• Substituir estruturas políticas sedimentadas não é o mesmo que redigir teses cerebrinas
- O Estado de S. Paulo
Após 126 anos de República, o Brasil permanece inseguro acerca do melhor sistema de governo. A monarquia era parlamentarista. Em momentos de crise dom Pedro II atuava como Poder Moderador. Tínhamos o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, mas, segundo a Constituição imperial de 1824, a “chave da organização política” era o imperador. Competia a Sua Majestade, como chefe supremo da Nação, “velar sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos Poderes”, o que fez de maneira admirável entre a maioridade (23/7/1840) e a República (15/11/1889).
Por determinação do marechal Deodoro da Fonseca coube a Rui, após a proclamação, lançar as bases do País republicano. Como escreveu Aliomar Baleeiro, “Rui Barbosa, ao cair da noite de 15 de novembro, sentou-se, de caneta em punho, diante de uma resma de papel almaço, institucionalizando os fatos da manhã. E assim, antes que voltasse ao solo toda a poeira da cavalgada de Deodoro, começou este a assinar o decreto orgânico que instituía o governo provisório da nova República.”
A Constituição de 1891 adotou o presidencialismo. Dizia o artigo 41: “Exerce o Poder Executivo o presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, como chefe eletivo da Nação”. Idênticas diretrizes seguiram as que lhe sucederam em 1934 (artigo 51); 1937 (artigo 73); em 1946 (artigo 78); em 1967 (Emenda 1/69), cujo artigo 78 fixava: “O Poder Executivo é exercido pelo presidente da República, auxiliado pelos ministros de Estado”.
A única e funesta experiência parlamentarista se deu em setembro de 1961, quando o ardiloso João Goulart ludibriou os militares, levando-os a crer que aceitava o governo de Gabinete, como lhe exigiam para assumir a Presidência da República. Impedido de substituir o trêfego presidente Jânio Quadros, que havia renunciado (25/8/1961), Goulart convenceu as Forças Armadas de que aceitava ser rebaixado a chefe de Estado, para entregar ao presidente do Conselho de Ministros o exercício efetivo do governo. Uma espécie aclimatada de rainha da Inglaterra, sem a tradição e o glamour da realeza britânica. Como discípulo de Getúlio Vargas, Jango jamais aceitaria renunciar ao papel principal, para se tornar mero coadjuvante. Estava certo de que, uma vez empossado, manobraria os políticos e as massas até recuperar a cadeira presidencial.
Tancredo Neves foi o primeiro presidente do Conselho de Ministros, como representante do PSD. Tomou posse em 8/9/1961, mas não se sustentou um ano. Caiu em 26/6/1962. A ele se seguiu Auro de Moura Andrade, cuja indicação foi aprovada pelo Congresso em 3/7/1962. Antes, porém, de assumir o cargo foi obrigado a se despedir, coagido pela greve decretada pelo Fórum Sindical de Debates, dominado por pelegos petebistas e comunistas, que o abateram na decolagem. O segundo presidente do Conselho foi Francisco de Paula Brochado da Rocha, ex-secretário do Interior e da Justiça do Rio Grande do Sul. Por último, Hermes Lima, detentor de brilhante folha de serviços ao País, iniciada como constituinte em 1946, encerrada como ministro do Supremo Tribunal Federal, onde foi aposentado pelo AI-5.
Em 23/1/1963, em quatro linhas a Emenda Constitucional n.º 6 revogou, sem resistência alguma, o parlamentarismo de fachada fruto da Emenda n.º 4.
A Constituição de 1988 nasceu doentia. Com 28 anos de vida, exibe dezenas de remendos. Os constituintes permitiram a inexplicável inclusão, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, de artigo determinando a realização de plebiscito, em 7/9/1993, destinado a definir “a forma (República ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País” (artigo 2.º). O resultado era previsível: o povo optou pela República presidencialista.
A recente proposta do restabelecimento do sistema parlamentar é subproduto da terrível crise que abala o País. Partiu da utopia tucana que acredita no poder mágico das palavras. Tenta ajustar a realidade a seus devaneios. Como registrou o historiador Edward H. Carr, observa-se eterna disputa entre aqueles que tentam, a qualquer custo, adaptar a realidade às suas pretensões e outros que procuram desenvolvem ideias compatíveis com a realidade.
A Carta imperial de 1824 garantia a participação dos cidadãos nos governos provinciais por meio das Câmaras dos Distritos, e dos Conselhos, que com a denominação de Conselho Geral existiam em cada Província, exceto na do Rio de Janeiro, onde se encontrava a capital do império (artigo 71). Faziam as vezes das câmaras de vereadores e das Assembleias Legislativas. A emenda parlamentarista à Constituição de 1946 previa a adaptação das Constituições estaduais ao novo sistema, “no prazo que a lei determinar”, o que nunca foi feito.
A República traz a marca do presidencialismo. Irreparável erro consiste em subestimar o peso da tradição. A essência da nação está na continuidade, escreveu o filósofo argentino Germán José Bidart Campos. Substituir estruturas políticas sedimentadas pelo tempo, para acomodá-las às sofisticadas exigências do regime de Gabinete, não é o mesmo que redigir teses cerebrinas.
Em 1961 as Forças Armadas opunham-se à posse de João Goulart e obrigaram o Congresso a recuperar velha proposta de emenda parlamentarista do deputado Raul Pilla, para afastar ameaça de guerra civil. O cenário hoje é outro. A presidente Dilma Rousseff corre perigo de impeachment, mas o País permanece calmo e as instituições funcionam, à espera de solução política que, de algum modo, virá.
Duas vezes recusado pelo povo, o sistema parlamentar de governo deve ser esquecido. Uma experiência malograda basta.
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*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
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