Democracia exige respeito aos ritos procedimentais
Os engenheiros institucionais redescobriram, na segunda metade do século XX, o que Aristóteles já havia atentado há mais de 300 anos antes de Cristo: as regras contam! As formas de agregação de preferências eleitorais, então, foram um dos principais alvos dos analistas, que inventaram as mais variadas "engenhocas" para que os eleitores pudessem escolher e eleger seus líderes. Se não fosse a síndrome demiúrgica que ataca uma parte dos analistas, que acordam e se acreditam "founding fathers" tupiniquins, seria desnecessário lembrar que diante de tamanha complexidade, poucos são os consensos entre os estudiosos sobre os efeitos de cada dimensão específica dos sistemas eleitorais, posto que há variações não somente das regras como também dos contextos sociais onde as mudanças são implementadas - fatos que inserem altas doses de imprevisibilidade nas reformas eleitorais.
Todavia, o ímpeto reformista parece que vem em ondas e não faltam os que nelas pretendem surfar. E o sistema de financiamento de campanhas eleitorais foi novamente lançado à categoria de "hit parade", desta vez não por escândalos de corrupção eleitoral, mas por uma ação de inconstitucionalidade proposta pela OAB - e encampada pela CNBB e diversos outros grupos de interesses organizados - que pretende intervir no sistema de duas maneiras distintas: (a) proibir a participação de empresas no financiamento, e (b) instar o Congresso a impor limites fixos de arrecadação aos partidos e aos financiadores privados (pessoas físicas).
Mas poderia haver algum mal no nobre intuito de limitar o poder do dinheiro nas eleições? Sim, e muitos! O primeiro, quiçá o mais grave, é uma mudança de tamanha proporção advir da atuação de grupos de interesses organizados no Poder Judiciário. Parte-se da perigosa premissa demofóbica de que o Congresso é incapaz de legislar sobre assuntos eleitorais, que a "não ação" é fruto de inapetência, incompetência e má-fé, e não que a permanência do status quo seja consequência da falta de consenso mínimo entre os atores. Ainda que se concorde com as mudanças propostas pela OAB, a democracia exige respeito aos ritos procedimentais, que devem ser cumpridos a despeito da concordância, ou não, com a questão substantiva proposta.
Segundo, o dinheiro é apenas parte dos recursos com potencialidade para alterar resultados eleitorais. Há recursos organizacionais (máquinas partidárias e de governo) que são mobilizados pelos partidos e candidatos com objetivo de angariar votos. Impor limites muito drásticos aos gastos pode simplesmente dar mais condições aos candidatos à reeleição em detrimento dos desafiantes - o que causaria como efeito perverso o congelamento do sistema com a manutenção dos atores atuais no poder.
Terceiro, proibir abruptamente a participação de pessoas jurídicas - que são as principais fontes de arrecadação dos partidos - e sem adotar qualquer medida de diminuição dos custos das campanhas, seria um convite à ilegalidade. Dito de outra forma, a ausência de fontes alternativas de arrecadação e permanência dos atuais custos, somada à debilidade de fiscalização, fará com que o caixa dois impere absoluto nas eleições.
Quarto, há implícita na proposta de proibição das pessoas jurídicas uma premissa de intencionalidade comportamental, qual seja, a de que corporações que almejam lucros quando doam o fazem por investimento, enquanto as pessoas físicas o fazem por crenças ideológicas.
Como se não bastasse a criminalização das organizações previamente por obterem lucro, é absolutamente impossível derivar e distinguir intencionalidades das ações de um e de outro; são incautas tanto a beatificação da ação individual quanto a demonização da coletiva. Esquece-se que um dos pilares da democracia é a liberdade de organização, participação e expressão.
Quinto, existe obviamente a necessidade de se corrigir equívocos regulatórios do sistema em vigência que causam distorções na competição eleitoral - o oximoro da autorregulação dos limites dos arrecadadores (partidos, candidatos e comitês que se autoimpõem valores máximos no início da campanha) e os limites relativos à renda dos doadores são exemplos dessas excrescências regulatórias.
Não obstante, a fixação de limites fixos absolutos é tanto de extrema importância quanto complexa, posto que coexistem no sistema eleitoral brasileiro diversos subsistemas em diferentes níveis de representação que se auto influenciam. Há, portanto, uma enorme variação de custos de campanhas para diferentes cargos e entre diversas regiões, sem mencionar a heterogeneidade de municípios. Impor limites fixos de arrecadação significa impor custos fixos. Instar o Congresso a decidir impondo data limite é, além de um acinte à separação de Poderes, uma temeridade dados os riscos de efeitos perversos.
Por fim, negligenciam os hiperinstitucionalistas, que não será somente por meio de regras ainda mais proibitivas que se resolverão os problemas de intervenção dos grupos organizados na política, muito menos os casos de corrupção. Proibir sem fiscalizar só é válido para atividades religiosas.
Ao Estado cabe fazer cumprir as leis ("law enforcement"), seja criando mecanismos que diminuam a probabilidade de impunidade, seja aumentando as punições. Em não se tratando de anjos, nada valerá impor ainda mais regras proibitivas e não assegurar que elas sejam efetivamente aplicadas aos transgressores. A única modificação exitosa até o momento foi a ação de fiscalização conjunta entre a Receita Federal e o Tribunal Superior Eleitoral - este sim o principal motivo para o aumento dos gastos declarados dos partidos nos últimos anos.
Burlar o sistema de prestação de contas está ficando cada vez mais custoso, basta analisar a quantidade de candidatos proibidos de participar do último pleito por irregularidades da prestação de contas da eleição anterior.
Vitor Peixoto é professor associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), coordenador do curso de ciências sociais
Fonte: Valor Econômico
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