Luiz Gonzaga Belluzzo
DEU NO VALOR ECONÔMICO
"Os fanáticos do livre mercado argumentam que a crise financeira decorre de uma falha dos governos que mantiveram o dinheiro muito barato depois do estouro da bolha tecnológica em 2000. Os mercados teriam sido temporariamente enganados pelos governos. Para dizer pouco, uma defesa ridícula: se os mercados são tão facilmente ludibriados, não podem ser lá muito eficientes." - Robert Skidelsky na revista Propect, 12/2008
Nos Estados Unidos, desde meados dos anos 90, no terreno fértil das hipóteses fantasiosas sobre as virtudes da Nova Economia medraram previsões majoritárias sobre um crescimento ininterrupto e prolongado.
Primeiro, foram celebrados os ganhos de produtividade proporcionados pelo avanço tecnológico. No período 1996-2000, a economia americana foi, de fato, abalroada por uma onda de inovações que animou os investimentos e estimulou uma forte concentração de capitais - não só na área produtiva, mas também nos bancos e nas finanças. A onda de inovações nucleadas pelas tecnologias de informação e estimuladas pela criatividade financeira excitou a formação de capacidade produtiva e viabilizou ganhos importantes de produtividade. As avaliações favoráveis quanto à evolução dos lucros na Nova Economia deslancharam o crescimento do gasto privado (consumo e investimento) nos novos produtos, amparado na forte expansão do crédito e na conseqüente ampliação das margens de endividamento das famílias e das empresas. As avaliações otimistas engendraram a formação de um processo altista nas bolsas, o que valorizou o balanço das empresas e o patrimônio líquido das famílias, revigorando o gasto privado. As perspectivas de novos ganhos patrimoniais e o crédito abundante impulsionaram as fusões e aquisições e estimularam a recompra de ações; isto, por sua vez, realimentou a capitalização nas bolsas.
No período 1996-2000 a economia real "explodiu": as empresas e as famílias aumentaram significativamente os gastos acima da renda corrente e as avaliações otimistas acerca dos lucros e dos rendimentos futuros - ainda alentados pelo espetacular desempenho das ações na bolsa de valores e pelo mito da nova economia - levaram o dispêndio privado a exceder a renda corrente. Esta diferença chegou a 6% do PIB no último trimestre de 2000.
No segundo ciclo de expansão - a farra das hipotecas - a construção residencial e a valorização exuberante dos imóveis generalizaram o estímulo ao consumo e o sobre-endividamento para as famílias que não tinham acesso ao mercado de ações. Nas duas etapas da inflação de ativos e de consumismo turbinado, a "poupança externa" dos produtivistas asiáticos fechou a conta, sancionando os déficits privados.
No primeiro episódio da "exuberância irracional", os ganhos de produtividade - realmente impressionantes - deram força à argumentação de Alan Greenspan, empenhado em justificar a resistência do Fed às sugestões de controle do crédito. No segundo tempo da jornada nas estrelas - o da supervalorização dos imóveis residenciais - outro argumento, já exarado na primeira "bolha", começou a prevalecer: a chamada Hipótese dos Mercados Eficientes. Formulada nos anos 70 por Eugenio Fama, a hipótese pretendia ensinar que todas as informações relevantes sobre os "fundamentos" da economia estão disponíveis em cada momento para todos os participantes dos mercados que avaliam os títulos de dívida e os direitos de propriedade. Diante das informações existentes, as decisões dos agentes racionais dariam ensejo à melhor estimativa possível sobre os preços dos ativos e, consequentemente, à melhor distribuição possível dos recursos entre os diferentes ativos. Em condições competitivas, não sobrevivem estratégias "ganhadoras" capazes de propiciar resultados acima da média.
A escultura do touro que dá boas vindas aos freqüentadores e visitantes de Wall Street sabe que a Hipótese dos Mercados Eficientes é uma fábula moralista recheada de letras gregas para simular respeitabilidade científica. Com ela, os nefelibatas da academia tratam de explicar aos trouxas que as estripulias bem remuneradas dos criativos rapazes do mercado são "ineficientes" para bater o mercado. Em artigo recente na revista Prospect, Robert Skidelsky, autor da mais completa biografia de Keynes, afirmou que a hipótese dos mercados eficientes "revela a falência intelectual da corrente dominante em economia. Ela não pode prever nem explicar a derrocada financeira porque os economistas acreditam que os mercados são auto-regulados".
A julgar pelo valor dos bônus, as façanhas dos mercados financeiros têm sido muito úteis para os rapazes do mercado. Também são "eficientes", se compreendidas tais façanhas em seu papel de impulsionar o "animal spirits" dos possuidores de riqueza na busca de novas oportunidades de lucro. Na economia capitalista moderna, a grande concentração de capital fixo, a competição feroz pela inovação tecnológica incorporada nas novas gerações de bens de produção e de consumo e os instrumentos de alavancagem financeira estão articulados de modo a suscitar o aumento continuado da produtividade social do trabalho.
O processo de reprodução capitalista - em suas indissociáveis dimensões material, financeira e monetária - impôs a dominância do sistema de crédito e dos mercados de avaliação da riqueza - incluído o Banco Central - na hierarquia de poderes que comandam a concorrência entre as empresas. (As inovações financeiras recentes e outras nem tanto são descendentes das técnicas de "alavancagem" dos bancos de depósito e dos procedimentos de repartição do risco).
No capitalismo realmente existente, o jogo da concorrência nos mercados alavancados obriga os gestores da grana e do risco a buscarem o rendimento acima da média, sob pena de serem desbancados pelo rival da esquina. Ligada a ignição da ganância infecciosa, os tripulantes não podem brecar o comboio da alegria. Por isso, no auge da euforia financeira quase todos os agentes estão numa situação Ponzi: se a ciranda pára de rodar, a tigrada quebra. Bernie Madoff não é a exceção, mas o abuso da regra.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.
DEU NO VALOR ECONÔMICO
"Os fanáticos do livre mercado argumentam que a crise financeira decorre de uma falha dos governos que mantiveram o dinheiro muito barato depois do estouro da bolha tecnológica em 2000. Os mercados teriam sido temporariamente enganados pelos governos. Para dizer pouco, uma defesa ridícula: se os mercados são tão facilmente ludibriados, não podem ser lá muito eficientes." - Robert Skidelsky na revista Propect, 12/2008
Nos Estados Unidos, desde meados dos anos 90, no terreno fértil das hipóteses fantasiosas sobre as virtudes da Nova Economia medraram previsões majoritárias sobre um crescimento ininterrupto e prolongado.
Primeiro, foram celebrados os ganhos de produtividade proporcionados pelo avanço tecnológico. No período 1996-2000, a economia americana foi, de fato, abalroada por uma onda de inovações que animou os investimentos e estimulou uma forte concentração de capitais - não só na área produtiva, mas também nos bancos e nas finanças. A onda de inovações nucleadas pelas tecnologias de informação e estimuladas pela criatividade financeira excitou a formação de capacidade produtiva e viabilizou ganhos importantes de produtividade. As avaliações favoráveis quanto à evolução dos lucros na Nova Economia deslancharam o crescimento do gasto privado (consumo e investimento) nos novos produtos, amparado na forte expansão do crédito e na conseqüente ampliação das margens de endividamento das famílias e das empresas. As avaliações otimistas engendraram a formação de um processo altista nas bolsas, o que valorizou o balanço das empresas e o patrimônio líquido das famílias, revigorando o gasto privado. As perspectivas de novos ganhos patrimoniais e o crédito abundante impulsionaram as fusões e aquisições e estimularam a recompra de ações; isto, por sua vez, realimentou a capitalização nas bolsas.
No período 1996-2000 a economia real "explodiu": as empresas e as famílias aumentaram significativamente os gastos acima da renda corrente e as avaliações otimistas acerca dos lucros e dos rendimentos futuros - ainda alentados pelo espetacular desempenho das ações na bolsa de valores e pelo mito da nova economia - levaram o dispêndio privado a exceder a renda corrente. Esta diferença chegou a 6% do PIB no último trimestre de 2000.
No segundo ciclo de expansão - a farra das hipotecas - a construção residencial e a valorização exuberante dos imóveis generalizaram o estímulo ao consumo e o sobre-endividamento para as famílias que não tinham acesso ao mercado de ações. Nas duas etapas da inflação de ativos e de consumismo turbinado, a "poupança externa" dos produtivistas asiáticos fechou a conta, sancionando os déficits privados.
No primeiro episódio da "exuberância irracional", os ganhos de produtividade - realmente impressionantes - deram força à argumentação de Alan Greenspan, empenhado em justificar a resistência do Fed às sugestões de controle do crédito. No segundo tempo da jornada nas estrelas - o da supervalorização dos imóveis residenciais - outro argumento, já exarado na primeira "bolha", começou a prevalecer: a chamada Hipótese dos Mercados Eficientes. Formulada nos anos 70 por Eugenio Fama, a hipótese pretendia ensinar que todas as informações relevantes sobre os "fundamentos" da economia estão disponíveis em cada momento para todos os participantes dos mercados que avaliam os títulos de dívida e os direitos de propriedade. Diante das informações existentes, as decisões dos agentes racionais dariam ensejo à melhor estimativa possível sobre os preços dos ativos e, consequentemente, à melhor distribuição possível dos recursos entre os diferentes ativos. Em condições competitivas, não sobrevivem estratégias "ganhadoras" capazes de propiciar resultados acima da média.
A escultura do touro que dá boas vindas aos freqüentadores e visitantes de Wall Street sabe que a Hipótese dos Mercados Eficientes é uma fábula moralista recheada de letras gregas para simular respeitabilidade científica. Com ela, os nefelibatas da academia tratam de explicar aos trouxas que as estripulias bem remuneradas dos criativos rapazes do mercado são "ineficientes" para bater o mercado. Em artigo recente na revista Prospect, Robert Skidelsky, autor da mais completa biografia de Keynes, afirmou que a hipótese dos mercados eficientes "revela a falência intelectual da corrente dominante em economia. Ela não pode prever nem explicar a derrocada financeira porque os economistas acreditam que os mercados são auto-regulados".
A julgar pelo valor dos bônus, as façanhas dos mercados financeiros têm sido muito úteis para os rapazes do mercado. Também são "eficientes", se compreendidas tais façanhas em seu papel de impulsionar o "animal spirits" dos possuidores de riqueza na busca de novas oportunidades de lucro. Na economia capitalista moderna, a grande concentração de capital fixo, a competição feroz pela inovação tecnológica incorporada nas novas gerações de bens de produção e de consumo e os instrumentos de alavancagem financeira estão articulados de modo a suscitar o aumento continuado da produtividade social do trabalho.
O processo de reprodução capitalista - em suas indissociáveis dimensões material, financeira e monetária - impôs a dominância do sistema de crédito e dos mercados de avaliação da riqueza - incluído o Banco Central - na hierarquia de poderes que comandam a concorrência entre as empresas. (As inovações financeiras recentes e outras nem tanto são descendentes das técnicas de "alavancagem" dos bancos de depósito e dos procedimentos de repartição do risco).
No capitalismo realmente existente, o jogo da concorrência nos mercados alavancados obriga os gestores da grana e do risco a buscarem o rendimento acima da média, sob pena de serem desbancados pelo rival da esquina. Ligada a ignição da ganância infecciosa, os tripulantes não podem brecar o comboio da alegria. Por isso, no auge da euforia financeira quase todos os agentes estão numa situação Ponzi: se a ciranda pára de rodar, a tigrada quebra. Bernie Madoff não é a exceção, mas o abuso da regra.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário