin disse então, em artigo no jornal Le Monde, que o
século XXI começava em 1999, com Seattle. Hoje, essa história parece esquecida,
mas seus efeitos, visíveis e invisíveis, permanecem estruturando o tempo
presente.
Seattle foi o símbolo de um movimento mais amplo que começou um pouco antes, em 1994, com a revolta de Chiapas, no México. Em janeiro daquele ano, indígenas que se identificavam como zapatistas tomaram a cidade de San Cristóbal de las Casas em protesto contra o Nafta, acordo de livre-comércio entre Canadá, México e Estados Unidos. O governo mexicano preparou uma reação armada ao levante, mas a mobilização da sociedade civil mexicana impediu um massacre.
Liderados pelo subcomandante Marcos, os
zapatistas apresentaram suas reivindicações pela internet, que acabava de ser
lançada ao público. Buscaram subverter todas as regras das antigas guerrilhas
de esquerda sul-americanas. Marcos não se apresentava como líder, mas como um
subcomandante que “liderava, obedecendo”. Em oposição às hierarquias das
organizações comunistas, defendia a “horizontalidade”. Embora armados, os
zapatistas diziam que sua verdadeira arma era o apoio da população. Em sua
marcha para a capital, para negociar a paz, zapatistas encapuzados foram
protegidos por um cordão de integrantes da sociedade civil, vestidos de branco,
mostrando que a legitimidade social era mais poderosa que os fuzis e que a luta
armada não era mais o caminho.
A oposição aos acordos de livre-comércio não
era movida pela proteção corporativa das indústrias nacionais, mas pela
percepção de que a circulação irrestrita de capital enfraquecia as políticas
nacionais de proteção social e ambiental. Com os acordos de livre-comércio,
empresas podiam migrar para países com menos direitos trabalhistas ou
ambientais, chantageando os demais a reduzir seus próprios padrões de proteção.
Essa tendência ficou conhecida como “corrida para baixo”. Barrar os acordos em
opacos encontros de cúpula buscava impedir a corrosão desses direitos
construídos no Pós-Guerra.
Embora tenham ficado conhecidos como
“movimento antiglobalização”, os protestos que se espalharam pelo mundo de 1994
a 2003 eram cosmopolitas e verdadeiramente mundiais. Isso, claro, não era
novidade. A campanha pela jornada de oito horas no início do século XX e os
protestos contra a Guerra do Vietnã nos anos 1960 também tinham sido globais.
Mas, dessa vez, as novas tecnologias permitiram coordenação direta dos
manifestantes.
Muito se fala hoje sobre os impactos
políticos da difusão das mídias sociais nos anos 2010, mas as tecnologias
digitais foram decisivas já nos anos 1990. O movimento “antiglobalização” se
organizou inteiramente pela internet, acreditando que a interatividade do novo
meio estava de acordo com seus ideais de participação e horizontalidade. Em
1999, muito antes da invenção dos blogs e das mídias sociais, o movimento criou
o site Indymedia, que permitia aos manifestantes publicar seus próprios
relatos, fotos e vídeos dos protestos, dispensando a mediação jornalística. O
lançamento venceu em audiência os grandes portais da época, e
programadores-ativistas que participaram do Indymedia fundaram, anos depois,
projetos importantes na história da internet como Twitter, o site de
compartilhamento de fotos Flickr e o site de classificados Craigslist.
No Brasil, os protestos impediram a criação
de um acordo de livre-comércio para as Américas, a Alca. As redes de
mobilização do movimento foram exploradas depois pelo Movimento Passe Livre,
que disparou os protestos de junho de 2013 e colocou na agenda política a
proposta da tarifa zero para o transporte público. Também daquele movimento
nasceram as bicicletadas, mobilizações de ciclistas que garantiram em diversas
cidades brasileiras políticas públicas para o transporte por bicicletas.
Mas o movimento também teve efeitos
colaterais. O lema do Indymedia — “Odeia a mídia, seja a mídia” — tem sido
apropriado pela extrema direita europeia para defender suas redes de difusão de
desinformação nas mídias sociais. A crítica aos acordos de livre-comércio, que
originalmente defendia direitos sociais e ambientais, foi apropriada hoje por
um “antiglobalismo” chauvinista e conspiratório. Por fim, o ativismo daqueles
anos parece incomodamente entrelaçado com a gênese da polarização. De maneiras
imprevistas, o ardor ativista libertário dos anos 1990 e 2000 parece ter
colaborado para as profundas e perigosas transformações que vivemos desde os
anos 2010.
Um comentário:
Excelente! "A mobilização da sociedade civil mexicana impediu um massacre". Os mercados nem se mexeram pra isto, mas Sardenberg e outros lacaios veriam uma ação positiva deles...
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