PEC da Transição é resposta errada a desafio fiscal e social
O Globo
Solução pode ter deixado o novo governo e
parlamentares satisfeitos, mas está longe do que o Brasil precisa
A aprovação
ontem na Câmara da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da
Transição logrou a proeza de satisfazer ao novo governo, aos parlamentares e
até ao mercado financeiro. Infelizmente, ela é uma resposta muito longe de
satisfatória aos desafios impostos pela crise fiscal e pelas demandas sociais.
Trata-se de uma PEC desnecessária, perdulária e conceitualmente equivocada.
A alegria da equipe que subirá a rampa do Palácio do Planalto vem da licença para gastar em 2023 mais R$ 168 bilhões além do previsto na proposta orçamentária original. A felicidade dos parlamentares, da adição de R$ 9,7 bilhões às emendas individuais, quase dobrando a cota que cada um tem direito de enviar a seus projetos de estimação. O respiro do mercado, do alívio porque a gastança poderia ser pior, mas a Câmara reduziu a apenas um ano o estouro autorizado no teto de gastos.
Nada disso significa, contudo, que o resultado
será bom para o Brasil. A aprovação de uma PEC é desnecessária para manter no
Orçamento de 2023 os pagamentos do novo Bolsa Família em R$ 600, pretexto
alegado para justificá-la. Decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo
Tribunal Federal (STF), autorizou o gasto com base em regras já presentes na
Constituição, na folga orçamentária aberta pelo adiamento do pagamento de
dívidas judiciais (precatórios) e em créditos extraordinários que poderiam ser
emitidos por meio de Medida Provisória.
Além de desnecessária, a PEC é perdulária
por abrir um espaço no Orçamento além do razoável para as despesas essenciais.
Mesmo no formato ampliado para pagar R$ 150 por criança menor de 6 anos, o novo
Bolsa Família exigiria R$ 70 bilhões além do já orçado. Com mais R$ 10 bilhões,
seria possível recompor programas esvaziados, como Farmácia Popular ou merenda
escolar. O total exigido pelas urgências não chega perto dos R$ 145 bilhões
autorizados em estouro do teto, mais R$ 24 bilhões em investimentos.
Por fim, a PEC resulta de uma sucessão de
erros conceituais. Primeiro: é a terceira iniciativa recente do Congresso que
viola um arcabouço fiscal que deveria ser preservado (as anteriores foram as
PECs dos Precatórios e Eleitoral). Não é outro o motivo de ansiedade dos
investidores com a dívida pública.
Segundo: a PEC retira despesas permanentes
do teto de gastos, quando as discussões em torno da revisão do mecanismo
sugerem retirar investimentos, cujo retorno em tese justificaria outra
contabilidade. O teto existe para disciplinar gastos recorrentes. É o caso do
velho Bolsa Família, do novo e de várias outras despesas de cunho social, como
benefícios previdenciários. O que acontecerá quando chegar 2024 e os mesmos
pagamentos tiverem de ser mantidos? O gasto não desaparecerá.
Terceiro: a PEC ignora os problemas de
fundo do Auxílio
Brasil, programa social que deteriorou a qualidade do gasto público.
O Bolsa Família custava R$ 32 bilhões antes da pandemia e era mais eficaz no
combate à pobreza que o auxílio atual com R$ 175 bilhões. Por mais que os
pobres tenham aumentado, é injustificável desperdiçar dinheiro quando o país
detém conhecimento e experiência para fazer melhor.
Que nenhum desses temas tenha despertado
discussão séria em Brasília — ao mesmo tempo que os parlamentares correram para
repor perdas decorrentes do fim do orçamento secreto — é mais uma evidência das
motivações que animam nossa classe política.
Libertação de Sérgio Cabral ilustra como
Justiça favorece impunidade
O Globo
Corrupto confesso condenado a 425 anos,
ex-governador não recebeu sentença definitiva em processo algum
Último condenado da Operação Lava-Jato que
ainda estava preso, o ex-governador do Rio Sérgio Cabral saiu
da cadeia depois de seis anos e 22 dias. Sua libertação tornou-se mais um
pretexto para críticas aos exageros da força-tarefa de Curitiba. Mas, por mais
que a Lava-Jato tenha cometido excessos e que Cabral já devesse ter sido solto,
seu caso na verdade serve para ilustrar outro problema: a dificuldade da
Justiça brasileira para condenar um corrupto confesso.
No voto decisivo em que o Supremo Tribunal
Federal (STF)
transferiu Cabral para o regime de prisão domiciliar num apart-hotel de
Copacabana com vista para o mar, o ministro Gilmar Mendes fez a constatação
sensata de que uma prisão provisória tão longa “representava a antecipação da
pena”. Também lembrou que Cabral não está inocentado em nenhum dos vários
processos em que é acusado, pois eles ainda não foram a julgamento final. O
caso é, portanto, um exemplo acabado de como a legislação penal brasileira
funciona como incentivo à impunidade.
Cabral foi alvo da força-tarefa da Lava-Jato
no Rio e está denunciado em 35 processos. A Operação Eficiência tratou de seu
patrimônio oculto, e a Calicute, lançada a partir de Curitiba para investigar
corrupção na construção da usina nuclear de Angra-3, descobriu uma rede montada
por Cabral para subornar empreiteiros e empresários.
Ele fez inúmeras confissões a respeito das
propinas variadas que recebia, que apelidou de “taxa de oxigênio”. “A tradição
era 10%, 20%, 30%. E aqui não quero me eximir, querendo ser bonzinho não, por
cobrar 5%. Mas essa era a tradição do segmento”, afirmou Cabral sobre o
dinheiro que obtinha em áreas como Educação, Saúde e Transporte. Houve
corrupção na reconstrução do Maracanã e até na terraplenagem do terreno do
Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), em Itaguaí. Condenado em
diversos processos a penas que somam 425 anos, ele chegou a fazer autocrítica:
“Foi meu erro de postura, de apego ao dinheiro. Isso é um vício”.
Cabral só era mantido preso preventivamente
em razão da decisão do STF do final de 2019 definindo que as sentenças
começariam a ser cumpridas não mais mediante a confirmação da pena na segunda
instância, mas só depois da sentença definitiva, esgotados todos os infindáveis
caminhos que a Justiça brasileira oferece a réus que podem pagar bons advogados.
Entre aqueles que contam com assessoria jurídica competente, capaz de anular provas com base em filigranas processuais ou de estender os recursos até a prescrição dos crimes, voltou a predominar o sentimento de impunidade. Tão logo a Justiça referendou a suspeição do juiz Sergio Moro na Lava-Jato, os condenados e denunciados pela força-tarefa trataram de limpar seus prontuários judiciais. Não espanta que Sérgio Cabral, com todas as suas confissões e provas validadas pela Justiça, também se aproveite das brechas oferecidas aos corruptos pela lei brasileira.
MEC cearense
Folha de S. Paulo
Lula valoriza índices do estado e considera
pressão petista em cargos na pasta
Ao indicar
Camilo Santana (PT) para encabeçar o Ministério da Educação e
Izolda Cela (sem partido) para a Secretaria de Educação Básica, o presidente
eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), emite sinais favoráveis e outros nem
tanto sobre a formação do governo.
Decerto que, em comparação com a desastrosa
condução da pasta sob Jair Bolsonaro (PL), seria difícil não haver avanços.
Mais que isso, a dupla Santana-Cela reúne condições para uma gestão ditosa.
O primeiro, que até o início deste ano era
governador do Ceará, cargo ao qual renunciou para lançar-se numa vitoriosa
campanha ao Senado, conseguiu manter o estado na vanguarda dos avanços
nacionais em ensino, posição que já ocupa há vários anos.
Também mostrou-se um político habilidoso e
conseguiu eleger seu sucessor em primeiro turno. Capacidade de diálogo e
articulação é característica sempre bem-vinda em um ministro.
Mais difícil para Lula pode ser explicar a
decisão de não indicar Cela para comandar o MEC. Atual governadora do Ceará,
cargo que herdou de Santana, ela estava no PDT, mas teve de abandonar o
partido. Perdeu a chance de disputar a reeleição porque se desentendeu com o
pedetista Ciro Gomes, entre outras razões, por apoiar Lula.
Diferentemente de Santana, que é engenheiro
agrônomo, Cela é educadora e vista por
profissionais da área como uma das grandes responsáveis pelas importantes
conquistas do Ceará no setor, desde os tempos em que ocupou
postos na cidade de Sobral.
O estado tem se destacado em indicadores de
aprendizagem nos últimos anos, graças a políticas como o repasse de ICMS aos
municípios vinculado ao desempenho das escolas —ideia que hoje inspira uma lei
nacional em implantação.
Por ser do ramo, mulher, estar disponível a
partir de 1° de janeiro e contar com apoio de grande parte dos especialistas,
Cela era vista como a favorita ao posto. Entretanto o PT quis o cargo.
Pelo que se noticia, também pesou contra a
governadora o seu bom trânsito com grupos de origem na iniciativa privada que
desenvolvem projetos educacionais, como a Fundação Lemann. O que deveria ser
vantagem torna-se opróbrio nas hostes petistas.
Ao preterir a nomeação de Cela para
satisfazer apetites partidários, sobretudo de sua legenda, Lula indica que seu
governo talvez não seja uma frente tão ampla quanto apregoava durante a
campanha.
De toda maneira, se Cela mostra-se disposta
a trabalhar com Santana, que não é uma má escolha, só o que se pode fazer é
desejar-lhes sucesso. A educação brasileira precisa, após o desmonte na gestão
Bolsonaro e a tragédia da pandemia.
Além do reajuste
Folha de S. Paulo
Aumento salarial na cúpula dos Poderes
evoca distorção da administração pública
Por si só, o reajuste
dos vencimentos das mais altas autoridades da República,
recém-aprovado pela Câmara dos Deputados, não implicará despesas federais
exorbitantes nem resultará em ganhos pessoais nababescos.
Conforme as estimativas oficiais, a medida,
que eleva o teto salarial do serviço público, terá custo de R$ 2,5 bilhões, já
considerando suas repercussões no restante do funcionalismo. Trata-se de
montante não muito significativo em um Orçamento que se aproximará da casa dos
R$ 2 trilhões.
O projeto, que agora será examinado pelo
Senado, eleva a R$ 46,4 mil mensais os salários do presidente e de seu primeiro
escalão, dos ministros do Supremo Tribunal Federal e dos parlamentares do
Congresso Nacional. Os índices de alta, que variam em cada caso, estão abaixo
da inflação acumulada desde o aumento anterior.
Há mais em torno do tema, porém, a impedir
que o reajuste seja encarado como providência corriqueira —e nem é preciso
mencionar a votação apressada nos instantes finais do ano legislativo.
O teto salarial dos servidores, hoje de R$
39,3 mil mensais, está entre as muitas normas da administração pública que
demandam reformas adiadas há décadas. Não se fala, aqui, de medidas complexas:
basta fazer com que o limite moralizador seja cumprido.
São notórios os expedientes empregados nos
três Poderes, como abonos, auxílios e acúmulo de vencimentos, para viabilizar o
pagamento de cifras bem superiores. Tentativas de disciplinar os procedimentos
acabam rotineiramente esquecidas no Congresso Nacional.
Propostas mais ambiciosas, como a revisão
do alcance da estabilidade no emprego, foram deixadas de lado sob Jair
Bolsonaro (PL), por corporativismo. Com Luiz Inácio Lula da Silva (PT), os
empecilhos serão ainda maiores.
A nova benesse é também sintomática do
ímpeto gastador de Brasília —a cúpula política e institucional teria dificuldade
muito maior em elevar seus próprios ganhos se o momento
fosse de ajuste em outras despesas orçamentárias.
A rodada de expansão de dispêndios começou com um objetivo correto, a assistência aos mais pobres, e vai se espraiando pela máquina pública, de áreas fundamentais como saúde e educação às famigeradas emendas de relator. Está preparado também o terreno para reajustes generalizados ao funcionalismo, bem mais custosos.
A quem serviu o orçamento secreto
O Estado de S. Paulo.
Emendas de relator facilitaram a vida de
Bolsonaro, mas o que elas realmente garantiram foi o poder desmedido da Mesa
Diretora da Câmara, ante o Executivo e o próprio plenário
Em março de 2019, o então presidente da
Câmara Rodrigo Maia (PSDB-RJ) diagnosticou a existência de um problema que
acabaria por se tornar crônico ao longo do mandato de Jair Bolsonaro. Ao falar
sobre as dificuldades do governo para aprovar a reforma da Previdência, Maia
discorreu sobre a dinâmica entre o Executivo e o Legislativo e as atribuições
que cabiam a cada um dos Poderes. “O presidente da Câmara, que sou eu, vai
continuar dentro da Câmara, dialogando com os deputados, mas eu não tenho
responsabilidade e nem o governo pode me delegar responsabilidade de construir
uma base para o governo”, afirmou.
Nunca compreendida pelo governo, a mensagem
sintetiza o que foram as relações entre os Poderes nos últimos anos. Muitas
vezes, Maia foi acusado de boicotar os projetos defendidos pelo presidente. É
verdade que o deputado nunca levou a plenário propostas caras ao bolsonarismo,
como as ligadas a costumes, mas também é fato que foi sob sua presidência que
os parlamentares deram aval a marcos como a reforma da Previdência, a Lei do
Saneamento e a Lei do Gás.
O bolsonarismo, porém, não aceita a
independência dos Poderes, e foi assim que decidiu apostar suas fichas na
eleição de um aliado para o comando da Câmara. Em 2020, a Secretaria de Governo
deu início ao orçamento secreto, privilegiando parlamentares dispostos a votar
em Arthur Lira (PP-AL) com as emendas de relator. Inapto e sem disposição para
a articulação política, o presidente cedeu o controle de uma parcela da peça
orçamentária para se manter no cargo e terceirizou a Lira a função que Maia
recusou: formar uma maioria na Casa para aprovar os projetos de interesse do
governo.
Sob esse ponto de vista, há quem veja que o
Supremo Tribunal Federal (STF), ao declarar a inconstitucionalidade do
orçamento secreto, tenha reduzido os instrumentos que o Executivo tem à mão
para negociar o apoio do Legislativo e gestado uma crise para o presidente
eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Se isso fosse verdade, isto é, se a
governabilidade construída à base de emendas de relator fosse garantida, os
deputados jamais teriam rejeitado, por exemplo, a PEC do voto impresso, a maior
e mais amarga derrota imposta a Bolsonaro.
É claro que a intenção inicial não era
essa, mas quem mais se beneficiou do esquema foi Lira. Não é coincidência que o
orçamento secreto tenha nascido e morrido às vésperas da eleição do comando da
Câmara. Com recursos bilionários à sua disposição, distribuídos por critérios
que só ele conhecia, Lira não perdeu nenhuma votação na Casa, à exceção da PEC
do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). As negociações entre Lula e
o presidente da Câmara para aprovar a PEC da Transição provam que a base
aliada, afinal, nunca pertenceu a Bolsonaro. Explicam, também, as razões pelas
quais o moribundo governo acabou no dia em que ele perdeu a eleição, em 30 de
outubro.
Não há dúvida de que as emendas de relator
facilitaram a vida de Bolsonaro, mas o que elas realmente garantiram foi a
onipotência da Mesa Diretora. A instituição legislativa, pela primeira vez na
história, assumiu uma função típica do Executivo e passou a executar uma parte
do Orçamento. As emendas, por fim, fortaleceram a posição do presidente da
Câmara perante o próprio plenário de deputados, desequilibrando as relações entre
os parlamentares a ponto de, até agora, não haver desafiantes para disputar a
eleição com ele em fevereiro.
A ausência das emendas de relator cria,
portanto, mais do que uma chance para a reconstrução das relações entre
Executivo e Legislativo a partir de novas bases. Abre, também, uma oportunidade
para restabelecer as condições de igualdade entre cada um dos 513
parlamentares. O orçamento secreto, afinal, sujeitou todos aos desígnios da
Mesa Diretora e retirou a autonomia dos deputados para votar conforme a
orientação de seu partido ou sua própria consciência. O fim do instrumento
pode, por fim, representar o resgate da maior virtude do plenário: a garantia
de que cada voto tem exatamente o mesmo valor.
Boiada sem fim
O Estado de S. Paulo.
Ao liberar a extração de madeira em terras
indígenas a duas semanas do fim do mandato, governo Bolsonaro confirma: seu
descaso com a preservação do meio ambiente não tem limite
Do início ao fim, foram quatro anos
passando a boiada. Eis, infelizmente, a melhor síntese da atuação do governo do
presidente Jair Bolsonaro em relação ao meio ambiente. A mais nova demonstração
de descaso com a preservação das florestas veio a duas semanas do término do
atual mandato: uma instrução normativa publicada no Diário Oficial da União
autoriza a extração de madeira em terras indígenas, abrindo caminho para a
devastação de uma das últimas fronteiras contra o desmatamento no País. Má
notícia para quem se preocupa com a conservação do planeta.
A iniciativa, claro, atende a interesses
poderosos. Como se sabe, as terras indígenas são áreas demarcadas e, em tese,
protegidas. Por isso mesmo, concentram vastas porções de mata nativa, o que
acaba despertando a cobiça de muita gente em regiões onde o crime organizado
está presente. Como noticiou o Estadão, essas áreas já são alvo da exploração
ilegal que se vale de falhas na fiscalização. Cabe perguntar: a quem interessa
flexibilizar regras para permitir a extração de madeira em terras indígenas?
A instrução normativa é obra conjunta da
Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Além de autorizar a derrubada de
árvores em áreas indígenas, prevê que isso possa ser feito por “organizações de
composição mista”, isto é, por associações formadas por indígenas e não
indígenas. Mais um disparate que abre brechas para a exploração indevida de
florestas em localidades que, na verdade, devem servir de barreira ao
desmatamento.
Não surpreende que representantes de organizações
ambientais tenham reagido no mesmo dia em que a instrução normativa foi
publicada, denunciando que o ato atropela a Constituição e o Estatuto do Índio.
Entrevistada pelo Estadão, a advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto
Socioambiental, foi categórica ao afirmar que a nova regra “afronta o usufruto
exclusivo que os indígenas têm das riquezas dos rios, lagos e solos” nas terras
demarcadas.
Fosse em qualquer outro governo, a simples
menção à Funai e ao Ibama sugeriria, em princípio, tratar-se de medida voltada
à proteção do meio ambiente e dos povos indígenas. Sob Bolsonaro, porém, os
sinais se inverteram: não raro, nos últimos anos, autoridades e setores do
governo que deveriam zelar por sua missão institucional foram flagrados agindo
em sentido contrário. Uma lástima.
Nada disso surpreende, considerando que o
próprio ministro do Meio Ambiente deixou claro, a certa altura, que o governo
deveria aproveitar que a atenção nacional estava mobilizada pela pandemia de
covid-19 para “passar a boiada” – isto é, aprovar a toque de caixa leis e
normas tendentes a destruir o arcabouço de proteção ambiental, em nome do
“progresso” e do “desenvolvimento”. Não à toa, o Brasil virou pária
internacional e foi escanteado nas discussões globais a respeito das mudanças
climáticas, tema central em todo o mundo. Esse mesmo ministro deixou o governo
em 2021, na condição de investigado em um caso de exportação ilegal de madeira.
Sem dúvida, o próximo governo fará bem se
puser fim aos diversos atos danosos ao meio ambiente produzidos na gestão
Bolsonaro, como, por exemplo, as medidas que facilitaram o garimpo na Amazônia.
Os olhos do mundo, com razão, estão voltados para a política ambiental
brasileira, e é preciso mudar drasticamente o rumo do que foi feito nos últimos
quatro anos.
Mas ainda restam alguns dias desse governo
tão danoso ao meio ambiente, e, como mostra a decisão que permite a extração de
madeira em reservas indígenas, sua capacidade de destruição ainda não se
esgotou. Menos mal que não há ato legal capaz de frear o tempo: a partir de 1.º
de janeiro, o presidente que classificou como fake news as informações
alarmantes sobre a devastação na Amazônia durante seu mandato já não estará
mais lá para insultar a inteligência dos cidadãos brasileiros nem para continuar
sua razia ambiental.
A democracia se defende
O Estado de S. Paulo.
Ao sugerir indiciamento de Trump, comissão
mostra que tentativas de golpe devem ter custos para os golpistas
A comissão da Câmara dos Representantes dos
Estados Unidos encarregada de investigar o assalto trumpista ao Capitólio, em 6
de janeiro de 2021, fez história na sessão de votação de seu relatório final,
no dia 19 passado. No documento, aprovado por unanimidade, os membros da
comissão pediram o indiciamento do expresidente Donald Trump por quatro crimes
relacionados àquela intentona: obstrução de processo oficial do Congresso,
conspiração para fraudar o governo, conspiração para fazer declaração falsa e
incitação ou auxílio a uma insurreição. Não há precedentes de um pedido dessa
gravidade contra um ex-presidente no país.
O relatório final da comissão foi
encaminhado ao Departamento de Justiça, haja vista que os congressistas não têm
poderes legais para indiciar Trump e mais cinco aliados do ex-presidente,
também implicados no caso. São eles: Mark Meadows, último chefe de gabinete de
Trump, e os advogados Rudolph Giuliani, John Eastman, Jeffrey Clark e Kenneth
Chesebro. Todos podem ser condenados à prisão por sua participação, direta ou
indireta, na tentativa de impedir o Congresso de certificar a vitória do
democrata Joe Biden na eleição presidencial de 2020.
Cabe agora ao procurador-geral, Merrick B.
Garland, aceitar ou não os pedidos de indiciamento. Para o bem da democracia –
e não apenas nos Estados Unidos, mas em todos os países que têm o regime
constitucional americano como modelo ou inspiração – é extremamente importante
que Trump responda por seus atos e palavras sediciosos na Justiça. Para
qualquer cidadão, principalmente para as mais altas autoridades da República,
tentativas de subversão da ordem democrática devem sempre ser manobras com
pesadíssimos custos judiciais. É assim que a democracia se defende.
Será difícil tanto para Garland como para o
procurador especial encarregado da invasão do Capitólio, Jack Smith, não dar
prosseguimento judicial aos pedidos de indiciamento formulados pela esfera
política. Os membros da comissão foram hábeis o bastante para selecionar os
alvos principais de sua investigação e reunir contra eles um sólido conjunto de
provas da participação de cada um na tentativa de golpe de Estado.
O relatório final da comissão de
investigação é resultado de um minucioso e exaustivo trabalho de quase dois
anos, período no qual os congressistas analisaram dezenas de milhares de documentos,
ouviram longas horas de gravação de telefonemas e discursos e inquiriram mais
de mil testemunhas.
O desfecho da comissão da Câmara, se não
sela o destino político de Trump, impõe ao ex-presidente um grande revés em sua
tentativa de voltar à Casa Branca. “Ninguém que se comporte daquela maneira
(como Trump se comportou ao final da eleição) poderá servir em qualquer posição
de autoridade em nossa nação novamente. Ele (Trump) é inadequado para qualquer
cargo público nos Estados Unidos”, resumiu a deputada republicana Liz Cheney,
uma das mais aguerridas congressistas com assento na comissão.
Nos limites de sua competência, o Congresso americano honrou a Constituição e reagiu à altura daquele que talvez tenha sido o mais grave ataque ao regime democrático nos Estados Unidos.
Política fiscal será decisiva para
trajetória da inflação
Valor Econômico
Incertezas sobre as contas públicas podem
pressionar o câmbio, dificultando a tarefa do BC de combater a alta de preços
O Brasil terá em 2022 o segundo ano seguido
com a inflação acima do teto da banda de tolerância da meta perseguida pelo
Banco Central (BC) - e tudo indica que isso também vai ocorrer em 2023. Depois
de encerrar 2021 em 10,1%, bem acima do teto de 5,25%, o Índice Nacional de
Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) deve fechar este ano na casa de 5,6% a 5,7%.
É um número também superior ao topo da meta de 2022, de 5% - o centro do alvo é
de 3,5%.
O cenário para 2023 não indica uma
desaceleração expressiva da taxa de inflação, mesmo com a perspectiva de
desaceleração da atividade, tanto pelo efeito mais forte do ciclo de alta da
Selic quanto pelo impacto da perda de fôlego da economia global. As projeções
apontam para um IPCA um pouco acima de 5%, com alguns analistas esperando um
número um pouco acima do indicador deste ano. Para 2023, a meta é de 3,25% e o
teto de intervalo de tolerância é de 4,75%.
Embora distante dos dois dígitos, uma
inflação superior a 5% não é confortável, especialmente num país que adotou
metas cadentes ao longo dos anos. A partir de 2024, o alvo será de 3%,
percentual que será mantido em 2025. Com isso, reduzir as incertezas fiscais é
fundamental para aliviar as pressões sobre a inflação.
De setembro de 2021 a julho de 2022, o IPCA
ficou acima de dois dígitos. Em parte desse período, a inflação refletia
efeitos da guerra entre Rússia e Ucrânia, que pressionava os preços de
commodities e afetava as cadeias globais de suprimentos. Outro impacto veio da
reabertura da economia, resultado do relaxamento das medidas de restrição
social, devido à melhora dos números da pandemia da covid-19. Isso levou à alta
mais forte dos serviços. Por fim, o câmbio desvalorizado também contribuiu para
a alta dos preços.
O quadro mudou, porém, com a redução do
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre itens como
combustíveis, energia elétrica, telecomunicações e transporte público. Nesse
ambiente, o IPCA recuou em julho, agosto e setembro, um movimento também
auxiliado pela queda do petróleo em parte da segunda metade deste ano. Nas
contas do economista André Braz, do Instituto Brasileiro de Economia da
Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), o indicador deve fechar o ano em 5,6%,
considerando a inflação acumulada até novembro e os números do Monitor da
Inflação da FGV para dezembro.
Em artigo para o Boletim Macro do FGV Ibre,
Braz destaca que, entre as principais influências que fizeram o IPCA perder
força neste ano, estão quatro itens que tiveram o ICMS reduzido - gasolina,
energia elétrica residencial, etanol e acesso à internet. “A soma de tais
influências chega a 2,9 pontos percentuais”, diz ele. “Se não fosse pela
renúncia fiscal, elas elevariam a inflação de 2022 para no mínimo 8,5%”. O IPCA
mais baixo, desse modo, foi fruto em grande parte da medida orquestrada pelo
governo de Jair Bolsonaro e pelo Congresso, de redução do ICMS, para tentar
melhorar a popularidade do presidente, então bastante baixa.
Para 2023, Braz diz que a inflação deve
seguir acima de 5%, mais alta que o teto do intervalo de tolerância da meta do
ano que vem, de 4,75%. Na visão do economista, o maior desafio será a política
fiscal. Incertezas sobre as contas públicas podem pressionar o câmbio,
dificultando a tarefa do BC de combater a inflação. Nesse cenário, a queda da
Selic, hoje em 13,75% ao ano, pode demorar mais para ocorrer, com efeitos mais
fortes sobre a atividade econômica.
O Bradesco divulgou ontem a revisão mensal
do seu cenário econômico. O banco manteve a estimativa para o IPCA deste ano em
5,7%, mas elevou a projeção para o IPCA de 2023 de 4,9% para 5,1%, num quadro
em que vários indicadores “sugerem que a economia opera com baixa ociosidade”.
Os economistas observam, contudo, que “esse número não contempla a reoneração
dos impostos federais sobre combustíveis”. Hoje, esses tributos estão zerados.
Se o novo governo voltar a cobrar os impostos federais sobre combustíveis,
haverá impacto sobre a inflação. Para o Bradesco, a decisão sobre esse tema
levará em conta os níveis da taxa de câmbio e do preço do petróleo, além de
considerar eventuais benefícios do aumento da arrecadação para a redução do
déficit primário. Isso pressionaria mais o IPCA, com possíveis impactos sobre a
política monetária. No entanto, o que mais deve influenciar o BC em sua decisão
sobre a Selic é a condução da política fiscal. Se permanecerem dúvidas sobre a
trajetória da dívida pública, os juros poderão demorar mais para cair, afetando
um crescimento que já será bem mais fraco que os 3% esperados para este ano.
Para 2023, o FGV Ibre projeta 0,2% e o Bradesco, 1%.
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