sábado, 16 de agosto de 2025

A Índia pode se tornar o pior erro de Trump, por Fareed Zakaria

O Estado de S. Paulo

Com tarifas e insultos, presidente americano tem minado a estratégia dos EUA na Ásia A Índia está unida em seu choque e raiva pelo comportamento insultuoso de Trump

Os EUA são frequentemente criticados por se orientarem para o curto prazo, por mudarem de rumo muito rápido. Na verdade, em questões importantes, Washington tem sido consistente na sua política externa. Considere-se a aproximação estratégica com a Índia, que começou durante o governo Bill Clinton e foi expandida de forma bipartidária ao longo de 25 anos – até agora.

A hostilidade repentina e inexplicável do presidente Donald Trump em relação à Índia reverte as políticas adotadas por cinco governos, incluindo o seu próprio anterior. Se essa nova atitude se mantiver, poderá ser o maior erro estratégico de sua presidência até agora.

Após a Guerra Fria, os EUA iniciaram uma aproximação sustentada com a Índia. A visita bem-sucedida de Clinton, em 2000, abriu a possibilidade de um novo relacionamento cordial. A mudança crucial, porém, aconteceu durante o governo de George W. Bush. Ele reconheceu que a ascensão da China estava transformando o sistema internacional e o contrapeso mais importante poderia ser a Índia, então o segundo país mais populoso do mundo, que começara a reformar sua economia. Uma relação próxima com Nova Délhi seria a chave para impedir o domínio chinês na Ásia e garantir os interesses americanos na região.

SALTO. Havia um grande obstáculo: o programa nuclear da Índia. No interesse da não proliferação, Washington impôs sanções à Índia (e ao Paquistão) por realizarem testes com armas nucleares. Mas Bush, tendo decidido que a Índia deveria ser tratada como uma grande potência, ofereceu um acordo nuclear histórico que pôs fim ao isolamento indiano e foi um divisor de águas nas relações entre os dois países.

Depois disso, Washington e Nova Délhi se aproximaram em muitos aspectos. O governo Barack Obama, considerando a Índia importante para a virada dos EUA para a Ásia, apoiou a candidatura do país a membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.

O primeiro governo Trump deu um salto ainda maior politicamente. Ele elevou o Quad – um grupo voltado para a defesa que inclui EUA, Austrália, Japão e Índia – e lhe deu mais substância. Trump também se deleitava com sua relação pessoal com o premiê, Narendra Modi. Joe Biden deu continuidade ao legado de Trump. A Índia planejava trabalhar com os EUA na fabricação de tudo, desde caças até chips.

A Índia é um país espinhoso. Foi colonizado e dominado pelo Ocidente, governado pelo Reino Unido durante dois séculos. Após sua independência, a União Soviética a apoiou-a, enquanto os EUA deram dinheiro e armas ao seu adversário, o Paquistão. Como uma democracia grande, diversificada e confusa, a Índia sempre teve interesses internos que seus líderes não podem ignorar. Apesar de tudo, Washington conseguiu se aproximar de Nova Délhi cada vez mais.

MARCHA A RÉ. Entra Trump 2.0. Sem aviso prévio, ele desfez décadas de trabalho árduo dos diplomatas americanos. Colocou a Índia na categoria mais alta das tarifas americanas, agora fixadas em 50%, enquanto estabeleceu uma taxa de 19% para o Paquistão (que agora é aliado próximo da China) e anunciou esforços conjuntos, provavelmente fúteis, para procurar petróleo lá. O presidente se reuniu com o chefe do exército do Paquistão em particular, e uma empresa apoiada pela família Trump tem laços com o Conselho de Criptografia do Paquistão – alimentando suspeitas de que acordos secretos foram realizados.

Trump chamou a economia da Índia de “morta”. Na verdade, há vários anos, a Índia tem a economia de grande porte que mais cresce no mundo, agora a quarta maior (ela deve ultrapassar a Alemanha até 2028 e se tornar a terceira maior, atrás apenas de EUA e China). É o segundo maior importador de armas do mundo.

A Índia há muito tempo busca permanecer não alinhada. Sob Modi, ela adotou uma variação chamada “multialinhamento”, que, teoricamente, permite ao país manter boas relações com todos os lados. A diplomacia americana persistente e a ascensão da China vinham minando essa posição, e, de forma lenta, mas segura, a Índia vinha desenvolvendo laços mais estreitos com os EUA. Não mais.

Mesmo que Trump recue, o estrago já está feito. Os indianos acreditam que os EUA mostraram sua verdadeira face: sua falta de confiabilidade, sua disposição de tratar mal seus amigos. É compreensível que eles sintam que, para se protegerem, precisam se manter próximos da Rússia – e até mesmo fazer as pazes com a China. O país está unido em seu choque e raiva pelo comportamento insultuoso de Trump.

Quando estou na Índia, costumo exortar os líderes locais a estreitar os laços com os EUA, argumentando que seu destino está em uma grande parceria entre a democracia mais antiga do mundo e a maior do mundo. Agora, será difícil persuadi-los a seguir esse conselho.

 

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