O Globo
A precaução passa por recuperar a capacidade fiscal do Estado
O mundo se defronta com muitos problemas que
eram ignorados ou desconhecidos na virada deste século, por falta de
informações ou instrumentos para análise. No entanto, crise financeira,
pandemia, guerras e eventos climáticos mudaram essa percepção. Uma boa
caracterização do atual estado do mundo é de grandes incertezas.
Apesar disso, os atuais níveis de volatilidade nos mercados mundiais estão próximos das mínimas históricas, em meio à valorização de ativos, deixando uma impressão de calmaria. Não é bem assim. O que ocorre é a incapacidade de traçar cenários nessas circunstâncias, e o problema está na dificuldade de atribuir probabilidades a essas fontes de incerteza.
A distinção entre incerteza e risco feita na
teoria econômica pode ajudar na compreensão desse ponto. Diferentemente dos
riscos, em que as probabilidades dos eventos são bem definidas (como ganhar na
loteria ou bater o carro), as incertezas têm parâmetros de probabilidade mais
incertos.
O risco tem espectro mais circunscrito, como
por exemplo nas empresas de seguro, que precisam avaliar as chances de um
cliente sofrer acidentes. As probabilidades de eventos específicos podem ser
calculadas com razoável confiança.
Já incerteza não é tão bem delimitada e tem
probabilidade pouco passível de conhecimento. Sabe-se, por exemplo, da
vulnerabilidade a eventos climáticos, mas, por limites técnicos variados, é
difícil atribuir probabilidades a eles.
Diante dos riscos, os agentes econômicos
buscam proteção. E diante das incertezas, cabe a precaução.
A dificuldade de atribuir probabilidades faz
com que preços de ativos no mercado financeiro — que também são mais sensíveis
a eventos de curto prazo — não reflitam bem as percepções de incertezas.
O atual comportamento benigno dos mercados
mundiais sugere um estado de calmaria, quando na realidade há elevadas
incertezas. Isso não significa, porém, apatia dos agentes econômicos. O
desconforto afeta as tomadas de decisão, como na busca de precaução.
Pode ser o caso do aumento da demanda por
ouro, que voltou ao radar de analistas por conta da expressiva alta de preços
recente, com ganho acumulado anual de 20% em maio.
Não é de hoje que se nota o descolamento da
cotação do ouro em relação aos preços das demais commodities. A crise global do
subprime de 2008 marcou uma inflexão, com grande valorização do metal. Depois
de um período de calmaria entre 2013-2018, com o recuo das cotações, os anos de
2019-2020 trouxeram novo impulso aos preços.
Isso em um contexto de incertezas por conta
da guerra comercial entre EUA e China e da pandemia. As guerras atuais em curso
reforçam esse quadro de cotações pressionadas.
Um ingrediente importante nesse quadro é a
aquisição de reservas de ouro, desde 2008, por parte de alguns bancos centrais
de países menos alinhados ao Ocidente e mais expostos ao risco geopolítico.
Possivelmente, trata-se de medida de precaução diante de tempos incertos, como
apontado pelo banco central da Polônia.
Os países mais ativos na compra de ouro são
Rússia, China, Turquia, Polônia, Índia e Cingapura, e mais recentemente países
árabes e Hungria. Em 2022 e 2023, o acúmulo do metal nas reservas dos bancos
centrais foi bastante acima do padrão.
Do lado de investidores no mercado
financeiro, a demanda por ouro pode decorrer de propósitos variados, como a
busca por proteção à inflação elevada, diversificação de investimentos, redução
do risco da carteira ou mesmo por precaução. Um momento de forte aumento das
posições compradas foi na pandemia, pressionando as cotações.
Recentemente, mesmo com juros elevados e
inflação mundial em queda, as posições líquidas compradas no mercado voltaram a
subir, segundo a Commodity Futures Trading Commission. Possivelmente, um
reflexo das maiores incertezas.
A tranquilidade dos mercados mundiais engana.
Os governantes precisam estar atentos às fontes de incerteza. A precaução passa
por recuperar a capacidade fiscal do Estado, para poder agir quando necessário.
No entanto, por aqui, vemos muitas vezes
ações e ruídos do governo e do Judiciário que vão na direção de alimentar ainda
mais as incertezas. Elas podem não se traduzir plenamente nos preços do mercado
financeiro, mas estão lá e prejudicam tomadas de decisão na economia.
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