O Estado de S. Paulo
Usar as mesmas palavras, ainda que com
ressalvas, para aproximar os ‘anos de chumbo’ da ditadura militar à imperfeita
democracia do presente é muito grave
Este artigo é a réplica ao artigo Precisamos
dar nome aos bois (Estadão, 9/8, A4), que defende que o Brasil vive sob um
“estado de exceção informal”.
Encorajado pela chantagem de Trump, o
bolsonarismo aumenta o tom da ladainha: o Brasil “vive sob a ditadura do Poder
Judiciário”, personificada na figura de Alexandre de Moraes, ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF). A acusação é parte da estratégia voltada a
promover a impunidade daqueles que atentaram contra o Estado Democrático de
Direito.
O Brasil vive a mais longa experiência
democrática de sua acidentada história constitucional. Uma experiência
imperfeita, é verdade. O fato, no entanto, é que ao longo dos últimos 40 anos,
fomos capazes de solucionar os conflitos políticos de forma pacífica, por meio
de eleições e de acordo com a Constituição, regra de ouro da democracia, que o
ex-presidente Bolsonaro e seus acólitos buscaram subverter.
Não se confunda a crítica legítima a decisões eventualmente equivocadas do STF com a tentativa de solapar as instituições democráticas. Quanto mais agora, quando o chefe da maior potência militar e econômica do planeta mobiliza instrumentos punitivos contra a soberania nacional na tentativa de coagir o Supremo Tribunal Federal a abdicar da responsabilidade de guardar a Constituição.
Nesse contexto, preocupa que vozes da direita
democrática brasileira façam coro com a cantilena golpista, ainda que de modo
mais sofisticado. É o caso do artigo Precisamos dar nome aos bois, escrito por
Henrique Zétola e Jamil Assis, pessoas a quem respeitamos pelo bom trabalho que
realizam à frente do Sivis, entidade dedicada ao estudo e ao debate da
liberdade de expressão.
Sem analisar com rigor os casos a que se referem e sem considerar o contexto em que foram tomadas, os autores arrolam decisões supostamente exemplificativas da usurpação de poder por parte do STF. Nesse passo, misturam decisões sobre as emendas parlamentares, nas quais o Supremo buscou assegurar princípios constitucionais elementares, como a transparência no uso dos recursos públicos; decisões que ratificam a competência constitucional do presidente da República para alterar a alíquota do IOF, tida como incontroversa pela maioria dos tributaristas; grande número de decisões monocráticas do Supremo, substancialmente reduzidas pela obrigação de levá-las de imediato ao plenário das turmas do Tribunal; e decisões mais controversas. O descuido analítico seria inofensivo se não fornecesse supostos “elementos de prova” para a conclusão de que o Brasil ainda não seria uma ditadura, mas tampouco continuaria a ser uma democracia, vivendo sob um regime de “permanente exceção”.
Quem faz uma afirmação como essa ou não tem
ideia do que seja de fato um regime de exceção – talvez porque não o tenha
experimentado na pele como as pessoas da nossa geração e da anterior – ou não
tem disposição de distinguir imperfeições da nossa democracia, algumas delas
bem apontadas no artigo, de supostas mutações que estariam a alterar o seu
código genético.
Não há como comparar as condições políticas
de hoje com a experiência vivida durante o regime autoritário, em que o
Executivo federal concentrou e exerceu todos os poderes de forma arbitrária,
cassou parlamentares e ministros do STF, suspendeu ou restringiu gravemente as
garantias e liberdades fundamentais, prendeu, exilou, torturou e matou
clandestinamente adversários. Usar as mesmas palavras, ainda que com ressalvas,
para aproximar os “anos de chumbo” da ditadura militar da imperfeita democracia
do presente é muito grave.
A concentração de várias investigações sob a
presidência do mesmo juiz, que dirige a instrução do processo e participa do
julgamento, ainda que originalmente decorrente da omissão das diversas
instâncias de aplicação da lei de cumprirem sua tarefa básica, pode ser
criticada.
Não devemos nos esquecer, porém, de que não
vivemos tempos normais, nem aqui nem no mundo. O ataque às Cortes Supremas é
comum a todos os movimentos e governos autoritários que emergiram, à esquerda e
à direita, no século 21. Eles veem no Judiciário um obstáculo. Submetê-lo é
parte essencial de uma estratégia que se desdobra no controle sobre o
Congresso, sobre o processo eleitoral, assim como sobre a imprensa. A
literatura especializada mostra que, onde o Judiciário conseguiu resistir, a
virada autoritária teve maior dificuldade para avançar.
Essa constatação não afasta o risco de que o
Judiciário, ao se colocar como trincheira na defesa da democracia, possa
cometer erros, que devem ser apontados com rigor.
A restrição à liberdade de expressão é sempre
um risco. Quão tolerantes devemos ser com os intolerantes? Quais os limites das
democracias para se defender daqueles que abusam de suas liberdades para
destruí-las? Essas questões estão em pauta no Brasil, não de maneira abstrata,
mas de forma concreta. Não podemos negligenciá-las. As críticas ao
comportamento das instituições são essenciais ao seu aperfeiçoamento.
É preciso não confundir, porém, críticas
legítimas com a utilização distorcida de conceitos. Não se pode aceitar que,
sob o pretexto de dar nomes aos bois, se facilite a abertura da porteira para
que passe a boiada golpista.
*SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSOR DE DIREITO DA FGV-SP, MEMBRO DA COMISSÃO ARNS; E DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, MEMBRO DO GACINT-USP
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