sábado, 7 de dezembro de 2024

Seattle, 25 anos – Pablo Ortellado

O Globo

Ardor ativista dos anos 1990 e 2000 parece ter colaborado para as profundas e perigosas transformações que vivemos

Vinte e cinco anos atrás, protestos contra a rodada do milênio da Organização Mundial do Comércio pararam a cidade de Seattle, nos Estados Unidos. Na época, os protestos foram vistos como um divisor de eras. O historiador inglês Eric Hobsbawm havia dito que o breve século XX começava com a Primeira Guerra Mundial e terminava com a queda do Muro de Berlim. O sociólogo francês Edgar Morin disse então, em artigo no jornal Le Monde, que o século XXI começava em 1999, com Seattle. Hoje, essa história parece esquecida, mas seus efeitos, visíveis e invisíveis, permanecem estruturando o tempo presente.

Seattle foi o símbolo de um movimento mais amplo que começou um pouco antes, em 1994, com a revolta de Chiapas, no México. Em janeiro daquele ano, indígenas que se identificavam como zapatistas tomaram a cidade de San Cristóbal de las Casas em protesto contra o Nafta, acordo de livre-comércio entre Canadá, México e Estados Unidos. O governo mexicano preparou uma reação armada ao levante, mas a mobilização da sociedade civil mexicana impediu um massacre.

Liderados pelo subcomandante Marcos, os zapatistas apresentaram suas reivindicações pela internet, que acabava de ser lançada ao público. Buscaram subverter todas as regras das antigas guerrilhas de esquerda sul-americanas. Marcos não se apresentava como líder, mas como um subcomandante que “liderava, obedecendo”. Em oposição às hierarquias das organizações comunistas, defendia a “horizontalidade”. Embora armados, os zapatistas diziam que sua verdadeira arma era o apoio da população. Em sua marcha para a capital, para negociar a paz, zapatistas encapuzados foram protegidos por um cordão de integrantes da sociedade civil, vestidos de branco, mostrando que a legitimidade social era mais poderosa que os fuzis e que a luta armada não era mais o caminho.

A oposição aos acordos de livre-comércio não era movida pela proteção corporativa das indústrias nacionais, mas pela percepção de que a circulação irrestrita de capital enfraquecia as políticas nacionais de proteção social e ambiental. Com os acordos de livre-comércio, empresas podiam migrar para países com menos direitos trabalhistas ou ambientais, chantageando os demais a reduzir seus próprios padrões de proteção. Essa tendência ficou conhecida como “corrida para baixo”. Barrar os acordos em opacos encontros de cúpula buscava impedir a corrosão desses direitos construídos no Pós-Guerra.

Embora tenham ficado conhecidos como “movimento antiglobalização”, os protestos que se espalharam pelo mundo de 1994 a 2003 eram cosmopolitas e verdadeiramente mundiais. Isso, claro, não era novidade. A campanha pela jornada de oito horas no início do século XX e os protestos contra a Guerra do Vietnã nos anos 1960 também tinham sido globais. Mas, dessa vez, as novas tecnologias permitiram coordenação direta dos manifestantes.

Muito se fala hoje sobre os impactos políticos da difusão das mídias sociais nos anos 2010, mas as tecnologias digitais foram decisivas já nos anos 1990. O movimento “antiglobalização” se organizou inteiramente pela internet, acreditando que a interatividade do novo meio estava de acordo com seus ideais de participação e horizontalidade. Em 1999, muito antes da invenção dos blogs e das mídias sociais, o movimento criou o site Indymedia, que permitia aos manifestantes publicar seus próprios relatos, fotos e vídeos dos protestos, dispensando a mediação jornalística. O lançamento venceu em audiência os grandes portais da época, e programadores-ativistas que participaram do Indymedia fundaram, anos depois, projetos importantes na história da internet como Twitter, o site de compartilhamento de fotos Flickr e o site de classificados Craigslist.

No Brasil, os protestos impediram a criação de um acordo de livre-comércio para as Américas, a Alca. As redes de mobilização do movimento foram exploradas depois pelo Movimento Passe Livre, que disparou os protestos de junho de 2013 e colocou na agenda política a proposta da tarifa zero para o transporte público. Também daquele movimento nasceram as bicicletadas, mobilizações de ciclistas que garantiram em diversas cidades brasileiras políticas públicas para o transporte por bicicletas.

Mas o movimento também teve efeitos colaterais. O lema do Indymedia — “Odeia a mídia, seja a mídia” — tem sido apropriado pela extrema direita europeia para defender suas redes de difusão de desinformação nas mídias sociais. A crítica aos acordos de livre-comércio, que originalmente defendia direitos sociais e ambientais, foi apropriada hoje por um “antiglobalismo” chauvinista e conspiratório. Por fim, o ativismo daqueles anos parece incomodamente entrelaçado com a gênese da polarização. De maneiras imprevistas, o ardor ativista libertário dos anos 1990 e 2000 parece ter colaborado para as profundas e perigosas transformações que vivemos desde os anos 2010.

 

Um comentário:

Daniel disse...

Excelente! "A mobilização da sociedade civil mexicana impediu um massacre". Os mercados nem se mexeram pra isto, mas Sardenberg e outros lacaios veriam uma ação positiva deles...