O Globo
A cultura tem feito o que a política e o
judiciário não conseguiram: costurar um país marcado por feridas não curadas
A cultura tem feito o que a política e o
judiciário não conseguiram, o encontro do Brasil com a sua história. Volto de
férias com o Brasil falando ainda em contas públicas, Donald Trump colocando em
prática o seu extremismo e uma ameaça chinesa rondando as empresas americanas
de alta tecnologia. Assuntos em pauta, certamente. Mas quero hoje falar de
“Ainda estou aqui", de “Lady Tempestade” e de Marina Colasanti. O cinema,
o teatro e a literatura nos colocam de frente para o que é essencial.
O belo “Ainda estou aqui” tem permitido um diálogo de gerações sobre temas nunca devidamente tratados no Brasil. Há algo na genial direção de Walter Salles, na perfeita atuação de Fernanda Torres, no talento de Selton Mello. Há algo no mar do Leblon, no ambiente familiar, no clima dos anos 1970, na trilha sonora que permanece. Meu neto Daniel, de 15 anos, disse que queria ver o filme com a família, mas todos já haviam visto. Fomos quatro pessoas, de três gerações diferentes — o pai, a irmã e os avós —, acompanhá-lo. Já tínhamos visto, mas o convite era encantador. No final, ele contou que quer rever porque precisa anotar as frases que foram ditas naquela época, mas poderiam ter sido ditas hoje.
Fomos, Sérgio e eu, rever “Lady Tempestade”
no Teatro Poeira e levamos o filho Matheus e os netos. A ideia era que Mariana,
18, estudante de Direito conhecesse a história da advogada de presos políticos
Mércia Albuquerque. Andréa
Beltrão está magistral na interpretação da advogada que confronta a
tortura, as mortes e a repressão no Nordeste, nos piores anos da ditadura. “É
uma pena que a senhora, tão jovem, defenda terroristas”, disse um dos
“gafanhotos” como ela definia os agentes da repressão. E Mércia responde, na
voz de Andréa. “Escute, senhor, enterrar os mortos é um direito sagrado. Como o
senhor sabe, até nas guerras os exércitos conseguem uma trégua, respeitando o
inimigo e entregando os corpos para o sepultamento”.
O corpo de Rubens Paiva nunca foi entregue
para sepultamento. Há 54 anos. Pairam sobre o Brasil 414 corpos não entregues
às famílias. É crime continuado, porque é sequestro e ocultação de cadáver. Foi
o que me disse o procurador da Justiça Militar, Otávio Bravo, em 2012, quando
eu fiz o documentário “História inacabada” sobre Rubens Paiva. É o que tem dito
agora no Supremo Tribunal Federal, o ministro Flávio Dino.
Se o corpo permanece até hoje desaparecido, o crime continua, portanto não pode
ser coberto pela Lei da Anistia de 1979. Mas nem o que é assim tão cristalino
tem permitido que a Justiça brasileira saia da armadilha criada pela ditadura,
ao impor na lei o perdão para os crimes que seus agentes cometeram. “É preciso
dar um jeito, meu amigo”. Ao fim de Lady Tempestade, a audiência é levada a ver
retratos desse passado que o Brasil nunca enfrentou, mas que ainda está aqui.
Uma tarde, Mariana, minha neta, nos pediu
para ir ao Parque Lage. Fomos. Andamos pelo palacete e pelos jardins, e eu
disse: “tenho uma amiga que morou aqui”. E contei a história de Marina
Colasanti. Nascida em Asmara, na Eritreia, mudou-se para a Líbia, depois para a
Itália e chegou ao Brasil aos 10 anos. “Nasci longe de mim/ em terra estranha/
levada pelo hálito da guerra”, escreveu Marina no poema “Só em mim ficou”. Na
última quarta-feira, num salão do mesmo Parque Lage, diante do corpo de Marina
Colasanti, pude pensar longamente na imensidão do seu legado.
Marina tinha história única e pertencimento
fluido — nascida na África, europeia e brasileira — mas ela escolheu viver
entre nós. Sorte e privilégio do Brasil. Marina continuará conosco nos seus 70
livros, nos seus desenhos e quadros, na sua poesia. Marina Colasanti deixou
marcas no jornalismo, na literatura, no feminismo. A sua literatura infantil é
clássica e, por isso, é fácil garantir que crianças ainda não nascidas lerão
Marina Colasanti. Ela era imensa mas se via com a leveza e a graça que está no
poema “Projeto póstumo”. “Se/ quando morta/ me fizerem busto/ volto/ pomba
gentil/ e/ cago nele.”
Por razões minhas, fiquei no Rio nessas
férias. Cinema, teatro, praia, parques, jardins, livros, filhos, netos. Na
calma, entendi que a cultura é o que tem nos costurado nesse país partido por
conflitos e marcado por feridas não curadas. Terminei as férias lendo e relendo
Marina Colasanti para reter os recados dessa pessoa linda que perdemos. “Tão
passageira a vida e é só o que temos.”
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