- Valor Econômico
É possível um modelo de globalização mais inclusivo e sustentável
A economia mundial será remodelada nos próximos anos por três tendências. A relação entre mercados e Estado vai ser reequilibrada, em favor do último. Isso virá acompanhado de um reequilíbrio entre a hiperglobalização e a autonomia nacional, também em favor da última. E precisaremos encolher nossas ambições de crescimento.
Não há nada como uma pandemia para colocar em evidência tanto as imperfeições dos mercados diante de problemas de atitudes coletivas quanto a importância da capacidade do Estado de reagir a crises e proteger a população. A crise da covid-19 ampliou as fileiras dos que defendem uma cobertura de saúde universal, mais proteção ao mercado de trabalho (inclusive para os trabalhadores “gig”, temporários) e a importância das cadeias de produção locais para equipamentos médicos cruciais. Isso tem levado os países a priorizar a resiliência e a garantia de fornecimento em detrimento da eficiência e das economias de custo permitidas pela terceirização global. E os custos econômicos das medidas de confinamento aumentarão com o tempo, já que o choque maciço de oferta causado pela desestabilização da produção doméstica e das cadeias de valor globais também vão pressionar para baixo a demanda agregada.
Não se sabe a forma que um Estado mais ativo assumirá. Não se pode descartar a volta ao velho estilo dirigista, de pesado controle central. Mas afastar-se do fundamentalismo de mercado poderia trazer uma forma inclusiva, empenhada na economia verde
Embora a covid-19 reforce e enraíze essas tendências, ela não é a força primária por trás delas. Todas as três - ações governamentais mais fortes, recuo no hiperglobalismo e taxas de crescimento menores - precedem a pandemia. E, embora possam ser vistas como riscos significativos para a prosperidade humana, também é possível que sejam precursoras de uma economia mundial mais sustentável e inclusiva.
Vejamos o papel do Estado. O consenso neoliberal no fundamentalismo de mercado está enfraquecendo-se já há algum tempo. Criar um papel maior para que o governo possa lidar com a desigualdade e a insegurança econômica agora se tornou prioridade central tanto para economistas quanto para os políticos. Embora a ala progressista do Partido Democrata nos Estados Unidos não tenha chegado a conquistar a indicação presidencial da legenda, conseguiu ditar, em grande medida, os termos do debate.
Joe Biden pode ser de centro, mas em todas as frentes políticas - saúde, educação, energia, ambiente, comércio exterior, crime - suas ideias estão à esquerda da candidata presidencial anterior do partido, Hillary Clinton. Nas palavras de um jornalista: “O atual conjunto de receitas políticas de Biden [...] teria sido considerado radical se proposto por qualquer outro presidenciável em primárias democratas”. Biden pode não ganhar em novembro. E, mesmo se ganhar, pode não ter condições de colocar em prática sua agenda mais progressista. Ainda assim, está claro que o rumo tanto nos EUA quanto na Europa se direciona a uma maior intervenção do Estado.
A única dúvida é que forma esse Estado mais ativo assumirá. Não podemos descartar a possibilidade de uma volta ao velho estilo de dirigismo, de pesado controle central pelo Estado, que alcança pouco dos objetivos almejados. Por outro lado, afastar-se do fundamentalismo de mercado poderia trazer uma forma genuinamente inclusiva, empenhada na economia verde, em bons empregos e na reconstrução da classe média. Tal reorientação precisaria ser adaptada às condições tecnológicas e econômicas do atual momento, e não simplesmente mimetizar os instintos das políticas econômicas das três décadas douradas posteriores à Segunda Guerra Mundial.
O regresso do Estado caminha de mãos dadas com a retomada da primazia das nações-Estado. A conversa que se ouve por todos os lados gira em torno a desglobalizar, descasar, trazer de volta para casa as cadeias produtivas, depender menos de fornecedores externos e favorecer as finanças e a produção doméstica.
EUA e China são os países que dão o tom nessas questões. Mesmo a Europa, perpetuamente à beira de uma maior união fiscal, proporciona pouco contrapeso. Durante esta crise, a União Europeia mais uma vez se afastou da solidariedade transnacional e, em vez disso, enfatizou a soberania nacional.
O recuo em relação à hiperglobalização poderia levar o mundo rumo a um caminho de escalada nas guerras comerciais e de aumento do nacionalismo étnico, o que poderia prejudicar as perspectivas econômicas de todos. Esse cenário, porém, não é o único concebível.
É possível vislumbrar um modelo de globalização econômica menos intrusivo, mais sensato, que tenha foco em áreas nas quais a cooperação internacional realmente valha a pena, como a saúde pública global, acordos ambientais internacionais, paraísos fiscais globais e outras áreas suscetíveis a cair em políticas do tipo “empobreça o vizinho”. Nas outras frentes, as nações-Estado ficariam desimpedidas na forma como priorizam problemas econômicos e sociais.
Essa ordem mundial não seria hostil à expansão do comércio e dos investimentos mundiais. Poderia até facilitá-los desde que abra espaço para restaurar tratados sociais domésticos e elaborar estratégias apropriadas de crescimento no mundo em desenvolvimento.
Talvez o aspecto mais nocivo que o mundo poderá enfrentar no médio prazo é a forte redução no crescimento econômico, especialmente no mundo em desenvolvimento. Esses países tiveram cerca de um quarto de século de redução da pobreza e de melhoras na educação, saúde e outros indicadores de desenvolvimento. Além dos gigantescos custos da pandemia para a saúde pública, eles agora se deparam com grandes choques externos: a interrupção repentina dos fluxos de capitais e o forte declínio nas remessas de dinheiro, no turismo e na renda com exportações.
Países em desenvolvimento agora terão que se basear em novos modelos de expansão. A pandemia pode servir de alerta para que redimensionem as perspectivas de crescimento e estimulem a ampla reconsideração necessária.
Na medida em que a economia mundial já seguia um rumo frágil e insustentável, a covid-19 torna mais claros os problemas à nossa frente e as decisões que precisamos tomar. Em cada uma dessas áreas, as autoridades têm opções. Os resultados que poderemos ver mais à frente podem ser piores ou melhores. O destino da economia do mundo não depende do que o vírus fizer, mas de como optarmos por agir em resposta a isso. (Tradução de Sabino Ahumada).
*Dani Rodrik é professor de economia política internacional na Faculdade de Governo John F. Kennedy, de Haard. É autor de “Straight Talk on Trade: Ideas for a Sane World Economy”
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