quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A Violência na América Latina e a Cultura da Paz:: Dina Lida Kinoshita*

Introdução

Apesar da violência na América Latina ser secular, herança colonial e do passado de escravidão, seguida de políticas imperialistas britânicas e, posteriormente, norte-americanas, neste artigo trata-se de aspectos novos, que esta violência vem adquirindo nos anos mais recentes, fruto da globalização.

A violência na América Latina não ganha o mesmo espaço nos media que os conflitos da Ásia e dos Bálcãs e, em especial, do Oriente Médio, e com certeza, são conflitos de outra natureza, embora o número de vítimas seja comparável ou maior. De forma que, para construir a Cultura da Paz, é preciso entender a natureza dos conflitos de nossa época, que resultam de contradições estruturais e culturais. A globalização cria as melhores condições para um mundo mais justo de paz e liberdade e ao mesmo tempo agrava certos conflitos.

As mudanças que caracterizam a “crise de civilização”[1] são profundas e ocorrem de maneira extremamente rápida e surpreendente. A globalização é um efeito combinado de mudanças tecnológicas, econômicas, políticas e sociais.

Os conflitos atuais são uma mescla de problemas que vem se agravando desde o final da II Guerra Mundial. De modo que o novo mundo é cada vez mais complexo, contraditório e interdependente, exacerbando conflitos em algumas regiões e criando áreas de esperança em outras.[2] Entretanto a complexidade permite construir uma imagem nova da natureza e da sociedade.

O universo concebido como um engenho mecânico é substituído por um organismo vivo, mais imprevisíivel e instável, mas ao mesmo tempo mais aberto e criador.

Por suas especificidades, é possível considerar o período da globalização pós Guerra Fria como uma era separada e paradoxal em que existe maior potencial para as soluções negociadas e pacíficas de conflitos e ao mesmo tempo introduzir instabilidades e incertezas, onde afloram em toda sua crueza, conflitos anteriormente contidos pelos dois grandes blocos. Muitos destes conflitos são acompanhados de uma desumanização em larga escala do inimigo, que podem levar a limpezas étnicas e genocídios, mergulhando regiões inteiras em guerra. Estas características são um sintoma da deterioração dos princípios de sociabilidade.[3]

Os conflitos atuais induzidos pela globalização poderiam ser classificados cartesianamente, em dois tipos: os horizontais e os verticais. Os primeiros estão relacionados com a exacerbação dos deslocamentos sócio-econômicos e assumem a forma de crises causadas pelas mudanças profundas e instáveis nas relações entre capital e trabalho. Os segundos estão relacionados, sobretudo, aos problemas étnicos e raciais e ao fundamentalismo religioso, apesar de aflorarem também os problemas da alteridade tais como os movimentos de feministas, homossexuais, dos idosos etc.

No entanto os conflitos que estão despontando aparecem em geral em formas mistas ou transicionais já que os diversos problemas são altamente correlacionados. Para exemplificar, basta lembrar que os conceitos de Estado e soberania nacional são relativamente recentes e foram gestados nos últimos séculos atingindo seu apogeu nos séculos XIX e XX. Ambos têm ligação estreita com a ascensão capitalista e são produtos das migrações e comunicações de massa. O imaginário de um novo tipo de comunidade – a nação – foi levado às massas através dos media e de seus fundamentos teóricos baseados nas doutrinas e práticas políticas do republicanismo, liberalismo e democracia, desenvolvidos no início da era capitalista. As migrações massivas ocorridas desde os primórdios do capitalismo, mudaram de caráter nos últimos anos.
Por um lado o fluxo dessa migração que no passado se dava da metrópole para a periferia do sistema capitalista, na atualidade, isto se dá ao contrário[4] embora haja uma dissipação generalizada. Por outro, a escala e a velocidade de deslocamento dos modernos mercados dificultam qualquer forma tradicional de assimilação gradual ao novo meio. Ademais, os modernos meios de transporte e de comunicação encorajam os migrantes a se manter em contato com a pátria de forma inimaginável nos séculos anteriores. Assim, se no passado este processo propiciava o surgimento de novas nações que se desligavam da metrópole, nos dias atuais, o aparecimento em massa de milhares de migrantes em comunidades assentadas, acaba produzindo sua própria etnização na medida em que estes carregam consigo hábitos e costumes que se explicitam no vestuário, na alimentação, na religião, na música e nas relações familiares. Estes hábitos e costumes adotados por um grupo de imigrantes, natural e inconscientemente, assumem rapidamente uma diferença drástica muito visível nas diásporas da vida moderna. Desta forma, a miséria e a fome na periferia do sistema, os problemas étnicos e raciais, assim como o fundamentalismo religioso constituem aspectos diferentes do mesmo fenômeno. Por outra parte, com tanta mobilidade populacional é difícil controlar epidemias como a AIDS ou as novas formas de gripe ao passo que o enfraquecimento e ruptura de estruturas tradicionais de controle social dificultam o combate ao terrorismo político e/ou religioso, à narcoeconomia e ao crime e banditismo em geral. Este conjunto de fenômenos leva a uma erosão generalizada da ordem pública e segurança privada, o que também contribui para modificar os papéis tradicionais do Estado.

Os conflitos verticais, de origem étnica e religiosa, mais perigosos se concentram majoritariamente, ao longo de uma faixa que abarca Coréia, Índia, Paquistão, Irã, as ex repúblicas da Ásia Central e do Cáucaso que pertenciam à ex URSS, o Oriente Médio e os Bálcãs. São imensos os interesses estratégicos, econômicos e culturais desta vasta região. Para complicar a situação, há uma disputa entre o Islã com as civilizações mais antigas do hinduismo, judaísmo e cristianismo. Por outra parte, os estados surgidos com a derrocada do Império Otomano e outros impérios islâmicos, enfrentam ao mesmo tempo problemas transcorrentes da modernização de um mundo global e de populações subdivididas em um complexo sistema de minorias, subculturas e grupos de identidade que competem e se superpõem. [5]

Causas da violência na América Latina

Um tema recente que causa muita preocupação na América Latina e exigiria outro artigo é a corrida armamentista. Segundo Marx, a história só se repete como uma farsa e afirmar que a América Latina se transforma em um Continente Sombrio[6] como foi a Europa na primeira metade do século XX é um exagero. Porém não se pode esquecer que apesar de não haver ocorrido nenhuma guerra na América Latina no século XX, há uma série de conflitos adormecidos. Acresça-se a isso uma política de confronto da Venezuela com os EUA em que se chega a realizar exercícios conjuntos no Mar do Caribe com a Rússia. Tampouco falta gente nos altos escalões do poder no Brasil que querem retomar o projeto nuclear, o que daria oportunidade à Argentina para fazer o mesmo uma vez que o MERCOSUL está praticamente roto. Em todas as instâncias internacionais é frequente Argentina e Brasil votarem de maneira distinta. O UNASUÇ por enquanto é um espaço retórico. Na realidade estão se perfilando no Continente dois eixos: um de governos tradicionais com grandes vínculos com os EUA e, outro, de governos populistas autoritários com tintura esquerdista. E todos estão se armando e fortalecendo suas Forças Armadas debilitadas desde o fim das ditaduras militares. .

Mas os conflitos majoritários e a violência na América Latina têm mais características do tipo horizontal.

Modelos periféricos, extrovertidos e dependentes, aplicados em vastas regiões do continente, resultaram em pobreza e sequelas sociais e políticas, tais como violência, guerrilhas, narcoeconomia, migrações desordenadas, perda de auto-suficiência alimentar, poluição das águas etc.[7]

Derrotadas as ditaduras militares houve melhora no que diz respeito às liberdades civis, mas pouco se avançou quanto aos direitos sociais tais como a justiça social, liberdade de movimento e residência, igualdade frente à lei, o direito ao trabalho mediante uma remuneração justa, o direito ao seguro social entre outros será possível avançar. Ao mesmo tempo as sucessivas crises econômicas causam migrações expressivas de contingentes populacionais, estigmatizados dentro ou fora de seu país. Enquanto na Colômbia há enormes deslocamentos internos graças aos interesses da narcoeconomia ou aos enfrentamentos entre exército, paramilitares e guerrilhas, populações excluídas do Peru e da Bolívia vão trabalhar na economia informal do Brasil e da Argentina ou são escravizados em determinados ramos da produção, sobretudo nas confecções. As populações locais, em momento de crise, já os consideram como o “outro”, embora falem o mesmo idioma ou um similar e pratiquem a mesma religião, e da retórica de “nossa América”. É emblemático que os filhos de bolivianos sejam as vitimas preferenciais do “bullyng” nas escolas públicas de São Paulo nas zonas onde residem estes imigrantes. De maneira que a questão da tolerância ao multiculturalismo passa a ser relevante. Portanto a democracia clássica, regime de maioria, deve estabelecer regras para salvaguardar adequadamente as minorias.

A narcoeconomia merece uma atenção especial na medida em que responde em boa medida pela violência rural e urbana e degradação ambiental na América Latina. A partir dos anos 80 esta tem crescido de forma vertiginosa ocupando nos dias atuais o segundo lugar na economia internacional. É interessante notar que o mercado mundial está dominado nos primeiros lugares, respectivamente, pelo comércio da destruição e da contravenção, a saber: o tráfico de armas, a narcoeconomia e o tráfico de seres humanos, principalmente mulheres e crianças. Um agravante neste contexto é o fato de grande parte dos traficantes e usuários da droga sejam jovens que perderam qualquer perspectiva de futuro. Estes são dados objetivos sobre a decomposição que impera no sistema: a divisão internacional do trabalho capitalista tem sido em certos momentos tão perversa que chega ao ponto de especializar certos países na produção de tóxicos, porque afinal existe um mercado internacional para o tráfico de tóxicos. Apesar de o capital financeiro internacional apropriar-se da parte mais expressiva dos lucros, os narco-empresários utilizam a “lavagem de dólares” para reinvestir pelo menos uma parte dos lucros na economia dos países de origem. Na Colômbia, por exemplo, as exportações da droga atingem o triplo do valor do PNB e constituem o eixo da economia deste país. De um modo geral, nos países andinos produtores da droga, os narco-empresários dão uma saída ainda que perversa, às economias combalidas pela crise mundial e aliam-se aos setores mais conservadores da sociedade para barrar as reformas políticas e econômicas reclamadas pelos setores populares.[8] Mas não se pode esquecer que o colapso do “socialismo real” cria condições para um movimento guerrilheiro de caráter político, como as FARC, se envolver com a narcoeconomia e outros métodos criminosos como os sequestros. Por outra parte, no plano internacional, mesmo com o fim da Guerra Fria e do “perigo vermelho”, os EUA reafirmam seus interesses hegemônicos na América Latina. Para justificar esta dominação passam a utilizar, como discurso oficial, o combate ao narcotráfico. Assim, há uma ambigüidade entre os interesses do capital financeiro internacional e o discurso oficial de um dos países hegemônicos detentores deste capital. É a hegemonia do cinismo.[9]

Se os países andinos se especializaram no cultivo da folha de coca e no refino da cocaína e mais recentemente cultivam a papoula e produzem heroína, boa parte do continente latino americano participa da narcoeconomia. O Paraguai é um grande produtor de maconha e é neste país que os traficantes adquirem suas armas de pesado calibre, o que resulta na maioria das vezes na criminalidade mais bem equipada que os próprios exércitos e polícias da região. O Brasil possui milhares de quilômetros de fronteira com os países produtores e funciona como grande centro consumidor e corredor de tráfico para EUA e Europa. Não se pode deixar de mencionar a produção de maconha no “polígono das secas” no Nordeste brasileiro. Porém, a Argentina não está isenta uma vez que o rio Paraná e o estuário do Prata servem de desaguadouro para o tráfico enquanto o Uruguai é especializado como centro de “lavagem de dinheiro”.

Não se pode esquecer as “maras” juvenis centro-americanas e os cartéis de tráfico atuantes no norte do México. Uma crise econômica generalizada, alguns países recém pacificados onde perduraram por muitos anos guerrilhas combatentes de governos muito autoritários, criam um sentimento de impotência e dá impulso, como única escapatória, a uma emigração de grandes contingentes populacionais. Ainda que a Diáspora alivie a tensão social e gere a principal fonte de divisas destes países, esta emigração tem impactos dramáticos sobre o núcleo familiar, deixando jovens sem futuro e entregues a si mesmo. Estes jovens sem perspectiva de vida têm formado “maras” de delinquência juvenil dedicando-se ao crime e sobretudo, a uma guerra cujo único objetivo é destruir as “maras” rivais. Estes jovens não reivindicam temas sociais nem políticos e por sua visibilidade, são os “bodes expiatórios” tanto em seus países como nos EUA. São alvos cotidianos de deportações nos Estados Unidos e os governos centro-americanos acordaram um conjunto de medidas repressivas sem atacar as raízes sociais do problema. Estes fatos criam um alto grau de conflitividade na fronteira sul do México com a América Central não só por utilizar o território mexicano na busca do sonho americano, mas também pelo contrabando de armas, drogas e pessoas. E ao mesmo tempo estes jovens são alvos do crime organizado.[10]

A outra ponta da violência se encontra ao Norte do México, ao longo da fronteira entre os EUA e o México, espaço por excelência dos “coyotes” e dos cartéis da droga, notícias cotidianas dos media. O contexto é muito similar ao colombiano dos anos 90. À medida que a violência vinculada ao narcotráfico no México vem se convertendo em endêmica, a preocupação pela ameaça que representam os cartéis mexicanos vai aumentando em Washington. Tanto o Congresso como a Casa Branca já o consideram um dos principais desafios para a segurança do país.

Nos países andinos a Amazônia tem sido tratada como a porção mais esquecida dos respectivos territórios nacionais. São regiões que não têm sido incorporadas à territorialidade na medida em que o desenvolvimento demográfico se dá nas regiões do litoral ou na região andina, cenários fundamentais de seu desenvolvimento demográfico, social, econômico e político. As Amazônías têm sido uma espécie de retaguarda em muitos aspectos e têm servido para resolver a problemática agrária responsável por um grande desmatamento. Excedentes de populações gerados pela incapacidade da estrutura produtiva de absorvê-los vêm se deslocando para a Amazônia, configurando uma área de colonização marginal, carente de tecnologias adequadas para o meio. É uma colonização feita da pobreza e, em essas condições, afeta, em muitos casos de maneira irrecuperável, muitos dos recursos naturais[11].

Depois de várias tentativas de cultivo de produtos como a seringueira, o milho, a mandioca ou o arroz para os quais não havia subsídios governamentais, a partir dos anos setenta do século passado os camponeses, colonos que migram de outras regiões para a Amazônia, passam a fazer incursões em um cultivo até então desconhecido: a maconha e, com ela, a cadeia dos chamados cultivos ilícitos que modificam as formas de vida, as relações econômicas e culturais da região. Os cultivos ilícitos e, em particular, a coca entram em uma dinâmica ascendente e generalizada nas zonas de colonização da Amazônia colombiana, peruana e boliviana ao longo dos anos 90’s. Para o camponês resulta mais produtivo investir na folha de coca, já que é menos custoso transportar e comercializar a pasta de coca, que nos produtos alternativos.

Nos últimos anos, além da coca, na Colômbia vem sendo plantada também a papoula para produção de heroína. É preciso mencionar que os narcotraficantes colombianos compraram praticamente todas as terras do norte do Equador com o intuito de “lavagem de dólares”. Plantam ali tanto flores para exportação como a papoula. Ao sobrevoar a região é muito difícil distinguir os cultivos lícitos dos ilícitos. Oficialmente, consta que o Equador é um dos grandes exportadores de flores para a Europa e EUA.

Pressionados por muito tempo pelo governo norte-americano, os países da região têm erradicado os cultivos ilícitos de forma violenta, sem dar alternativas concretas às populações camponesas. Em algumas partes da Amazônia a ordem do governo é aspergir os cultivos de coca com produtos como o glifossato, altamente tóxico e cancerígeno. Ao realizá-lo, são atingidos outros cultivos e animais domésticos, agravando a situação econômica dos camponeses colonos. Devido à pouca capacidade de manobra das avionetas empregadas, parte do desfolhante é aspergido sobre áreas de mata virgem, causando sua destruição. Por outro lado, os camponeses perseguidos, vão avançando e abrindo clareiras na mata para novos plantios de cultivos lícitos e ilícitos, o que agrava o desmatamento.

Sem dúvida é preciso enfrentar o flagelo da narcoeconomia que tantos males têm causado ao mundo, mas é inaceitável que isto se faça à custa da violação dos mais elementares direitos. É emblemático que um cocalero tenha sido eleito e reeleito na Bolívia nos últimos anos. É um sinal da falta de opções de parcela majoritária do povo.

Ademais a narcoeconomia já se instalou na parte brasileira da Amazônia, o que conturba mais o panorama da região, com uma possível militarização crescente. Não é preciso ser especialista para constatar que a deficiente infra-estrutura aeroportuária das cidades fronteiriças, as inúmeras vias fluviais e a passagem de fronteiras por terra como a avenida que separa Tabatinga (Brasil) de Letícia (Colômbia), em que não existe nenhum controle, propiciam o tráfico e o contrabando de toda espécie. Por outra parte, não existe “Calha Norte” (projeto dos militares brasileiros de ocupar as fronteiras), nem outra solução militar que obstrua os negócios ilícitos se não houver uma alternativa socioeconômica para estas populações marginalizadas. Os indígenas Ticunas que vivem na fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia, os habitantes ribeirinhos e pescadores e os próprios militares estão implicados em negócios ilícitos uma vez que a remuneração é ordem de magnitude maior que a obtida com as culturas de subsistência ou os soldos militares.

Os setores atrasados do capital interessados em matérias-primas tradicionais, como madeira e minérios, que implicam uma destruição maior da floresta têm sido dominantes na região até o presente. Cabe uma reflexão sobre as conexões do capital atrasado com o capital da contravenção. É muito comum a narcoeconomia ocupar ou aliar-se com as infra-estruturas de contrabando históricas e comuns na região. A título de exemplo, se pode citar os “garimpos” onde a contravenção se instala através da prostituição e do contrabando de ouro. A narcoeconomia passa a coexistir com ambos ou ocupa a infra-estrutura quando o “garimpo” se exaure. Entretanto, o capital obtido por estes setores acaba sendo apropriado pelo capital financeiro internacional, graças às facilidades da “lavagem de dinheiro” proporcionado por um capital desterritorializado, em permanente deslocamento em busca de máxima valorização sem importar-se com a origem do dinheiro.

Se o exemplo das Amazônia é o mais gritante, a situação se repete em vastas regiões do continente e envolve em geral os camponeses pobres, indígenas e negros.

Os cartéis da narcoeconomia constituem a parte mais importante do Crime Organizado na América Latina. As organizações latinas americanas dedicadas ao narcotráfico, se estendem por quase todas as atividades ilícitas conhecidas (sequestro, pirataria, extorsão etc) constituem empresas muito bem sucedidas. Praticamente estão presentes em toda a América Latina e possivelmente estão a estabelecer sucursais na Europa e outras partes do mundo. Utilizam tecnologias de ponta e estratégias de mercado. Um exército de advogados, administradores e outros profissionais estão a seu serviço. Muitas vezes estes profissionais são filhos ou outros familiares dos donos do “negócio” com características de mafiosos e ao mesmo tempo de grandes transnacionais. A narcoeconomia tem construído uma cultura, com uma escala de valores própria, fonte de inspiração para jovens nas sociedades latinos americanas com um tecido social esgarçado, onde a corrupção e o duplo discurso permeiam o empresariado, os políticos, juízes e educadores.

Nos centros urbanos estas organizações criminosas vinculadas à narcoeconomia se instalam nas periferias abandonadas pelo Estado. Organizam a vida social, prestam serviços que deveriam ser da responsabilidade da rede pública e oferecem empregos rentáveis a grandes contingentes de jovens sem perspectiva de obter um emprego regular.

Entretanto as leis draconianas de lealdade que vigem intragrupos e as disputas intergrupais são responsáveis por chacinas cotidianas que ceifam centenas de vidas. Estatísticas policiais de São Paulo e Rio de Janeiro estimam que cerca de 80% dos crimes praticados estão relacionados a esta economia ilícita. Em termos dos grupos comunitários onde age, a narcoeconomia é uma força fragmentadora tanto pela violência que gera como principalmente pelas “formações e vínculos sociais que promove”. Por outra parte, a narcoeconomia vem renovando a disputa de poder e a corrupção, constituindo novas elites, mas também revigorando o poder de elites decadentes com que facilita o trânsito rápido e eficaz entre os corredores da criminalidade e os corredores dos poderes republicanos.[12]

Não se pode criminalizar apenas os camponeses pobres produtores de coca e papoula ou os pequenos traficantes nas zonas urbanas. É preciso implantar políticas públicas integradas para diminuir o consumo de entorpecentes. Não é fácil fazê-lo uma vez que se produzem cada vez mais produtos mais agressivos e mais baratos como o crack, utilizados em larga escala com danos quase imediatos. Sem esquecer as drogas sintéticas produzidas em laboratórios em outras partes do mundo. Os camponeses podem perder sua fonte de renda mas os cartéis se adaptam com muita facilidade para negociar qualquer mercadoria. Portanto é fundamental para enfrentar o Crime Organizado seguir a mobilidade financeira do capital ilícito. É necessário articular as Polícias e as Secretarias da Receita Federal ou órgãos análogos de toda a América Latina para seguir o movimento financeiro para desbaratar as organizações do tráfico de drogas e armas. Para este procedimento de investigação as redes tecnológicas desempenharão um papel fundamental. Esta tarefa também não será possível enquanto o mundo continua tolerando os paraísos fiscais com suas contas secretas.

Esperanças e soluções

Não existe uma solução definitiva para os problemas latino americanos no atual paradigma, só paliativos.

Os cenários para o futuro vão da barbárie até uma sociedade global regida pela cidadania global e por uma federação democrática internacional de nações. De acordo com Marx, o ser humano vai solucionando os problemas com os quais se defronta, visão complementada por Gramsci quando afirma que o “...pessimismo da inteligência pode ser unido a um otimismo da vontade nos políticos realistas...”[13] Urge a instalação de uma Governança Global Democrática visando um futuro comum de paz, justiça social, liberdade e solidariedade para a humanidade com a eliminação dos sentimentos egoístas e xenófobos, dos conflitos econômicos, de uma distribuição de renda perversa entre seres humanos e nações, da intolerância de toda espécie, da criminalidade e do desprezo peã sustentabilidade do meio ambiente. Neste novo paradigma há um reconhecimento crescente da integralidade e interdependência de todos os aspectos da realidade e da experiência. Isso requer o fortalecimento de organizações supranacionais governamentais e da sociedade civil, como as ONG’s para tratar não só do comércio internacional mas também de justiça, saúde, educação, cultura, ciência e tecnologia, combate ao crime organizado e segurança internacional, direitos humanos, grupos feministas, de jovens e idosos, tratados ainda de forma incipiente Para tanto é importante a reforma democrática das Nações Unidas e todas suas subsidiárias.

Este novo paradigma consiste em uma busca de novos valores, novas visões e novos princípios de vida. Este novo paradigma exige uma educação menos competitiva e mais aberta à cooperação e uma revisão dos próprios princípios que regem a paz, os direitos humanos, a democracia e a tolerância. A paz não pode ser apenas a ausência de guerra mas a construção de um novo sistema de valores humanistas que privilegie a solução não violenta de conflitos de quaisquer natureza. Contudo é impossível solucionar tais conflitos se os Direitos Humanos não são respeitados. A nova solidariedade deve abandonar abordagens baseadas na cobiça ou escassez a favor de elementos que levem em conta a suficiência de recursos e a preocupação com o outro. Neste sentido a preocupação com as gerações futuras exige esforços por um desenvolvimento em consonância com os princípios ecológicos e limites ambientais. É necessário substituir o modelo de competição e confronto desenfreados por um regido pela cooperação e a parceria em todas as esferas da vida sócio-econômica e política.

As novas tecnologias da informação e comunicação bem como a inclusão digital são responsáveis por uma explosão sem precedentes da informação e do conhecimento através de redes de comunicação eletrônica em todas as áreas do saber. Por outra parte as novas redes têm elementos altamente democratizantes na medida em que há cada vez mais gente participando, ainda que de forma desorganizada, de uma “assembléia eletrônica” de reflexão sobre os problemas comuns. Há que destacar que estas redes horizontais tendem a substituir os sistemas sociais verticais, altamente hierarquizados e fechados, por outros mais abertos e democráticos. Isto propicia uma descentralização do poder e novos modos de auto-organização de comunidades, que exige a revitalização da sociedade civil e instituições globais adequadas ao novo paradigma.

É notável um despertar de uma globalização da consciência e da espiritualidade.[14] Apesar da reação dos fundamentalistas religiosos à globalização, cada vez há mais pessoas empenhadas “em redefinir sua identidade religiosa de maneia mais aberta, criativa e tolerante, dando oportunidade ao diálogo entre várias crenças”[15]. Há uma busca por um elo mais profundo entre o homem e a natureza, o homem e seu criador (para aqueles que crêem em Deus), e por uma harmonia restaurada entre a pequena partícula humana e a totalidade do Universo.

Mas o obstáculo mais importante e talvez o mais difícil de vencer seja a mudança da mentalidade humana; as barreiras psicológicas e emocionais resultam da relutância natural da mente humana em aceitar mudanças. Trata-se de uma defesa psicológica, muitas vezes atrativa, que nos salva do incômodo de pensar nos difíceis problemas da atualidade e permite o uso de idéias e conceitos ultrapassados porém bem conhecidos.[16] Assim, o papel exercido pela educação e pela informação torna-se fundamental tanto para a formação dos jovens como para as gerações adultas que cresceram com as tradições do passado e frequentemente as consideram como normas únicas.

Em resumo, a emergência de aspirações novas à cidadania, à democracia, à solidariedade e à preservação do meio ambiente, à justiça e à paz, atravessa todas as soluções possíveis da sociedade. É uma época contraditória onde a busca de soluções às dificuldades pode coexistir com os medos, as inquietações, as divisões e as regressões nascidas do aprofundamento da crise. É a contradição entre a aspiração a outra sociedade, a outra política e os sentimentos de fatalidade, de isolamento, de impossibilidade de transformar as coisas, de desesperança, de pensar “que não há nada a fazer”[17]. De forma que os graves problemas de violência que acometem a humanidade em este momento podem evoluir a longo prazo, através de uma transição difícil e dolorosa para uma situação mais positiva em que através da auto organização[18], a humanidade seja capaz de controlar seus destinos para viver em paz, com liberdade, democracia e justiça social em uma sociedade planetária de identidades reconstruídas. Jamais houve um contraste tão agudo entre esperança e realização. Sem determinismos, esta é uma possibilidade.


[1] Kinoshita, D.L., “Y ahora, que mundo?”, in 11 de Septiembre: las caras de la globalización, organizado por Valqui, C., pág 185-205, Ed. Laguna, 2002;

[2] Mikhail Gorbachev, “Perestroika: novas idéias para o meu país e o mundo”, Ed. Best Seller, div. da Nova Cultural Ltda., São Paulo, 1987

[3] Demant, P., “Programa de trabalho apresentado à Cátedra UNESCO do IEA, na área de Cultura da Paz”

[4] Anderson, B, “The New World Disorder”, New Left Review, nº 193, London , 1992

[5] Idem referencia anterior

[6] Mazower, M., “Continente Sombrio”, Companhia das Letras, São Paulo, 2001

[7] J. M. Quadros Alencar, “O significado político e econômico da Amazônia para a América Latina - Por uma agenda amazônica”, trabalho apresentado na Conferência Internacional, UMA ESTRATÉGIA LATINO AMERICANA PARA A AMAZÔNIA, promovida pelo Memorial da América Latina, realizada em São Paulo entre 25 e 27 de março de 1992

[8] Coggiola, O,, “Questões de História Contemporânea”, Ed. Oficina de Livros, Belo Horizonte, 1991

[9] Ribeiro, M. M. e Seibel, S. D (org), “Drogas: Hegemonia do Cinismo’, Fundação Memorial da América Latina, São Paulo, 1997

[10] Sandoval, C., “Nossa fronteira sul”, Política Democrática, , ano VI, N!(, pág 136 – 139, FAP, Brasília, 2007

[11] van Viet, K. G, Vieco, J.J., Useche, M., (coordinadores), “Amazônia, Identidad y Desarrollo”, Fondación Manoa, Bogotá, 1990

[12] “Narcotráfico e violência no Campo”, org. por Ana Maria Motta Ribeiro e Jorge Atílio S. Iulianelli, Ed. Koinonia/DP&A, Rio de Janeiro, 2000

[13] Gramsci, Antonio, “A Política e o Estado Moderno”, 3ª edição, Ed. Civilização Brasileira, 1978

[14] Ervin Laszlo, “Transição para uma Sociedade Global e o Espírito de Cidadania Mundial”, 1º Encontro Latino-Americano para a Cidadania Mundial, São Paulo, 1996

[15] Demant, P., idem

[16] Andrey Y. Melville, op. cit.

[17] Castiel, “A. Educação para Valores Humanos do Amanhã”, in Série Cátedr UNESCO, Instituto de Estudos Avançados – USP, São Paulo, 2001

[18] Prigogine, I., Stengers, I., “Order out of chaos: man’s new dialogue with nature”, Ed. Bantam, New York , 1984
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Um comentário:

Diego Corte disse...

Texto espetacular.

Este não é só um artigo. É mais um tratado sobre todas essas desgraças que afligem a nossa América Latina.

Vou guardar este texto, Gilvan, e ler pelo menos mais umas três vezes. É verdadeiramente muito abrangente e esclarecedor.

Obrigado por tê-lo postado, Gilvan.

Forte abraço

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