sábado, 30 de setembro de 2023

O que a mídia pensa: editoriais / opiniões

A oportunidade de Barroso no comando do STF

O Globo

Novo presidente poderá contribuir para resgate da normalidade institucional e Judiciário mais ágil

O ministro Luís Roberto Barroso assume a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) diante de um ambiente político bem menos conflagrado que o encontrado pela antecessora, Rosa Weber. Durante a gestão de Rosa, o país passou pela eleição mais polarizada de sua História recente, o STF foi alvo dos ataques do 8 de Janeiro, e a democracia brasileira resistiu em boa parte graças à ação do próprio Supremo perante a ameaça golpista. Esse momento — ainda bem — passou. Agora cabe a Barroso, afastada a ameaça antidemocrática, aproveitar o clima mais sereno para continuar, em sua gestão, a promover o resgate da normalidade institucional.

Em seu discurso de posse, ele demonstrou entender a missão e adotou um tom conciliador ao tratar dos temas que hoje polarizam a sociedade. “O combate eficiente à criminalidade não é incompatível com o respeito aos direitos humanos. O enfrentamento à corrupção não é incompatível com o devido processo legal”, afirmou. “Estamos todos no mesmo barco e precisamos trabalhar para evitar tempestades e conduzi-lo a porto seguro. Se ele naufragar, o naufrágio é de todos.”

Resgate da normalidade institucional, vale dizer, não significa ausência de conflitos. Numa democracia, eles são esperados e naturais. Desde que arbitrados dentro das regras, apenas traduzem a vitalidade das instituições em seu zelo por atender às demandas da sociedade. O essencial é que cada uma cumpra seu papel, uma equilibrando a outra, como na célebre imagem dos freios e contrapesos que ilustra os mecanismos intrínsecos à democracia. Freios e contrapesos, por sinal, sempre exercem força uns sobre os outros, ainda que pareçam estáticos.

O Congresso, com representantes eleitos pelo povo, é e continuará a ser a instituição mais importante da democracia. Em princípio, deve ser o palco das discussões sobre as questões mais relevantes e controversas. E, na maioria das vezes, é. Mas é inegável que o Supremo adquiriu nos últimos anos protagonismo em inúmeros casos, despertando críticas à judicialização excessiva ou acusações de politização e ativismo judicial que não podem ser ignoradas.

Muitas vezes isso se deve tão somente à omissão do Parlamento, que faz acorrer ao STF demandas espinhosas evitadas pelos congressistas. Mas não apenas. Em seu discurso, Barroso chamou atenção para uma característica que distingue o Brasil de outros países. Nossa Constituição é exaustiva ao tratar dos assuntos mais diversos: sistemas econômico, tributário e previdenciário, educação, meio ambiente, cultura, comunidades indígenas, família, criança, adolescente, idoso e por aí afora. “Incluir uma matéria na Constituição é, em larga medida, retirá-la da política e trazê-la para o Direito”, disse. “Nenhum tribunal do mundo decide tantas questões divisivas da sociedade. Essa é a causa da judicialização ampla da vida no Brasil. Não se trata de ativismo, mas de desenho institucional.”

Além de decidir questões constitucionais, a Corte ainda conduz inquéritos e julga ações penais. Tudo isso se acumula num acervo de quase 24 mil processos que aguardam julgamento. É verdade que esse estoque tem diminuído, como resultado em parte de restrições ao foro privilegiado, em parte de julgamentos das ações penais pelas turmas de ministros. As novas regras adotadas na gestão de Rosa Weber para pedidos de vista e decisões monocráticas (com prazos mais rígidos) também contribuirão para trazer maior agilidade. O desafio de alcançá-la persiste, porém. Não apenas no STF, mas em todo o Judiciário.

Barroso demonstrou ter plena consciência disso. Comprometeu-se a “aumentar a eficiência e a celeridade da tramitação processual” e disse já mapear “gargalos e pontos de congestionamento”. “Vamos enfrentá- los”, afirmou. “Não há lugar para celebração aqui: precisamos melhorar a qualidade do serviço que prestamos à sociedade brasileira.” Quanto ao próprio Supremo, ele já defendeu no passado que o tribunal deveria julgar não mais de 500 processos por ano (tem julgado mais de 70 mil). Tal meta dependeria de alterações na lei, mas mudanças regimentais já ajudariam a dar maior agilidade à Corte.

Um efeito paradoxal dos ataques à democracia e do 8 de Janeiro foi terem contribuído para fortalecer o espírito de união entre os ministros do STF. Basta notar o discurso repleto de elogios do decano do tribunal, ministro Gilmar Mendes, saudando em nome da Corte o novo presidente, outrora seu desafeto. Barroso deveria aproveitar o momento de união para pôr em marcha sua agenda de agilidade no Judiciário. O Brasil só teria a ganhar.

Mais importante foi a atitude conciliadora que adotou no discurso, proferido ao lado dos presidentes dos demais Poderes — Luiz Inácio Lula da Silva, da República, Rodrigo Pacheco, do Senado, e Arthur Lira, da Câmara. É verdade que o Supremo brasileiro, em contraste com outras cortes constitucionais do mundo, tem o dever de analisar as mais variadas questões sempre que instado. Mas é fundamental que, nessa hora, o tribunal mantenha o comedimento e, sem se furtar a seu dever, evite invadir atribuições dos legisladores. Novamente, Barroso demonstrou ter ciência do desafio: “É imperativo que o Tribunal aja com autocontenção e em diálogo com os outros Poderes e a sociedade, como sempre procuramos fazer e pretendo intensificar. Numa democracia, não há Poderes hegemônicos. Garantindo a independência de cada um, conviveremos em harmonia, parceiros institucionais pelo bem do Brasil”. Que ele saiba transformar suas palavras em atos.

A ordem dos fatores

Folha de S. Paulo

Diálogo do governo com BC é positivo, mas alcance da queda do juro depende do 1º

É positivo que tanto o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, como o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, falem em harmonia na política econômica. Foi assim que se manifestaram por ocasião da reunião que tiveram com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na quarta-feira (28).

O BC vem alertando para o risco de descumprimento das metas fiscais, em especial do intento improvável de zerar o déficit orçamentário do governo federal em 2024. Qualquer deslize nessa frente poderá pressionar a inflação e limitar o espaço para a queda da taxa Selic, hoje em 12,75% ao ano.

A autoridade monetária e o próprio Campos Neto foram alvo de repetidos ataques de Lula, que questionou o nível dos juros e a meta de inflação, felizmente mantida em 3% para os próximos três anos. Desde a posse, o petista ainda não havia concedido audiência ao chefe do BC. A disposição ao diálogo agora pode abrir novos caminhos.

Haddad, por seu turno, vê-se isolado no governo na defesa do déficit zero. Interessa mostrar unidade com o BC para convencer o Palácio do Planalto de que não há espaço para flertes com a irresponsabilidade fiscal. Como sempre, gastar mais é o que querem o PT e a ala política do Executivo.

Com a união das duas autoridades da área econômica em defesa da preservação das metas fiscais, é mais provável que o presidente se disponha a apoiá-las, ao menos por ora. Para tanto, ajuda que a economia continue a mostrar vigor e que a popularidade do governo se mantenha satisfatória.

Cumpre explorar, no entanto, o que querem dizer Campos e Haddad quando falam em harmonia. Apesar das juras de alinhamento, o equilíbrio entre ambos é precário.

A lógica da Fazenda até aqui foi a de sancionar as prioridades de gasto do governo e buscar fechar as contas por meio de significativo e improvável aumento da arrecadação. Haddad indica desejar que o BC se mostre flexível e conceda o benefício da dúvida, aliviando os juros com base na meta fiscal.

Já Campos não quer antagonizar o governo, no que acerta. Mas há limites para o que o BC pode fazer. Qualquer afrouxamento em desalinho com a mecânica do sistema de metas de inflação poderia impactar os juros de longo prazo e a taxa de câmbio, o que levaria a efeito oposto ao que se busca.

Na ótica da política monetária, harmonia implica que a gestão das finanças públicas faça a sua parte, preferivelmente por meio de controles mais austeros nos gastos para que então haja espaço para juros menores de modo sustentável.

Na conjuntura atual, diante do crescimento exacerbado das despesas e do déficit orçamentário, a ordem dos fatores importa.

Boa energia

Folha de S. Paulo

Matriz brasileira é ímpar, mas não berço esplêndido para ignorar crise climática

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), como todo o Brasil, tem motivos para comemorar a posição privilegiada do país na transição energética de que o planeta necessita. Mas isso não dá direito a ufanismo nem miopia fora de hora.

"Nós já passamos eles [sic] no milho, já passamos em soja e já passamos em algodão. Nós vamos passar na questão energética", vangloriou-se o mandatário, em comparação com os Estados Unidos, ao assinar na quarta-feira (27) contratos de transmissão de eletricidade.

A verdade é que não precisamos nos medir com os EUA, porque já os batemos nesse quesito, e faz tempo. Não há no mundo economia de grande porte com matriz energética de fontes renováveis comparável à do Brasil.

Por aqui temos ainda 50,8% da energia consumida proveniente de combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão mineral), que agravam o efeito estufa. Já as fontes renováveis (hidroeletricidade, biomassa, eólica, solar) respondem por 47,4% da demanda, segundo o Balanço Energético Nacional 2023.

A energia mobilizada nos EUA tem 79% de origem fóssil, ante meros 13% renováveis. No mundo, a proporção fica em 80% e 15%, respectivamente (as diferenças para 100% correspondem a outras fontes não renováveis, como a nuclear).

Quando se tem em mente a transição energética no contexto da emergência climática, porém, os combustíveis fósseis ganham proeminência por serem, de longe, os principais emissores de carbono no mundo. Não é o caso do Brasil, cuja maior contribuição para o aquecimento global está no uso da terra.

Em poucas palavras, é o avanço da fronteira do agronegócio que propulsiona o desmatamento, nossa maior fonte de poluição climática. Também pesam o metano emitido na pecuária, os fertilizantes e manejo inadequado do solo, mas a parte do leão cabe à abertura de áreas para pastos e agricultura.

Lula até teria vantagem para contar aqui também, dada a redução de 48% na devastação da Amazônia nos oito primeiros meses de seu governo —ainda que a boa notícia seja esmaecida por altas em derrubadas do cerrado. E a estiagem na floresta amazônica faz temer por uma explosão das queimadas.

O governo petista se contradiz ao vender transição energética com a mão esquerda e investir na extração de petróleo novo com a direita. Se a meta é contribuir para enfrentar a crise climática, essa prioridade tem de ser revista.

O STF entre o ideal e a realidade

O Estado de S. Paulo

Barroso apelou à independência e à harmonia entre os Poderes. Espera-se que seja coerente e contenha abusos que transformaram o Judiciário de poder moderador em poder tensionador

Segundo os apresentadores da TV Justiça, a posse de Luís Roberto Barroso como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) foi das mais emocionantes da história. Entre a abertura, com o Hino Nacional, e o encerramento, com Todo Sentimento, na voz de Maria Bethânia, o decano Gilmar Mendes falou em “democracia defensiva” (eufemismo para “democracia militante”, categoria da Constituição alemã, não da brasileira), fez uma ofensiva contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e brindou o “grande estadista” Lula da Silva. Na presença dos presidentes da República, da Câmara e do Senado, pediu harmonia e pacificação. Enquanto isso, na Câmara tramitava uma PEC dando poder ao Congresso de derrubar decisões do Supremo, e o Senado aprovava o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, que o STF havia declarado inconstitucional. O choque de realidade dimensiona o desafio do novo presidente.

Barroso louvou a Justiça brasileira como uma “das mais produtivas do planeta”, julgando 30 milhões de processos por ano. Mas quantidade não significa produtividade. Ela é também das mais caras e lentas. Nenhuma corporação no Brasil (quiçá no mundo) extrai tantos privilégios da lei quanto a responsável por aplicá-la igualmente a todos. O Brasil está mal nos rankings de segurança jurídica. Uma pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros revela que 52% dos juízes de primeiro grau não consideram a jurisprudência e 55% dos ministros de tribunais superiores não se pautam por súmulas. Ou seja, em sua maioria, os juízes do piso não seguem as cortes e os do topo não seguem nem a si mesmos.

Tudo isso se dá no contexto do tumulto político e institucional que tomou o País nos últimos anos. Desde que Barroso é ministro do Supremo, o Brasil passou pelas Jornadas de Junho, o petrolão, o impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a ascensão de Bolsonaro. Muitas vezes o STF ajudou a restaurar a normalidade institucional – por exemplo, garantindo prerrogativas dos Estados na pandemia ou pondo fim ao orçamento secreto –, mas, no afã de combater abusos ou omissões do Ministério Público, do Congresso e do Executivo, cometeu abusos que minaram essa normalidade.

Em meio à espiral de judicialização da política, retroalimentada pela politização da Justiça, Barroso falou em contenção do Judiciário, mas deu mostras de incontinência ao listar prioridades, como se fosse candidato num palanque: combate à pobreza, desenvolvimento sustentável, investimentos em educação básica, ciência, saneamento e moradia e retomada da liderança ambiental do Brasil. São metas louváveis, claro, mas para um presidente da República, e não para o presidente do STF. O povo já elegeu seus representantes no Executivo e no Legislativo. Boas ou ruins, as decisões são desses mandatários. À Corte cabe, se provocada, garantir sua consonância com a Constituição.

O problema é como entender essa consonância. Barroso, em sua obra Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, afirma que o Direito é política, enquanto produto da vontade da maioria na Constituição, e não é política, porque não se pode submeter “a noção do que é correto e justo à vontade de quem detém o poder”. Entre esse “é” e o “não é” seria natural deduzir a demarcação entre os Poderes: o Direito é política porque o Legislativo tem autonomia para positivar a vontade da polis, e não é porque o Judiciário tem autonomia para interpretá-la nos conflitos particulares. Mas Barroso conclui pela “fluidez da fronteira entre política e justiça”: porque o Direito é política, ante insuficiências do Legislativo, cabe ao Judiciário normatizar o que é “correto e justo”. Com esse tipo de hermenêutica, a Corte já deu mostras de impaciência com seu papel de guardiã da Constituição e quis ser sua reformadora.

Barroso aludiu à sua fórmula predileta para descrever a magistratura: a “vanguarda iluminista que empurra a história na direção do progresso civilizatório”. Mas, como sempre e mais do que nunca, o País precisa é de um Judiciário que se atenha às normas e competências traçadas pela Constituição.

Barricadas contra o diálogo

O Estado de S. Paulo

Ao valerem-se de piquetes, estudantes em greve na USP agridem o direito de docentes e colegas, extrapolam o espírito de liberdade da universidade e afrontam a história da instituição

A Universidade de São Paulo (USP) tornou-se alvo de uma greve de uma parcela de estudantes indignados e prejudicados pela perda de mais de 800 professores nos últimos nove anos. Nada mais justo que se cobre eficiência do ensino de uma instituição mantida pelos contribuintes paulistas. Porém, ao levantar barricadas nas escolas da USP, inclusive no “território livre” da Faculdade de Direito, os alunos extrapolaram a essência da vida universitária e da cidadania em um Estado Democrático de Direito. Abandonaram o diálogo para aderir à agressão.

Universidades são, por natureza, espaços livres de difusão do conhecimento, do estímulo ao pensamento crítico e do debate respeitoso de ideias. O convívio em seus campi pressupõe perseverança no diálogo, conduzido sob argumentação fundamentada e racional. Tal princípio obviamente não presume nenhuma forma de violência, interna ou externa. Quando optaram por impedir professores de ministrar aulas e colegas de assistir a elas presencialmente, os grevistas escolheram o caminho da força em detrimento da razão.

O movimento levou a direção de faculdades da USP a suspender temporariamente as aulas. Porém, barricadas foram montadas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e em outras unidades, sob a conivência dos docentes que aderiram à greve. Nas Arcadas do Largo de São Francisco, onde há pouco mais de um ano houve comovente ato em defesa da democracia contra os arreganhos bolsonaristas, o professor titular de Direito Financeiro Fernando Scaff foi barrado por estudantes, como reportou o Estadão. “São alunos de Direito impedindo um direito fundamental, de ir e vir”, constatou.

Não há dúvidas sobre a relevância da pauta de reivindicações. A USP perdeu 818 acadêmicos entre 2014 e 2023, algo em torno de 15% de seu corpo docente, enquanto manteve constante seu total de alunos. O período para a graduação foi postergado pela ausência de professores para ministrar disciplinas, e cursos como o de línguas japonesa e coreana acabaram cancelados pela mesma razão.

A demanda pela elevação do valor das bolsas para os estudantes de baixa renda, em uma universidade cujo acesso deve se expandir e diversificar cada vez mais, tem mérito. Da mesma forma, há consistência na reivindicação por melhorias no Hospital Universitário, acrescentada pelos alunos da Faculdade de Medicina. Tais pautas não são refutadas, mas endossadas pelo reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior, que se recusou a responder com força policial a um movimento que se vale da força das barricadas. Suas ponderações e pedidos de paciência, porém, não tiveram a repercussão esperada na mais recente tentativa de diálogo.

A rigor, a USP não pode ser acusada de negligência. A universidade enfrenta crise financeira há anos, refletida em uma folha de pagamentos equivalente à maior parte de sua receita, advinda de parte da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). À situação fiscal somou-se a suspensão de contratações durante a pandemia. Uma vez reaberta, a absorção de novos professores deve seguir regras protocolares, e não há alternativa expedita senão a absorção de docentes temporários – outra queixa dos estudantes.

O reitor Carlotti prometeu repor todas as 818 vagas em aberto até o fim de 2024. Não há dúvidas sobre o longo período. Mas, em se tratando de uma instituição pública ciosa de sua liberdade de cátedra e imbuída de seus princípios de responsabilidade, tampouco pode haver improvisos. Não foi por acaso, mas reflexo de sua integridade e sua produção acadêmica, a recente inserção da USP entre as 100 melhores universidades do mundo em dois rankings internacionais.

A agressividade do movimento estudantil não condiz com os 89 anos de uma instituição de excelência no ensino superior e na pesquisa científica ao desenvolvimento de São Paulo e do Brasil. Barricadas e agressões verbais e virtuais não fazem sentido quando se dão em uma casa onde imperam a liberdade e o diálogo. “Prefiro pensar a USP como uma universidade que defende a liberdade, até de divergir, mas conversando”, ponderou o reitor Carlotti ao Estadão. “Formamos os nossos alunos para que sejam críticos, mas esse tipo de movimento, que usa a força, não cabe dentro da USP.”

Barbárie liberada

O Estado de S. Paulo

ONU omite-se diante de limpeza étnica do Azerbaijão contra armênios de Nagorno-Karabakh

O enclave armênio de Nagorno-Karabakh ruiu sob o poderio militar da ditadura do Azerbaijão e o silêncio das Nações Unidas e das potências diante de agressões motivadas pelo inconteste objetivo de limpeza étnica. O êxodo de mais de dois terços da população local para a República da Armênia em apenas cinco dias, sob o temor de um novo genocídio, expõe a gravidade de uma crise humanitária que se desenhava havia nove meses e que, agora, se tornou um desafio concreto. Ao omitir-se, a comunidade internacional expôs seu fracasso em promover uma solução civilizatória para um conflito latente há pelo menos três décadas. E pior: consentiu com a barbárie.

Ao final de nove dias de ofensiva azeri, o governo não reconhecido da República Artsakh, como se autodenomina o enclave armênio, emitiu decreto no último dia 28 sobre sua extinção até o fim deste ano. O presidente Samvel Shahramanyan incluiu no texto a orientação para as famílias armênias decidirem sobre sua permanência, sob domínio do Azerbaijão, ou retirada do país. Mais de 65 mil já haviam tomado a única via de conexão da região com a República da Armênia – e com o resto do mundo – em busca de refúgio. Ao restante da população, de 120 mil habitantes, não há alternativa senão abandonar o local onde gerações de cristãos armênios viveram por quase dois milênios.

A dimensão da crise humanitária, portanto, está ainda pela metade. O espectro do genocídio de mais de 1,5 milhão de armênios promovido pelo Império Otomano em 1915 paira com clareza na memória coletiva de um povo que, a duras penas, sobrevivia ao domínio de Estados muçulmanos. Na era soviética, o enclave no Azerbaijão encontrou proteção em Moscou. Mas o desmoronamento da União Soviética desencadeou conflitos entre o Azerbaijão e a República da Armênia sobre o domínio de Nagorno-Karabakh, que se desdobraram em extermínios de civis.

A independência da República de Artsakh, declarada em 1994, jamais foi reconhecida pelas Nações Unidas. Preferiram não mexer nesse vespeiro geopolítico no Cáucaso, onde Irã, Turquia, Rússia, Síria e Estados Unidos se movimentam. A rigor, vigorava um pacto de cessar-fogo desde 2020, até que o governo azeri bloqueou, em dezembro passado, a ligação da região à República da Armênia para impedir o acesso de remédios, combustíveis, alimentos e organizações humanitárias. O quadro estava armado desde então para a violenta expulsão dos armênios de Nagorno-Karabakh, sob ameaça de extermínio.

A operação militar do Azerbaijão durou apenas oito dias – sem que o Conselho de Segurança das Nações Unidas emitisse uma mínima condenação. As Chancelarias das potências não foram além de apelos ao cessar-fogo, alcançado no último dia 20 com mediação russa e desconsiderado pelo ditador Aliyev. O silêncio do Conselho de Segurança – fruto de considerações geopolíticas complexas, entre as quais certamente não figura com destaque a aflição dos armênios étnicos de Nagorno-Karabach – dá a entender que o processo de limpeza étnica na região está liberado. Compreende-se que não é uma situação simples, mas é forçoso notar que, mais uma vez, a ONU se mostra inútil para impedir a barbárie.

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