terça-feira, 21 de maio de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Adiar eleição abre precedente perigoso

O Globo

Apesar da tragédia no Sul, medida só deveria ser tomada em casos excepcionais, por razões logísticas

Enquanto o Rio Grande do Sul conta mortes e prejuízos das enchentes que afetaram 90% de seus municípios, pode parecer prematuro discutir o adiamento das eleições para prefeito e vereador marcadas para 6 de outubro. Mas o debate é inexorável devido ao tempo exíguo para tomar as decisões. O calendário eleitoral já está aí. Em junho, começa a pré-campanha. No mês seguinte, entre 20 de julho e 5 de agosto, partidos e federações realizarão suas convenções. A propaganda começa em 16 de agosto.

Entre os políticos, não há consenso. “Ainda é um pouco cedo, mas também não vai poder retardar muito a discussão. Junho já é momento pré-eleitoral, e em julho se estabelecem as convenções”, afirmou ao GLOBO o governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB). Ele argumenta que a troca de governo nos municípios e o próprio debate eleitoral podem atrapalhar a reconstrução. O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), é mais reticente. Diz que um eventual adiamento precisa ser avaliado com critério, apenas quando tiver passado o auge da catástrofe e for possível avaliar seus impactos. O presidente do PL gaúcho, Giovani Cherini, defende o reagendamento do pleito para o primeiro semestre de 2025, depois que a população voltar para suas casas. Outras lideranças gaúchas são favoráveis ao adiamento argumentando que muitos locais de votação, como escolas, foram destruídos e que não há ambiente para a campanha eleitoral.

Não é possível ignorar a situação dos gaúchos. Mais de 600 mil moradores tiveram de deixar suas casas — muitas já nem existem. Quase 60 mil foram acolhidos em abrigos. Muitos saíram com a roupa do corpo. Perderam móveis, eletrodomésticos, documentos, tudo. Estradas e pontes estão destruídas, dificultando o transporte. Mesmo quem voltar depois de a água baixar levará meses para retomar a rotina. Sem falar no trauma psicológico.

Apesar de tudo isso, adiar uma eleição não é medida trivial. Caso envolva também a permanência dos atuais mandatários no cargo, abre precedente perigoso numa democracia, em que a duração fixa dos mandatos está na essência da alternância no poder. Para isso, seria necessário aprovar uma emenda à Constituição no Congresso, como foi feito durante a pandemia em 2020. Só que, naquele caso, foi adiada apenas a data do pleito, por algumas semanas. A única justificativa plausível para o adiamento desta vez seria a absoluta impossibilidade logística de realizá-lo. Mas parece evidente que quatro meses são tempo mais que suficiente para superar os atuais obstáculos.

Ao contrário do que argumentam os defensores do adiamento, a eleição municipal neste momento de reconstrução poderá ter papel importantíssimo para a população. Os candidatos precisarão apresentar objetivamente seus planos para que as cidades não voltem a ser arrasadas pelas águas, comprometendo-se com medidas robustas de adaptação, negligenciadas até agora. A devastação mostrou que todos fracassaram. Será preciso falar também em reconstrução, reassentamentos, construção de moradias. A população ainda traumatizada pelo luto e pela destruição sem precedentes poderá usar esse debate fundamental para superá-los. O tempo é curto. O adiamento, pela essência do princípio democrático, deveria ser cogitado em último caso, apenas para as situações excepcionalíssimas em que persistir a impossibilidade prática de realizar o pleito.

Plenário do Supremo deve referendar decisão de Moraes sobre aborto legal

O Globo

Ministro viu abuso de poder em restrição imposta pelo CFM ao procedimento em caso de estupro

Ao analisar a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendendo a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que restringia o direito ao aborto de mulheres vítimas de estupro, o plenário virtual da Corte deveria chancelá-la. Para conceder a liminar, Moraes disse ver indícios de abuso de poder por parte do CFM, ao impor restrição de direitos “capaz de criar embaraços concretos e significantemente preocupantes para a saúde das mulheres”.

A resolução do CFM proibia os médicos, quando houvesse chance de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas, de realizar uma técnica clínica conhecida como assistolia fetal, que consiste na injeção de drogas para interromper os batimentos cardíacos. Na exposição dos motivos, o CFM argumentou que “optar pela atitude irreversível de sentenciar ao término uma vida humana potencialmente viável fere princípios basilares da medicina e da vida em sociedade”.

É evidente que tal opinião é legítima. Mas, no Brasil, a lei garante o direito ao aborto no caso de gravidez resultante de estupro sem qualquer limite de tempo. “O ordenamento penal não estabelece expressamente quaisquer limitações circunstanciais, procedimentais ou temporais para a realização do chamado aborto legal”, escreveu Moraes. Ao restringir o acesso ao procedimento médico, “reconhecido e recomendado pela Organização Mundial da Saúde”, argumentou Moraes, o CFM exorbitou seus poderes. Apenas o Congresso pode mudar os termos da lei.

Quando o aborto é feito antes das fases gestacionais mais avançadas, são menores as chances de problemas físicos e psicológicos para a mãe. Mas, no Brasil, o sofrimento das vítimas de estupro pode se estender por muito mais tempo depois da violência sexual. O país tem poucos municípios com serviço de aborto legal, disse ao GLOBO Olímpio Barbosa de Moraes Filho, diretor médico do centro de saúde da Universidade de Pernambuco (UPE). E muitos não funcionam, criando dificuldades que obrigam as gestantes a adiar o procedimento.

Muitas vítimas de estupro são crianças e adolescentes que tiveram poucos ciclos de menstruação e tardam a apresentar sinais de gravidez. Para complicar, médicos e assistentes sociais contrários ao direito garantido em lei fazem de tudo para que desistam do aborto. “Se o CFM está preocupado com os procedimentos realizados após 22 semanas, toda Secretaria deveria oferecer o serviço e abrir processo ético contra médicos que bloqueiam o direito à informação”, diz Moraes Filho.

O debate em torno do aborto é influenciado por preferências ideológicas e crenças religiosas. Trata-se de um debate pertinente, sobretudo no caso de gestações em fases avançadas. O foro adequado, porém, não são os gabinetes das associações médicas, e sim o Congresso Nacional. O CFM, como qualquer cidadão, pode discordar da forma como o procedimento é regulamentado no Brasil. Mas não pode criar embaraço ao cumprimento da lei. O plenário do STF precisa deixar isso claro.

Morte de presidente cria disputa incerta no Irã

Folha de S. Paulo

Linha dura mira na sucessão do líder supremo da teocracia, sob risco de intensificar onda de protestos contra o governo

A morte do presidente do Irã, Ebrahim Raisi, toma o mundo de surpresa em um momento crítico da história da República Islâmica fundada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini após a revolução de 1979.

Constitucionalmente, o país está pronto para tal contingência. O vice-presidente assumiu e, em 50 dias, uma nova eleição indicará o novo mandatário, que quase certamente virá da mesma linha dura religiosa que gerou Raisi.

A teocracia em si seguirá tendo como líder supremo Ali Khamenei, no cargo desde a morte de Khomeini em 1989. Assim, no papel, parece que o Irã está pronto para absorver o trágico evento. Mas isso é somente a aparência.

Raisi fora eleito em 2021 no pleito de menor comparecimento popular desde a criação do regime. Egresso de um meio ultraconservador, trazia no currículo mortes de dissidentes nos anos em que atuou no Judiciário local, que chegou a encabeçar.

Deixou sua marca ao tornar ainda mais draconianas as restrições à liberdade das mulheres no país. A morte de uma jovem presa por não envergar de forma considerada correta o véu islâmico em 2022 foi o estopim para uma série inaudita de protestos contra o governo, catalisando insatisfações que vão dos costumes à economia.

No campo externo, Raisi encarnou a radicalidade da Guarda Revolucionária, principal instituição do Irã. Da renovada busca pela bomba atômica às vias de fato no confronto que sempre perseguiu por procuração com Israel, o presidente elevou o perfil de risco do país.

O fez de forma comedida em termos, contudo, devido ao temor de uma guerra aberta, existencial, com os Estados Unidos.

O objetivo de Raisi era o de pavimentar seu caminho para suceder Khamenei, que aos 85 anos não apresenta mais a vitalidade de outrora. Com seu desaparecimento em uma queda de helicóptero, o jogo parece aberto, dentro do que é possível aferir.

Por todo seu autoritarismo atávico, a teocracia de Teerã embute freios e contrapesos peculiares. Um deles é o fato de que, se indica o conselho que controla quem adentra a Assembleia de Peritos (o órgão de 88 membros que elege o líder supremo), Khamenei não pode nomear o sucessor.

Assim, os rumores de que ele gostaria de ver no posto o filho Mojtaba, também clérigo, podem não passar mesmo disso. Mojtaba é próximo o suficiente da linha dura iraniana, mas foi um dos alvos dos recentes protestos.

Se arriscar uma nova onda de manifestações, Khamenei pode entrar para a história como o homem que consolidou o país imaginado por Khomeini, mas também presidiu sua derrocada.

Terapia arriscada

Folha de S. Paulo

Poder público deve apoiar o SUS, em vez de bancar tratamento duvidoso para vício

O negacionismo na área da saúde da gestão Jair Bolsonaro (PL) saiu de cena com a mudança de poder, mas ainda há rastros de insensatez. Em relação à dependência química, tanto Planalto quanto Congresso Nacional desafiam princípios de tratamento preconizados pela OMS e pela lei brasileira.

É o que se vê no suporte às comunidades terapêuticas (CTs). Só em emendas parlamentares individuais (sem contar as de bancada e comissões), foram destinados R$ 56 milhões no Orçamento deste ano a essas entidades controversas.

As CTs realizam um trabalho baseado em isolamento social, abstinência e religião —em 2020, 74% delas eram católicas ou evangélicas.

No entanto a Lei Antimanicomial, de 2001, veda "a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares".

A privação total do acesso à droga é criticado por especialistas, já que o paciente em algum momento não estará internado e precisará lidar com a oferta de psicoativos. Daí os melhores resultados da combinação de convívio social e familiar com a redução de danos.

Quanto à religião, a espiritualidade pode ser fator importante para a saúde física e mental. O problema é o foco em uma crença específica.

Pior, inspeções realizadas em parceria entre o Conselho Federal de Psicologia e Ministério Público Federal, além de estudos técnicos, mostram punições de pacientes e violações de direitos.

Por isso a legislação indica que o cuidado público de dependentes seja realizado pelo SUS, por meio da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Entretanto, em 2022, só 1% do orçamento nacional em saúde foi destinado a essa rede —a OMS recomenda 6%.

Bolsonaro inflou o aporte às CTs. Apesar da redução sob Luiz Inácio Lula da Silva (PT), até março ainda havia 262 unidades financiadas pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social.

É de lamentar que parlamentares direcionem dinheiro público a políticas públicas baseados em ideologia ou crença religiosa, não em critérios de eficiência e eficácia —e que o governo se submeta a pressões desse tipo.

O drama das crianças gaúchas

O Estado de S. Paulo

Autoridades precisam unir esforços para restabelecer o retorno das aulas no RS. O País não tem o direito de deixar os estudantes em segundo plano, como na pandemia de covid-19

A enchente histórica que atinge o Rio Grande do Sul pode impor uma nova tragédia à vida de milhares de crianças e adolescentes. Ao menos 60 escolas foram totalmente destruídas pelas chuvas, e cerca de mil unidades estão danificadas ou ficam em comunidades severamente afetadas pelas inundações. Nada menos que 452 instituições não têm sequer previsão de retornar às atividades – o equivalente a um a cada cinco colégios estaduais.

De maneira prudente, o Ministério da Educação (MEC) flexibilizou o calendário escolar no Estado, dispensou as escolas do cumprimento do número mínimo de dias letivos estabelecidos em lei e permitiu que a carga horária seja recuperada no ano seguinte, inclusive com atividades não presenciais. Tais regras, que valerão enquanto estiver em vigor o estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul, foram acordadas entre a pasta e os secretários de Educação do Estado e dos municípios.

Não deixa de ser um alento a existência de um alinhamento entre todas as instâncias do Executivo sobre o que fazer nesse caso. Porém, trata-se apenas de um primeiro passo para garantir o restabelecimento do ensino e que precisará ser seguido por muitos outros. E é justamente na etapa seguinte ao reconhecimento imediato de uma emergência que as autoridades públicas costumam errar feio.

Basta lembrar a péssima experiência brasileira no enfrentamento da covid19 para saber o que não repetir. Foram dois anos e meio marcados por escolas fechadas, o triplo da média registrada em países ricos, segundo a Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em todo o mundo, apenas Chile, Letônia e Polônia fizeram pior que o Brasil. As perdas de aprendizagem ainda não foram recuperadas, se é que serão.

Para as crianças gaúchas, o desafio será ainda maior. Reportagem publicada pelo Estadão demonstrou o tamanho e o ineditismo do problema que está posto. Em Roca Sales, um dos municípios mais afetados pela enxurrada, a estrutura da Escola Estadual Padre Fernando já havia sido danificada pela enchente anterior e demandava reparos, mas foi completamente destruída. Outra escola de Educação Infantil do município não sucumbiu às chuvas, mas tem servido de abrigo e não pode receber aulas neste momento.

Para lidar com casos como esses, o MEC abriu crédito extraordinário de R$ 46,1 milhões destinados à reforma das escolas. O valor não parece suficiente para dar conta do problema, mas tampouco é sensato usar os recursos para reconstruir algumas das escolas no mesmo lugar em que estavam. Tampouco

será possível recorrer ao ensino remoto, haja vista que a infraestrutura de telecomunicações está em ruínas.

Não se trata apenas de uma questão de infraestrutura. Nas escolas que ficaram de pé, será preciso encontrar formas eficientes de impedir a evasão. A busca ativa tradicional não bastará para trazer os alunos de volta às salas de aula. Em alguns casos, não há mais residências a visitar e não se sabe onde as famílias estão. Em outros, são os professores que perderam tudo o que tinham. Há ainda os problemas de ordem psicológica causados pelo trauma, que tampouco podem ser negligenciados.

Em Porto Alegre, instituições de ensino particulares e a rede municipal confirmaram o regresso das atividades nesta semana em alguns bairros, mas será preciso adaptá-las para receber alunos obrigados a se mudar. Não basta, no entanto, anunciar a retomada sem avaliar a situação de cada escola isoladamente e sem prover material escolar, alimentação e transporte para as crianças mais vulneráveis.

Há muito a ser feito, e é fundamental que as autoridades unam esforços para restabelecer o retorno das aulas o mais rapidamente possível. A reconstrução do Rio Grande do Sul custará caro e levará anos, talvez uma década, para ser concluída. Esse é um risco concreto ao futuro das crianças gaúchas, que não têm todo esse tempo para perder.

É inaceitável que algo remotamente semelhante ao que se viu na pandemia de covid-19 se repita no Rio Grande do Sul neste momento. O Brasil não tem o direito de deixar as crianças mais uma vez em segundo plano.

Excesso de desfaçatez

O Estado de S. Paulo

Bônus por ‘excesso de serviço’ para os procuradores do Estado de SP premia a ineficiência e ofende os brasileiros que de fato trabalham demais e não recebem um centavo a mais por isso

O governador Tarcísio de Freitas pediu e a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) atendeu. Na semana passada, a Alesp aprovou um projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo que concede mais um privilégio aos procuradores do Estado – servidores que, não custa lembrar, já compõem a elite do funcionalismo público no País.

Desde o dia 16 passado, o procurador que se sentir sobrecarregado por “excesso de serviço” pode tirar um dia de folga a cada três trabalhados, até o limite de sete dias de descanso por mês – além de fins de semana e feriados. Se preferir, esse pobre servidor extenuado pode converter as folgas extras em mais dinheiro no bolso – e, naturalmente, a título de “verba compensatória”, ou seja, não sujeita a abatimento devido ao teto constitucional para a remuneração do serviço público.

Para adicionar insulto à injúria, Tarcísio encaminhou o projeto de lei à Alesp com pedido de “urgência” – quando urgência, é óbvio, não há. Ademais, o governador de São Paulo defendeu a necessidade da “compensação” alegando que a medida, ora vejam, “decorre de estudos realizados pela Procuradoria-Geral do Estado”. A Alesp, por sua vez, aprovou o projeto sem dedicar um minuto sequer ao estudo de seus impactos financeiros para o erário, até porque essa estimativa não foi feita. Se foi, segue ao abrigo do escrutínio público.

O Estadão questionou tanto o Palácio dos Bandeirantes como a Procuradoria-Geral do Estado sobre o custo desse novo benefício para os contribuintes e, sobretudo, com quais ganhos de eficiência os paulistas poderiam contar a partir da aprovação do novo incentivo financeiro aos procuradores – afinal, é disso que se trata, pois é improvável que a opção pelo pagamento da “compensação” em dinheiro não supere, de longe, a requisição por mais folgas. Não houve resposta das autoridades a essas perguntas.

Por meio de nota, a Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo (Apesp) se limitou a dizer que a “licença compensatória” é um “mecanismo legítimo de compensação pelo desempenho de atividades extraordinárias”. Sobre quais seriam essas tais “atividades extraordinárias”, nem uma palavra da guilda. O presidente da Apesp, José Luiz Souza de Moraes, jurou de pés juntos que a concessão do privilégio “não será a farra do boi”, sublinhando que “esse dinheiro é arrecadado pelo êxito das ações propostas pelos procuradores”. Nem ocorre ao líder classista que os procuradores já ingressam na carreira com salário de quase R$ 40 mil justamente para defender os interesses do Estado e da sociedade, os reais beneficiários do sucesso das ações que patrocinam, não os próprios servidores. É um escárnio a naturalidade com que se defende o indefensável.

Ao que parece, os doutos procuradores – além dos demais membros do Ministério Público e do Poder Judiciário – parecem acreditar piamente que o Estado existe para lhes servir, talvez como uma espécie de “prêmio” tão somente por terem sido aprovados num difícil concurso público.

A desfaçatez e o alheamento da realidade do Brasil podem ser os mesmos, mas a regalia para os procuradores estaduais não é original. Em maio de 2022, convém lembrar, o Conselho Nacional do Ministério Público aprovou a “gratificação por acúmulo de processos”. À época, isso significava um aumento de até 33% – ou R$ 11 mil – nos salários dos procuradores da República. Para além da defesa de mais um privilégio de classe autoconcedido, neste caso, a proposta ainda estava inserida no contexto da campanha aberta do então procurador-geral da República, Augusto Aras, para angariar a simpatia de seus pares com vistas a uma possível recondução, o que, para sorte do País, não ocorreu.

Tanto no caso dos procuradores do Ministério Público Federal como agora, no caso dos procuradores do Estado de São Paulo, está-se diante de um privilégio absolutamente incompatível com a mera ideia de República. Como se isso não bastasse, premiar com dinheiro ou folga o “excesso de serviço” é um evidente convite à ineficiência – além de ser uma ofensa aos milhões de brasileiros que de fato trabalham demais e não recebem um centavo a mais por isso.

A guerra de Bibi

O Estado de S. Paulo

Os generais de Benjamin Netanyahu exigem um plano para o pós-guerra, mas o premiê israelense resiste

O premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, está numa encruzilhada. O apoio de aliados tradicionais está em franca erosão. Os EUA ameaçam bloquear o envio de armas a Israel se o país aprofundar a invasão de Gaza sem um plano para retirar civis com auxílios humanitários. A recusa de Netanyahu em discutir um plano para o pós-guerra também exaspera Washington.

Agora, a crise veio à tona no governo. Generais já vinham se queixando de que a relutância de Netanyahu a propósito de uma estratégia política está dissipando conquistas militares. No norte de Gaza, há meses ocupado, o vácuo governativo permitiu o ressurgimento de células do Hamas. Na semana passada, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, queixou-se de que seus planos para um novo governo em Gaza envolvendo uma representação palestina não foram discutidos e nenhuma alternativa foi apresentada. Dias depois, o terceiro membro do gabinete de guerra, Benny Gantz, o maior adversário político de Netanyahu, declarou que a indecisão do premiê, a falta de um plano para Gaza e a força dos ultranacionalistas no governo estão precipitando a guerra num conflito longo e custoso. Gantz deu um ultimato: se não houver mudança de rota até 8 de junho, ele deixará o governo.

O conflito com Gaza está no seu ponto mais agudo desde a desocupação do enclave em 2005 e não há escapatória fácil e indolor deste inferno. O plano dos EUA é pactuar com o Hamas um cessar-fogo e a libertação dos reféns e instaurar o governo da Autoridade Palestina em Gaza, com a promessa a Israel de normalização das relações com os sauditas em troca da retomada das tratativas para um Estado palestino. O último ponto sofre maior resistência, inclusive da população e dos generais israelenses. E não será trivial revitalizar uma Autoridade Palestina corrupta e desacreditada pelos palestinos.

Mas quais as opções? Uma reocupação de Gaza, como a que imperou entre 1967 e 2005, seria desastrosa. Não menos desastrosa seria a opção oposta: decapitar o Hamas e abandonar Gaza à sua sorte.

Netanyahu está frustrando quase todos. Aliados internacionais querem um cessar-fogo. Seus generais querem um plano para o pós-guerra. As famílias dos reféns querem o retorno de seus parentes. Mas o premiê não quer desagradar aos ultranacionalistas, que ameaçam retirar seu apoio e derrubar o governo se uma “guerra total” não for empreendida e Gaza não for reocupada. Se Gantz e seu partido deixarem o governo, ele ainda manteria sua maioria. Mas bastaria a saída de cinco parlamentares para derrubá-lo. Eles podem vir do próprio Likud, o partido de Netanyahu e Gallant.

O fato é que a opção de Netanyahu por manter tudo como está conduz a uma guerra interminável, e quanto mais ela se prolonga mais o Hamas se aproxima de seus objetivos: dividir o governo de Israel, radicalizar israelenses e palestinos, alienar aliados de Israel e obliterar a normalização das relações entre Israel e os árabes, que seriam cruciais para compor uma força de paz, reconstruir Gaza e dissuadir o Irã e suas milícias.

Brasil não levou a sério até agora as mudanças climáticas

Valor Econômico

Dois terços dos 5,7 mil municípios brasileiros têm capacidade adaptativa baixa ou muito baixa, e destes, quase 2 mil são extremamente vulneráveis a inundações, deslizamentos, secas e incêndio

A necessidade de se ouvir a ciência tem sido uma afirmação comum de autoridades e políticos nas discussões a respeito da tragédia causada pelas enchentes no Rio Grande do Sul. O que a ciência diz, porém, expõe falhas e negligências que não são fáceis de serem aceitas por esses atores; e apontam para desdobramentos inevitáveis.

Os cientistas consideram o aumento da intensidade e da frequência de eventos extremos, como as enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul, consequências do aquecimento global. À medida que o planeta fica mais quente, ele também fica mais úmido. Quanto mais quente fica o ar, mais água ele pode reter e mais chuva pode cair. O problema é global. Nairóbi, no Quênia, recebeu quase 300 milímetros de chuva em sete dias, barragens foram rompidas soterrando cidades e matando seus habitantes. Em Dubai, mais de 250 milímetros de água caíram em um único dia, o correspondente ao total de um ano de chuvas normais, alagando as pistas de seu aeroporto internacional.

Dentro das fronteiras brasileiras, houve secas históricas na região Norte, que esvaziaram rios tradicionais, inviabilizaram a pesca e dificultaram o deslocamento de pessoas e mercadorias; e secas no Sul alternadas com as enchentes. A atual é a terceira enchente em oito meses no Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, o lago Guaíba superou a marca histórica da maior enchente registrada até então, em 1941, e chegou ao recorde de 5,31 metros, bem acima da cota de inundação. O sistema de proteção contra cheias da capital, composto de bombas e diques, não funcionou, inundando a cidade. Várias outras cidades no Estado também foram atingidas.

No Acordo de Paris, selado em 2015, 195 países concordaram em se esforçar para conter o aquecimento global em 1,5º C acima do padrão pré-industrialização. No entanto, esse limite provavelmente será rompido. O calendário marca uma sequência quase ininterrupta de meses com temperaturas médias recordes, seguidas também pelo aquecimento dos oceanos.

O cientista Carlos Nobre está pessimista. Para ele, mesmo que a produção de combustíveis fósseis mantenha o nível atual, sem poços ou minas novos, a temperatura média global vai superar a marca de 1,5º C acima da média pré-industrialização e chegar a 2,5º C em 2050. “Não só não se podem abrir novas minas de carvão, poços de petróleo e gás natural, mas não podemos usar nem o que já está aberto. Tem que reduzir o uso do que já está aberto”. Carlos Nobre disse em entrevista ao Valor (15/5) que o mundo já está vendo o que acontece com uma temperatura média 1,5º C e que o “gigantesco desafio” agora é não ultrapassar essa marca.

No entanto, Nobre tem recomendações, a começar por se evitar falar em desastres naturais uma vez que é a interferência humana na natureza que está causando o aquecimento global e o termo serve de desculpa para os negacionistas alegarem que não se pode fazer nada. Ele calcula que mais de 3 milhões de brasileiros vivem em áreas de risco e precisam ser avisados em caso de emergência, além de saber para onde podem ir para se proteger.

Nesse circuito, porém, há outro problema, como aponta José Marengo, coordenador de pesquisa do Centro Nacional de Monitoramento de Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Marengo diz que o Cemaden emite alertas com frequência. A Defesa Civil é a responsável por transmitir os alertas para a população. A Defesa Civil, porém, não existe em determinados municípios ou é tocada por pessoas despreparadas para a tarefa. A solução a médio prazo, porém, é tirar as pessoas dessas regiões de risco, disse Nobre, lembrando que áreas do Vale do Taquari já haviam sofrido inundações antes.

Todas essas providências custam dinheiro. Dos oito fundos estaduais para financiar as questões relacionadas às mudanças do clima existentes, apenas cinco funcionam. Nobre sugere que parte do Fundo Clima, que terá R$ 10 bilhões neste ano, seja destinada à adaptação climática, além da restauração da Floresta Amazônica e da redução das emissões. Ainda assim, o fundo é pequeno para a tarefa e precisaria pelo menos ser quintuplicado. Atividades como o setor de petróleo e a agricultura têm que contribuir mais, indica.

Falta também planejamento. Só três dos 27 Estados brasileiros têm planos de adaptação climática atualizados. Dos 5.570 municípios do Brasil, 1.580 estão no cadastro nacional de risco, de acordo com dados da Confederação Nacional de Municípios (CNM) de 2021. Mas só 729 (13% do total) contam com um Plano Municipal de Redução de Risco, conforme prevê a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNDC). Instituída pela Lei Federal 12.608/2012, a PNDC ainda não foi lançada e terá seu documento apresentado apenas no fim do próximo mês.

A Secretaria de Mudança Climática do Ministério do Meio Ambiente constata que 66% dos 5,7 mil municípios brasileiros têm capacidade adaptativa baixa ou muito baixa, e destes, quase 2 mil são extremamente vulneráveis a inundações, deslizamentos, secas e incêndios. Segundo o levantamento, o Rio Grande do Sul era considerado com capacidade razoável, até passar pelo que está sofrendo.

A crise e os deslocados climáticos

Correio Braziliense

O Brasil precisa se reposicionar no enfrentamento à crise climática caso pretenda sobreviver a ela. Recorrer a "experiências acumuladas no campo internacional" é um caminho, indica ONU

O sobe e desce das águas que assolam boa parte do Rio Grande do Sul já sinalizam, entre outros desafios, que cidades precisarão ser totalmente reconstruídas. Parece não haver casas, escolas, lojas ou hospitais de pé. Sobram adultos e crianças sem saber o que fazer e para onde ir. O cenário é propício ao chamado deslocamento interno por questões climáticas — um fenômeno que, só em 2022, segundo a Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), provocou a movimentação de cerca de 31,3 milhões de pessoas no planeta. Em torno de 680 mil estavam no Brasil. Com a atual tragédia climática em terras gaúchas — são pelo menos 615 mil fora de casa, estima a Defesa Civil —, surge no país uma urgência ainda maior em dar suporte a um universo de deslocados climáticos.  

Em entrevista ao Correio, Silvia Sander, oficial de Proteção da Acnur, conta que há um falso entendimento de que a crise ambiental tem levado as pessoas a deixarem os países em que vivem. Geralmente, há um deslocamento dentro do próprio território, e as Américas são uma das regiões do globo em que essa movimentação mais cresce, "considerando que os países estejam ainda mais expostos aos impactos das mudanças climáticas".

 À época do levantamento da agência das Nações Unidas, em 2022, o Brasil liderava os deslocamentos internos por desastres naturais na América do Sul. Fatores como a alta densidade populacional, aumento na ocorrência de extremos climáticos no país e a falta de um plano de resposta eficaz provavelmente nos mantêm em posição de destaque no ranking. Só em 2023, ocorreram 1.341 eventos climáticos no país — sendo 159 de médio ou grande porte — em 1.038 municípios monitorados pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). O número é recorde, sendo que 68% dos eventos se concentraram nas regiões Sul e Sudeste. 

Diante desse cenário crítico, não cabe mais amadorismo. O Brasil precisa se reposicionar no enfrentamento à crise climática caso pretenda sobreviver a ela. "Se já sabemos que esse tipo de incidente pode acontecer, (...) que a rede local já tenha plano de contingência que possa ser rapidamente ativado de uma maneira adequada (...). Isso vai organizar melhor e coordenar melhor ações de resgate com as de acolhimento, com ações de documentação, de encaminhamento para atendimento a serviços essenciais", indica Sander. 

Passado esse suporte emergencial, seguem novas demandas também complexas, como assistência psicológica aos atingidos, ações para reduzir possíveis deficits na educação das crianças e na saúde de adultos e idosos com doenças crônicas, além da reconstrução das áreas atingidas — sem repetir erros que facilitam deslizamentos, inundações e alagamento, entre outras tragédias.

 A oficial de Proteção da Acnur sugere às autoridades brasileiras que  recorram a "experiências acumuladas no campo internacional" para montar uma estrutura eficaz e sistematizada de resposta aos desastres climáticos. Essa é uma agenda prioritária aqui e no resto do mundo. E para se chegar aos resultados desejados, enfatiza Sander, as medidas precisam da "união de esforços".

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