Creio que a grande maioria dos leitores deste jornal aproveita bem pouco dos
serviços municipais, como educação e saúde. A classe média desistiu faz tempo
das escolas e hospitais públicos. Por "classe média", entendo aqui em
torno de metade da população brasileira, um pouco mais ou menos. Quando
trabalhei em Brasília, notei que uma das primeiras providências de quem subia
na vida era fugir da saúde estatal e procurar um plano de saúde. Um dos
atrativos da Capes, órgão do Ministério da Educação no qual dirigi a avaliação
dos mestrados e doutorados do Brasil, era ter um bom plano para a saúde dos
funcionários.
Às vésperas da eleição municipal, pergunto: de que serve a prefeitura para quem
é de classe média? E que expectativas temos em relação a ela? Quase toda a
propaganda eleitoral se escora na promessa de melhorias para os mais pobres.
Dadas a desigualdade e a injustiça sociais que há no Brasil, nada mais justo.
Aceito de bom grado que a prioridade seja dos pobres. Sei, aliás, que também
sou beneficiado com a redução da miséria. Ela melhora o país como um todo. Dá
perspectivas de vida a pessoas que, não fosse isso, teriam a vida breve, curta,
sórdida e miserável. Esses adjetivos são de Thomas Hobbes, o filósofo que mais
estudei, e definem o que ele chama de estado de guerra. A combinação de miséria
e violência que há no Brasil corresponde razoavelmente a esse estado de guerra,
até porque ele vige quando não temos proteção do Estado contra a insegurança -
e é assim que estão muitos bairros que percorremos, em muitas cidades de nosso
país.
Mas, reconhecida esta prioridade, o que esperamos ou queremos de um governo
municipal? É legítimo os vários interesses se exporem numa campanha. É legítimo
cada setor da sociedade pedir o que quer. O que não é legítimo é escondê-los. E
o que é totalmente ilegítimo é manipulá-los. Quem viu, lembre, quem não viu,
alugue a série "Hilda Furacão", da TV Globo, adaptação de belo
romance de Roberto Drummond: um rico desonesto manipula a opinião pública, em
Belo Horizonte, para fechar a zona de prostituição, com o intuito de loteá-la e
ganhar rios de dinheiro. A história, asseguram-me os amigos mineiros, tem base
real. Sucede, em campanhas, de se manipular a opinião, geralmente com causas
moralistas, para obter fins pouco confessáveis. O que deseja a classe média?
Reduzimos a vida pública ao trânsito
O problema é que para esta classe a prefeitura praticamente só assegura um
bem, o trânsito. Nosso interesse pela vida pública municipal acabou se
resumindo num trânsito que flua - o que não obtemos. Não é por acaso que
asfalto bom, viadutos e pontes costumem ser populares junto à classe média. Na
verdade, ao contrário dos europeus, nos acostumamos a usar o carro e não o
transporte coletivo. O automóvel particular não é um luxo, mas uma necessidade.
Junto com o plano de saúde, é uma das prioridades de quem ascende na escala
social. Dá-se mais importância à saúde privada e ao carro próprio do que à
educação. Já sugeri que a educação fica em segundo plano porque as pessoas
simplesmente não têm ideia do que ela seria, se boa. Mas elas sabem o que é a
doença e o que é passar horas no ônibus. É por isso que, tão logo há uma folga
no orçamento, o seguro-saúde e o carro são as primeiras demandas.
Eu me permito aqui uma interpretação rápida. Um dos indicadores mais
importantes da vida em sociedade é como cada um de nós interage com os outros
em lugares públicos. Mas acontece que, tão logo você tenha um carro, passa a
interagir muito menos nos espaços comuns. Não usa mais o ônibus, mesmo o metrô.
Para muitas pessoas, os tempos mais longos em que elas têm contato com o outro
- com o desconhecido, com o conterrâneo - se dão com cada uma dentro de seu
carro. Na verdade, os encontros passam a se dar entre dois ou mais carros. Ora,
que é da cooperação, neste caso? Duas pessoas se encontrando na rua, face a
face, tête à tête, podem sorrir uma para a outra, ou uma recolher do chão
alguma coisa que a outra deixou cair, em suma, podem ser simpáticas entre si.
Podem cooperar. Podem criar um laço social. Esta pode até mesmo ser uma
sociabilidade efêmera, como a que construímos com o passageiro ao lado no
ônibus, no avião, onde quer que seja - uma dessas relações que não terá
continuidade, em que não daremos o telefone ou, se dermos, sabemos que não
vamos ligar; mas que são muito agradáveis, direi eu, adaptando Vinicius: ternas
enquanto durem.
Mas pode isso acontecer entre dois automobilistas? Não, ou melhor, só no
filme de animação "Carros", em que os personagens são, justamente,
automóveis. Porque, quando dois carros se cruzam na rua, na maior parte dos
países subdesenvolvidos é para seus motoristas se hostilizarem. Negamos a
passagem ao outro. Disputamos com ele a preferencial. O contraste é espantoso
com os países desenvolvidos. Lá, os motoristas são tranquilos. Cedem a vez. Não
se estressam tanto, nem estressam o outro.
O que resumir disso? Pouco temos, nós da classe média, a esperar dos
governos municipais - pelo menos, em nosso interesse direto. E nosso principal
interesse na vida nas cidades é esta pequena guerra de todos contra todos, em
que fechamos o carro do outro com o risco de um acidente, que na melhor das
hipóteses custa dinheiro e tempo, na pior, a vida ou a saúde, isso só para ganhar
uma fração de segundo. E nisso, sentimos também nossa falha nas relações
humanas. Porque não adianta repetirmos que somos mais calorosos, mais afetuosos
que os europeus ou americanos, quando o que fazemos, no trânsito, é uma
simulação de guerra. Mudar isso é preciso. Depende de quem?
Fonte: Valor Econômico
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