José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
Estudo do Ipea, divulgado na semana que passou, aponta que entre 1993 e 2006 aumentou o número de mulheres chefes de família, em casais com filhos, que pulou de 3,4% para 14,2%. Como se trata de pesquisa para desenhar o Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça no Brasil há o risco de supor que nesses resultados estamos em face de uma melhora nas crônicas desigualdades entre mulheres e homens. No mesmo dia em que o Ipea divulgou seus dados, os jornais noticiaram que o presidente da República havia sancionado, com vetos, a lei que estende a licença-maternidade de 4 para 6 meses. Mais água, portanto, no imaginário do moinho da igualdade.
Nos dois casos há problemas ocultados pela euforia que acompanha esse tipo de informação. Que haja famílias em que o chefe deixou de ser o homem para ser a mulher não demonstra que a igualdade social tenha crescido um milímetro sequer. A organização da família aí registrada continua sendo a do consagrado modelo patriarcal que a pressupõe como uma estrutura de dominação, presente na idéia de chefe da família. Incremento na igualdade haveria se a pesquisa do Ipea registrasse a reorganização da família com base num padrão igualitário, não apenas na distribuição das tarefas do tanque e do fogão, ou na inversão da autoridade doméstica, mas sobretudo no relacionamento tanto entre homem e mulher quanto no relacionamento igualitário entre as gerações, entre os pais e os filhos. Isso, de fato, não está acontecendo na sociedade brasileira numa escala que se pudesse definir como admirável e promissora. A família ainda é uma instituição de autoridade e poder, de mando e obediência.
A persistência de um padrão iníquo de relações sociais, mesmo nos números que parecem negá-lo, reaparece nas informações e considerações sobre o trabalho infantil. A pesquisa do Ipea expõe dados relativos à participação no mercado de trabalho de meninos entre 10 e 15 anos de idade e aponta a diferença entre negros e brancos, assumindo que a injustiça social se revela no fato de que é maior a proporção de crianças negras que trabalham em relação às crianças brancas. Na verdade, o fato de que, nessa faixa etária, haja 5% mais negros do que brancos não indica que haja injustiça contra as crianças negras, mas injustiça e desigualdade contra todas as crianças, independente da cor. Se a diferença fosse zero ainda assim estaríamos em face de uma vergonhosa expressão das nossas desigualdades sociais, as crianças precocemente trabalho, tornando-se adultas antes do tempo.
O que a pesquisa do Ipea aponta não é uma mudança social, mas uma mudança no padrão da injustiça social, em conseqüência da persistência de um ordenamento arcaico das relações entre o homem e a mulher. O que se vê quando os pesquisadores agregam a essas porcentagens os dados relativos a famílias chefiadas por mulheres sozinhas. Nesse caso, famílias chefiadas por mulheres cresceram no mesmo período 1,5 vez, de 19,7% para 28,8%. Esses números estão, portanto, muito longe de indicarem algo como uma crescente emancipação da mulher, sobretudo quando se toma em conta os casos de mulheres que arcam sozinhas com a maternidade e seus desdobramentos sociais. O que temos é não uma crescente desorganização da família que persiste como modelo das relações pai-mãe-filhos, como também um claro declínio da família como núcleo da ideologia da reprodução humana e da reprodução da sociedade.
Em boa parte porque em nossa sociedade persistem fundamentos para os quais a justiça social e a igualdade não são prioritários. A querela já iniciada em torno da ampliação da licença-maternidade é bem indicativa de quanto estamos longe de um trato decente da fundamental questão social que é a da sucessão das gerações. O Brasil, mesmo em leis assim, não tem o menor apreço pela maternidade como instituição social na qual o futuro se propõe. Porque essa lei continua sendo reducionista, ao não deixar claro que a maternidade não é uma variável dependente da produção. Trata-se de um remendo, benvindo, aliás, como todo remendo em face da alternativa de coisa nenhuma.
Tanto no caso do retrato da família brasileira, que os números do Ipea desenham, quanto no caso da ampliação da licença-maternidade estamos em face de curiosíssimas indicações de que neste País os presumíveis avanços sociais são vistos sempre na ótica do prejuízo econômico que causam e não dos benefícios sociais que indicam ou acarretam. Na verdade o que importa considerar, tanto nas alterações estatísticas relativas à família quanto nas ressalvas da lei relativa aos benefícios da licença-maternidade, é a direção das alterações nas condições de nascimento e de primeira socialização das novas gerações de brasileiros. O que está em jogo, mesmo, é o tipo e grau de orfandade que esta sociedade continua impondo aos que estão chegando ao mundo. Houve um tempo em que os cientistas sociais se interessavam pelas análises de Abraham Kardiner e de Michel Duffrene sobre a chamada estrutura de personalidade básica, o resultado do lado invisível das relações fundamentais de acolhimento dos nascituros. Quando essas relações estão em crise, como indica a pesquisa do Ipea, a tendência é a de que a socialização primária das crianças fique afetada pela mutilação dos padrões apropriados relacionamento à sua integração na sociedade. Isso vai se manifestar nas alterações que sua conduta sofrerá, quando adultas, até mesmo na direção da desagregação social. Crises de ruptura social são noticiadas diariamente pela mídia, como a deterioração de valores sem os quais esta sociedade deixará de existir. A tragédia ocorrida em Ribeirão Pires, de pai e madrasta matando cruelmente dois adolescentes, que haviam aliás recorrido à chamada autoridade competente e pedido o socorro que não lhes foi dado, é um dos reflexos possíveis no processo dessa socialização primária carente na geração dos pais e também do conformismo decorrente naqueles supostamente encarregados de evitar a consumação do rompimento.
*José de Souza Martins, professor de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP, é autor de O Sujeito Oculto (Ordem e transgressão na reforma agrária), Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003; A Sociabilidade do Homem Simples (2ª edição revista e ampliada, Contexto, 2008) e A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008).
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
Estudo do Ipea, divulgado na semana que passou, aponta que entre 1993 e 2006 aumentou o número de mulheres chefes de família, em casais com filhos, que pulou de 3,4% para 14,2%. Como se trata de pesquisa para desenhar o Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça no Brasil há o risco de supor que nesses resultados estamos em face de uma melhora nas crônicas desigualdades entre mulheres e homens. No mesmo dia em que o Ipea divulgou seus dados, os jornais noticiaram que o presidente da República havia sancionado, com vetos, a lei que estende a licença-maternidade de 4 para 6 meses. Mais água, portanto, no imaginário do moinho da igualdade.
Nos dois casos há problemas ocultados pela euforia que acompanha esse tipo de informação. Que haja famílias em que o chefe deixou de ser o homem para ser a mulher não demonstra que a igualdade social tenha crescido um milímetro sequer. A organização da família aí registrada continua sendo a do consagrado modelo patriarcal que a pressupõe como uma estrutura de dominação, presente na idéia de chefe da família. Incremento na igualdade haveria se a pesquisa do Ipea registrasse a reorganização da família com base num padrão igualitário, não apenas na distribuição das tarefas do tanque e do fogão, ou na inversão da autoridade doméstica, mas sobretudo no relacionamento tanto entre homem e mulher quanto no relacionamento igualitário entre as gerações, entre os pais e os filhos. Isso, de fato, não está acontecendo na sociedade brasileira numa escala que se pudesse definir como admirável e promissora. A família ainda é uma instituição de autoridade e poder, de mando e obediência.
A persistência de um padrão iníquo de relações sociais, mesmo nos números que parecem negá-lo, reaparece nas informações e considerações sobre o trabalho infantil. A pesquisa do Ipea expõe dados relativos à participação no mercado de trabalho de meninos entre 10 e 15 anos de idade e aponta a diferença entre negros e brancos, assumindo que a injustiça social se revela no fato de que é maior a proporção de crianças negras que trabalham em relação às crianças brancas. Na verdade, o fato de que, nessa faixa etária, haja 5% mais negros do que brancos não indica que haja injustiça contra as crianças negras, mas injustiça e desigualdade contra todas as crianças, independente da cor. Se a diferença fosse zero ainda assim estaríamos em face de uma vergonhosa expressão das nossas desigualdades sociais, as crianças precocemente trabalho, tornando-se adultas antes do tempo.
O que a pesquisa do Ipea aponta não é uma mudança social, mas uma mudança no padrão da injustiça social, em conseqüência da persistência de um ordenamento arcaico das relações entre o homem e a mulher. O que se vê quando os pesquisadores agregam a essas porcentagens os dados relativos a famílias chefiadas por mulheres sozinhas. Nesse caso, famílias chefiadas por mulheres cresceram no mesmo período 1,5 vez, de 19,7% para 28,8%. Esses números estão, portanto, muito longe de indicarem algo como uma crescente emancipação da mulher, sobretudo quando se toma em conta os casos de mulheres que arcam sozinhas com a maternidade e seus desdobramentos sociais. O que temos é não uma crescente desorganização da família que persiste como modelo das relações pai-mãe-filhos, como também um claro declínio da família como núcleo da ideologia da reprodução humana e da reprodução da sociedade.
Em boa parte porque em nossa sociedade persistem fundamentos para os quais a justiça social e a igualdade não são prioritários. A querela já iniciada em torno da ampliação da licença-maternidade é bem indicativa de quanto estamos longe de um trato decente da fundamental questão social que é a da sucessão das gerações. O Brasil, mesmo em leis assim, não tem o menor apreço pela maternidade como instituição social na qual o futuro se propõe. Porque essa lei continua sendo reducionista, ao não deixar claro que a maternidade não é uma variável dependente da produção. Trata-se de um remendo, benvindo, aliás, como todo remendo em face da alternativa de coisa nenhuma.
Tanto no caso do retrato da família brasileira, que os números do Ipea desenham, quanto no caso da ampliação da licença-maternidade estamos em face de curiosíssimas indicações de que neste País os presumíveis avanços sociais são vistos sempre na ótica do prejuízo econômico que causam e não dos benefícios sociais que indicam ou acarretam. Na verdade o que importa considerar, tanto nas alterações estatísticas relativas à família quanto nas ressalvas da lei relativa aos benefícios da licença-maternidade, é a direção das alterações nas condições de nascimento e de primeira socialização das novas gerações de brasileiros. O que está em jogo, mesmo, é o tipo e grau de orfandade que esta sociedade continua impondo aos que estão chegando ao mundo. Houve um tempo em que os cientistas sociais se interessavam pelas análises de Abraham Kardiner e de Michel Duffrene sobre a chamada estrutura de personalidade básica, o resultado do lado invisível das relações fundamentais de acolhimento dos nascituros. Quando essas relações estão em crise, como indica a pesquisa do Ipea, a tendência é a de que a socialização primária das crianças fique afetada pela mutilação dos padrões apropriados relacionamento à sua integração na sociedade. Isso vai se manifestar nas alterações que sua conduta sofrerá, quando adultas, até mesmo na direção da desagregação social. Crises de ruptura social são noticiadas diariamente pela mídia, como a deterioração de valores sem os quais esta sociedade deixará de existir. A tragédia ocorrida em Ribeirão Pires, de pai e madrasta matando cruelmente dois adolescentes, que haviam aliás recorrido à chamada autoridade competente e pedido o socorro que não lhes foi dado, é um dos reflexos possíveis no processo dessa socialização primária carente na geração dos pais e também do conformismo decorrente naqueles supostamente encarregados de evitar a consumação do rompimento.
*José de Souza Martins, professor de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP, é autor de O Sujeito Oculto (Ordem e transgressão na reforma agrária), Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003; A Sociabilidade do Homem Simples (2ª edição revista e ampliada, Contexto, 2008) e A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008).
Nenhum comentário:
Postar um comentário