Folha de S. Paulo
Narrativa contra STF organiza frustrações,
reforça laços e justifica ações antidemocráticas
Conheço ao menos uma pessoa que considera um
"ato de justiça" ver Alexandre de
Moraes enforcado em praça pública. Quem estava ao redor, quando
ela fez a declaração em alto e bom som, descontou o exagero retórico, mas
concordou com a essência.
Não se trata apenas de Moraes, mas, no
limite, de todo o Poder Judiciário e até do Ministério Público. Alexandre
funciona, nesse enredo, como síntese e personificação —útil para fins
narrativos e para organizar o ódio coletivo— da convicção de que certas pessoas
e instituições existem para destruir "o nosso lado", a direita
bolsonarista.
Também conheço muitos que defendem o impeachment do magistrado. Alguns apenas afirmam que, cedo ou tarde, isso ocorrerá; outros sustentam que a medida deveria ser tomada já, no auge da convulsão política. Estes últimos estão convencidos de que a entrega da cabeça de Moraes seria o único sacrifício capaz de aplacar a suposta "justa fúria" de Trump contra o Brasil.
Por trás disso está a convicção, amplamente
partilhada por uma parcela expressiva dos brasileiros, de que vivemos sob uma
"ditadura de
toga". No universo bolsonarista, não é tese nem hipótese, mas fato
evidente —só não vê quem está dominado pelo outro lado.
Não deveria ser necessário dizer, mas, por
mais severas que sejam as críticas a decisões polêmicas do STF, os
elementos essenciais de uma ditadura não se verificam. Conheço ditaduras, vivi
numa delas as duas primeiras décadas da minha vida. Hoje, mesmo as decisões
mais contestadas foram tomadas dentro de um marco institucional reconhecido
pela Constituição, aprovadas por colegiado e passíveis de revisão. Não houve
suspensão de garantias constitucionais, supressão sistemática do Legislativo ou
do Executivo nem ausência de freios e contrapesos.
Ora, se a percepção não corresponde aos
fatos, por que a crença resiste? Vamos às hipóteses.
A ideia de "ditadura de toga"
cumpre função psicológica e identitária: oferece um enquadramento simples,
moralmente carregado e útil para mobilização política. O núcleo factual
—decisões polêmicas e ativismo judicial— é apenas o ponto de partida; a
narrativa se sustenta pela predisposição a ver o mundo em termos maniqueístas,
a desconfiar de elites institucionais e a buscar alvos claros para frustrações
difusas.
A crença é funcional: insucessos eleitorais,
investigações contra lideranças e derrotas legislativas encontram no "STF
ditatorial" um inimigo externo e personalizado. Atribuir-lhe todo o peso
da frustração preserva a autoestima do grupo e a imagem positiva da liderança.
É também um mecanismo de projeção, já que defeitos e fracassos atribuídos ao
próprio campo são percebidos como agressões externas. Não há necessidade de
assumir responsabilidade por eles.
Além disso, encaixa-se perfeitamente na
simplificação moral da política, reduzida à luta entre um povo inocente e
virtuoso (os "patriotas") e seu líder abnegado, de um lado, e um
vilão centralizado e onipotente (o STF), de outro. Essa divisão atende à
necessidade de organizar o mundo em categorias rígidas de certo/errado,
amigo/inimigo —algo típico de estruturas de personalidade menos tolerantes à
ambiguidade.
Tais narrativas convertem predisposições
latentes —hostilidade a limites institucionais, desconfiança de instituições
pluralistas, necessidade de autoridade forte, rejeição de controle judicial
sobre líderes carismáticos— em ação política: manifestações, discursos
violentos e ataques à legitimidade judicial. Grupos que partilham essas
predisposições tendem a interpretar decisões judiciais contrárias ao seu campo
político como prova da existência de uma "ditadura".
A adesão à tese também opera como marcador de
pertencimento: quem a repete e defende se identifica como parte do grupo e
demonstra lealdade; discordar dela implica risco de exclusão simbólica,
reforçando a uniformidade interna. À medida que a tese ganha adesão,
desaparecem as posições moderadas e as concessões; quanto mais radical for a
posição manifestada ("enforquem-no!"), maiores as cotas de estima
oferecidas pelo grupo.
Por fim, se o Judiciário é visto como
ditatorial, medidas fora da normalidade democrática —da desobediência civil aos
ataques à credibilidade judicial, dos apelos por intervenção estrangeira até
propostas abertas de golpe de Estado— passam a ser tratadas como atos
legítimos. Esse é o perigo maior: a crença não apenas reorganiza a realidade
para caber no enredo que o grupo já abraçou como fabrica a licença moral para
romper com a democracia sob o pretexto de salvá-la.
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