Congresso muda o mapa do poder dos Ministérios
Valor Econômico
Como o desenho ministerial é sobretudo
político, o parecer dado ontem pelo relator não poderia deixar de ser polêmico
O mapa dos poderes nos Ministérios ainda
pode mudar quando for votada, finalmente, a MP 1154, ameaçada de caducar caso o
Legislativo não se pronuncie sobre ela até 1º de junho. A MP define a nova
configuração do governo, ampliada de 19 pastas para 37. Como o desenho
ministerial é sobretudo político, o parecer dado ontem pelo relator, deputado
Isnaldo Bulhões Jr (MDB), não poderia deixar de ser polêmico. E como o peso da
bancada ruralista é grande na Câmara dos Deputados, o Ministério do Meio
Ambiente, severamente degradado durante o governo de Jair Bolsonaro, poderá não
chegar a ter o comando de órgãos e funções que lhe eram próprias no passado.
O Cadastro Ambiental Rural, que constitui a base de informações sobre imóveis rurais, vital para se mapear o desmatamento e orientar o Programa de Recuperação Ambiental, deixará, se o parecer do relator for aprovado, de ser atribuição da pasta de Marina Silva. Isnaldo tentou uma solução salomônica entre a pressão ruralista, que defendia que a atribuição fosse delegada ao Ministério da Agricultura, historicamente mais permeável à influência dos lobbies dos produtores, e os ambientalistas, que acham a mudança absurda e sem sentido, como de fato é. O CAR será responsabilidade do Ministério de Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, de Esther Dweck, que nunca teve qualquer proximidade com o assunto. Para o relator a mudança garantirá o “equilíbrio entre desenvolvimento e a proteção ambiental”.
O cadastro ambiental, em si, é alvo de constante
bombardeio da bancada ruralista. Foi prorrogado novamente pelo governo
Bolsonaro em MP de dezembro, votada pela Câmara e modificada este mês pelo
Senado, devendo voltar à apreciação dos deputados. Desta vez, os deputados
incluíram inúmeros jabutis que permitiriam entre outras coisas mais devastações
na Mata Atlântica, dispensas de estudo de impacto ambiental em desmatamentos
para obras de saneamento ou instalação de linhas de transmissão de energia, e
desobrigação de zonas de amortecimento em unidades de conservação nas áreas
urbanas e de consulta aos órgãos de meio ambiente para uso de faixas às margens
de rios, córregos etc. Uma ou várias dessas atrocidades ambientais podem ainda
ser aprovadas pela Câmara, que terá a palavra final.
Podem sair também da influência da ministra
Marina Silva a política nacional de recursos hídricos e Agência Nacional de
Águas, transferidas para o Ministério de Integração e Desenvolvimento Regional.
Essas mudanças do parecer do relator têm
boas chances de serem aprovadas, diante do acirramento das posições, já
radicais, da bancada ruralista diante das reações do presidente Lula e da
ministra do Meio Ambiente a eventos recentes. O desconvite ao ministro da
Agricultura, o agropecuarista e senador Carlos Fávero, para a abertura da
Agrishow, maior feira internacional de tecnologia agrícola da América Latina,
porque o ex-presidente Jair Bolsonaro estaria presente, levou Lula a atacar os
“fascistas” e “negacionistas” responsáveis pela ação. Além disso, o Ibama negou
licenças para exploração de pesquisa da Petrobras na Margem Equatorial,
suscitando a ira entre outros de Davi Alcolumbre (UB-AP), que é presidente da
Comissão Mista que analisa a MP de reorganização do governo.
Outros lobbies agem para defender o
fisiologismo e o poder sobre o uso de verbas públicas. A MP extingue a Fundação
Nacional de Saúde (Funasa), um feudo de partidos do Centrão, responsável por
ações de saneamento, controle e prevenção de doenças vinculado ao Ministério da
Saúde. Pela reforma, deixa de existir e suas funções foram divididas entre o
Ministério da Saúde e o das Cidades. A mudança enfrenta forte rejeição e causou
o adiamento de votação do parecer na comissão de ontem para hoje.
A demarcação de terras indígenas, na MP,
incumbiria ao Ministério dos Povos Indígenas, mas o relator concede a
atribuição ao Ministério da Justiça, sob o comando de Flavio Dino. A intenção
do governo de acelerar essas demarcações, que foram paralisadas na gestão
Bolsonaro, não deve ser afetada pela mudança, já que o ministro faz parte do
“núcleo duro” da atual administração e é francamente favorável à ideia. Mas a
oposição, com o apoio dos ruralistas, pretende levar adiante e votar logo o PL
490/2007, que restringe a demarcação de terras indígenas às ocupadas por eles
quando a atual Constituição foi promulgada, em 1988. O Supremo Tribunal Federal
deve retomar o julgamento do marco temporal em breve.
Por outro lado, o relator agiu na direção certa ao retirar da MP a transferência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Banco Central para o Ministério da Fazenda. O Coaf vigia transações financeiras suspeitas e foi alvo de críticas de Bolsonaro na apuração de rachadinhas de filhos do ex-presidente. O STF chegou a suspender o uso de suas informações por um tempo. A polêmica deixou claro que o órgão deve ficar longe da área de influência do Executivo. Permanecerá com o BC, agora autônomo.
A persistência insidiosa do Custo Brasil
O Globo
País desperdiça 19,5% do PIB com
deficiências na burocracia, na infraestrutura e na mão de obra
O termo Custo Brasil identifica,
de modo geral, toda sorte de empecilhos que atravancam a vida das empresas.
Como todo custo, ele tem um valor em moeda corrente: nada
menos que R$ 1,7 trilhão por ano, ou 19,5% do PIB, de acordo com
estimativa recém-divulgada do Movimento Brasil Competitivo (MBC) com apoio do
Ministério do Desenvolvimento. No campo das boas notícias, constatou-se queda
em relação aos 22% de quatro anos atrás. Mas o próprio estudo atribui a queda
aos efeitos da inflação alta e do crescimento baixo, não a avanços
significativos no ambiente de negócios.
A vida do empresário brasileiro continua
difícil, quando comparada à dos que operam nos países da OCDE, referência para
o levantamento. A consequência é o encarecimento de bens e serviços, menos
investimentos e, portanto, menor geração de empregos. Para Roberto Caiuby,
conselheiro executivo do MBC, o setor empresarial aguarda com otimismo a
reforma tributária anunciada pelo governo, baseada na simplificação do
emaranhado convoluto de regras em que se transformou o sistema brasileiro de
impostos. O MBC calcula que a empresa brasileira gasta em média 62 dias por ano
apenas para calcular e pagar impostos, enquanto nos países da OCDE a média é de
apenas seis dias.
De modo geral, o ambiente regulatório
brasileiro não favorece o empreendedor. É tão difícil abrir quanto fechar uma
empresa ou acessar serviços públicos. A qualificação da mão de obra é sofrível,
como resultado das deficiências no ensino público básico. Nas últimas três
décadas, administradores públicos têm se esforçado, com apoio de organizações
sociais, para enfrentar o problema, mas os gastos crescentes com educação não
têm surtido o efeito esperado no desempenho dos alunos. É preciso reduzir as
taxas de evasão e reparar os danos da pandemia. O problema mais urgente está no
ensino médio, crítico para a qualificação da mão de obra. Infelizmente, o
governo congelou a reforma aprovada pelo Congresso. Quanto mais rápido as
mudanças voltarem a ser implementadas, melhor.
A qualidade insatisfatória da mão de obra
responde, de acordo com o estudo, por 20% do Custo Brasil, ou R$ 335 bilhões.
São recursos perdidos pelas empresas e pelo país. No Brasil, o ensino técnico
profissionalizante é pouco procurado — atrai apenas 11% do total de alunos,
ante 45% na Alemanha — e o acesso ao ensino superior ainda é restrito. Em razão
disso, Caiuby prevê um apagão de mão de obra qualificada quando o país voltar a
crescer de forma sustentada entre 3% e 4% ao ano.
Há, ainda, os gargalos renitentes na
infraestrutura: rodovias esburacadas, ferrovias insuficientes, transporte
hidroviário incipiente etc. Além da burocracia e da mão de obra, a logística é
outro fator crucial na formação do Custo Brasil. O acesso à banda larga cresceu
30% desde o último estudo, em virtude de um modelo bem-sucedido para atração de
investimentos privados em telecomunicações. A resistência corporativa e
ideológica, contudo, impede que setores como transporte ou energia deslanchem
na mesma proporção. Os problemas que se eternizam drenam a produtividade das
empresas e, com isso, limitam o crescimento do país. Sem combater o Custo
Brasil com determinação, o Brasil jamais reduzirá a miséria nem trilhará o rumo
do desenvolvimento.
Reação europeia a plataformas digitais
contrasta com hesitação brasileira
O Globo
União Europeia impôs € 1,2 bilhão em multa
contra a Meta, dona de Facebook, Instagram e WhatsApp
A Meta, dona
de Facebook, Instagram e WhatsApp, foi
multada na segunda-feira em € 1,2 bilhão pela União Europeia (UE) por
violar normas de proteção de dados. Foi a maior punição imposta no bloco a uma
plataforma digital por esse tipo de transgressão. A decisão é mais um exemplo
de como os europeus têm se destacado na regulação, enquanto no Brasil o
Legislativo ainda hesita diante do lobby das grandes empresas de tecnologia.
De acordo com o órgão regulador da Irlanda,
país onde fica a sede europeia da Meta, a empresa descumpriu as regras do
Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados ao transferir informações de
usuários da UE aos Estados Unidos. A Meta tem cinco meses para interromper o
envio e seis para acabar com qualquer processamento desses dados, incluindo o
armazenamento. A empresa informou que recorrerá da decisão.
Estados Unidos e UE negociam um acordo
sobre proteção de dados que satisfaça ao regulamento europeu. Em 2020, uma
decisão do Tribunal de Justiça do bloco já deixara claro que as empresas de
tecnologia não poderiam se ancorar num acordo anterior para manter o envio para
os Estados Unidos. A suspeita de que informações de cidadãos europeus sejam
alvo de espionagem quando armazenadas em solo americano preocupa a opinião
pública.
A Meta pode reclamar, mas não dizer que foi
pega de surpresa. Seguindo um padrão de blefes já visto em outros países, ela
chegou a ameaçar sair da UE no ano passado caso o fluxo de dados aos Estados
Unidos fosse proibido. A ameaça obviamente não funcionou. Até o momento,
nenhuma empresa de mudanças foi contratada para esvaziar a sede em Dublin.
Parece óbvio que a Meta, assim como todas as outras plataformas digitais, não
pode abrir mão de um mercado do tamanho do europeu.
Não é a primeira vez que a Meta é multada
por falhas na proteção de dados. Em 2019, o FTC, órgão americano responsável por
garantir o direito dos consumidores e condenar práticas desleais de negócios,
multou a empresa em US$ 5 bilhões por irregularidades cometidas no escândalo
Cambridge Analytica. Dados de milhões de usuários foram usados para influenciar
eleitores no Reino Unido e nos Estados Unidos.
Não resta dúvida de que a UE está na vanguarda da regulação digital. O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados entrou em vigor em 2018. No ano passado, o Parlamento aprovou o Regulamento de Mercados Digitais, com a intenção de coibir abusos de mercado. Os avanços aprovados no Legislativo europeu contrastam com a leniência do Congresso brasileiro diante do lobby das plataformas digitais. Ferrenhas opositoras do Projeto de Lei (PL) das Fake News, as grandes empresas da internet têm, até agora, conseguido barrar qualquer tipo de avanço na regulação. O Parlamento precisa reagir.
Técnico e legítimo
Folha de S. Paulo
BC é protegido de pressões, mas segue
democrático indicado por presidente eleito
O seminário promovido pela Folha sobre os
dois anos de autonomia do Banco Central permitiu, na segunda-feira (22), um
debate sóbrio e qualificado sobre um tema que o presidente da República decidiu
tratar de modo palanqueiro.
Entre as objeções apresentadas ao mecanismo
no evento, duas são particularmente relevantes neste início de governo —e,
pois, merecem comentário mais detido.
Para a professora da USP Leda Paulani,
contrária à autonomia, a norma confere poder excessivo a uma única pessoa, que
pode inviabilizar os planos de um presidente democraticamente eleito.
Já para o presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco (PSD-MG), cautelosamente favorável à autonomia, a política de juros do
BC, por afetar diretamente a atividade econômica, não deveria
seguir apenas critérios técnicos mas também "critérios políticos e
sensibilidade social".
Quanto ao primeiro argumento, cumpre
apontar, de saída, que a definição
dos juros não compete apenas ao presidente do BC, mas a um colegiado
composto também por oito diretores, todos com os mesmos direito a voto e
mandato de quatro anos após serem submetidos ao crivo do Senado.
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já teve a
oportunidade de fazer suas duas primeiras indicações para a cúpula do órgão e,
em 2025, deverá ter nomes de sua preferência ocupando a maioria das cadeiras.
Mais importante, nada há de antidemocrático
em regras que limitam o raio de ação dos governantes, corriqueiras no mundo e
no Brasil. A Constituição de 1988 impõe, por exemplo, gastos mínimos em áreas
tidas como prioritárias e restrições às possibilidades de criação e aumento de
tributos.
No caso do BC, bem como no das agências
reguladoras, trata-se de proteger de ingerências políticas decisões
fundamentais que devem ser essencialmente técnicas —e aí se chega à observação
de Pacheco.
A autonomia do BC se assenta no
entendimento teórico e prático de que o foco da política de juros deve ser o
controle da inflação, o que beneficia sobretudo a parcela mais pobre da
sociedade. Note-se que, no modelo brasileiro, o governo tem a prerrogativa de
definir as metas para a variação de preços.
Isso não quer dizer que o BC desconsidere o
impacto de suas decisões na atividade econômica, tanto que desde o surto
inflacionário de 2021 a instituição não tenta cumprir cegamente as metas
fixadas —o que exigiria taxas exorbitantes e uma recessão brutal.
A política monetária está obviamente
sujeita a erros de diagnóstico e execução, mas a experiência ensina que adiar
medidas difíceis em razão de conveniências momentâneas resulta em custos
sociais maiores num futuro próximo.
Saúde amazônica
Folha de S. Paulo
Déficit de médicos na região ainda se
mantém; política de longo prazo é vital
Países de dimensões continentais cujos
territórios contam com amplas áreas remotas, de natureza selvagem e de difícil
acesso, enfrentam percalços para oferecer serviços de saúde pública de modo
igualitário a toda população. Até mesmo nações ricas, como Canadá e Austrália,
têm essas dificuldades.
No Brasil, o desafio é tão antigo quanto o
próprio SUS, instituído pela Constituição de 1988. Não à toa, um dos princípios
doutrinários do sistema é a regionalização, que busca descentralizar ações e
serviços para atender necessidades específicas de cada região.
Historicamente, a Amazônia enfrenta
problemas como infraestrutura precária e, principalmente, falta de
profissionais de saúde.
O novo edital do programa Mais Médicos,
relançado no começo deste ano, prevê a contratação de 1.869 médicos na região.
Contudo, ainda que todas as vagas sejam preenchidas, o índice de profissionais
por habitante chegará a um nível pouco superior à média do restante do país
registrada há 16 anos.
Segundo levantamento feito pela Folha,
a partir de dados do Ministério da Saúde referentes apenas a profissionais que
atuam no SUS, em 2007 havia 0,58 médico por 100 mil habitantes na Amazônia
Legal (estados do Norte, Mato Grosso e parte do Maranhão), ante 1,01 no
restante do país. Neste ano, a
região tem 1,02, enquanto a média das demais saltou para 1,76.
Estima-se que seriam necessários mais 21
mil médicos na Amazônia para eliminar a disparidade.
Especialistas apontam que é preciso não só
aumentar o número de profissionais mas aperfeiçoar a formação para o contexto
de atuação. No caso, a
atenção primária.
Em zonas remotas, geralmente apenas um
médico fica responsável pelo cuidado da população. Habilidades generalistas e
com foco em prevenção, típicas da área de saúde da família, podem diminuir a
necessidade de especialistas e de procedimentos mais custosos.
A telemedicina também é capaz de ajudar na
supervisão de médicos jovens —geralmente mais dispostos a passar um período de
sua formação em áreas distantes— e no acesso a atendimento para casos mais
complexos.
Não há solução imediata para a carência amazônica, mas é papel do poder público implementar medidas de longo prazo, diminuir distorções e, principalmente, não aumentá-las. Tratar a questão como política de Estado, não apenas de governo, seria o mais indicado.
Placebo fiscal
O Estado de S. Paulo
Com aumento de despesas e queda nas
receitas, governo admite que déficit primário neste ano será pior que o
projetado. Nova regra fiscal já parece insuficiente para estabilizar dívida
pública
O governo reconheceu que o déficit fiscal
deste ano será maior que o inicialmente projetado. A nova estimativa para o
saldo negativo entre receitas e despesas subiu a R$ 136,2 bilhões, R$ 28,6
bilhões maior que os R$ 107,6 bilhões previstos em março, o que obrigou o
governo a contingenciar um total de R$ 1,7 bilhão em gastos do orçamento. O
valor também está muito distante da meta de déficit de 0,5% do Produto Interno
Bruto (PIB), escolhida pelo Ministério da Fazenda na apresentação da proposta
do arcabouço fiscal.
A piora nos números não surpreende, pois é
mero reflexo das escolhas feitas do governo nos primeiros meses deste ano e do
Congresso no ano passado. O salário mínimo já havia sido elevado em janeiro,
mas o presidente Lula quis conceder um reajuste real a partir de 1.º de maio.
Com aposentadorias, pensões, abono salarial e seguro-desemprego vinculados ao
piso, era evidente que a projeção de gastos públicos também teria de ser
elevada.
O governo também teve de aumentar o repasse
a Estados e municípios para resolver o impasse do piso da enfermagem e as
transferências para apoio do setor cultural no pós-pandemia, ambos aprovados
pela Câmara e pelo Senado no ano passado sem que houvesse indicação das
receitas que bancariam as propostas. Além disso, problemas climáticos no Sul do
País prejudicaram os produtores rurais e elevaram os desembolsos com subvenções
do Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro).
O secretário do Tesouro Nacional, Rogério
Ceron, afirmou que o déficit pode cair quando as regras do novo arcabouço
fiscal entrarem em vigor. Mas há dúvidas sobre se a proposta terá tanto impacto
quanto o governo diz esperar. Na tentativa de construir uma base de apoio
sólida no Congresso, em vez de trabalhar para convencer os parlamentares a
apoiar suas propostas, o governo tem apelado à liberação de recursos para
emendas, o que amplia as despesas da União e, consequentemente, o déficit
fiscal.
Para completar, o parecer do relator,
Cláudio Cajado (PP-BA), diminuiu o espaço do governo para fazer
contingenciamentos e limita os bloqueios a 25% dos gastos discricionários,
justamente a rubrica em que as emendas se inserem. Cumprir a meta, portanto,
exigirá necessariamente aumentar a arrecadação. Ceron disse que o Relatório de
Avaliação de Receitas e Despesas do 2.º Bimestre ainda não incorporou decisões
judiciais favoráveis ao governo na área tributária, que podem agregar receitas
de R$ 50 bilhões ao orçamento deste ano, nem as alterações no voto de minerva
do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que precisam do aval de
um Congresso ainda reticente sobre o tema. Mas, passados os primeiros cinco
meses do ano, tudo indica que o otimismo que o governo havia manifestado a
respeito sobre a recuperação de até R$ 150 bilhões em receitas neste ano não
vai se concretizar.
Apesar de o governo ter elevado a projeção
do crescimento da economia de 1,61% para 1,91%, o que tende a aumentar a
arrecadação, o relatório, ao contrário, revelou uma piora na projeção de
receitas. Isso, por óbvio, fragiliza a credibilidade das metas fiscais e do
próprio arcabouço, mas também alimenta as dúvidas a respeito do discurso da
Fazenda sobre a reforma tributária. Com esses números, fica ainda mais difícil
afirmar que a proposta não resultará em um aumento da carga e que se limitará a
corrigir distorções legais e onerar setores que hoje pagam proporcionalmente
menos impostos do que deveriam.
Com a estrutura de receitas atual e a
rigidez das despesas públicas, a conta não fecha neste ano nem em 2024, o que
dirá no médio e longo prazos. Em algum momento o País terá de encarar a
realidade e rever o tamanho de suas despesas com reformas estruturais ou
aceitar mais um inevitável aumento da carga tributária – quanto antes isso for
definido, melhor. Com tantas incertezas, é hora de rever seus números e
projeções com pragmatismo e transparência. Do contrário, estabilizar a
trajetória da dívida pública, o verdadeiro objetivo do projeto do arcabouço
fiscal, continuará a ser uma meta intangível.
Não compete ao STF legislar
O Estado de S. Paulo
Há mais de três anos o Supremo mantém
suspensa a implementação do juiz de garantias, desmoralizando o Judiciário e
desrespeitando os outros Poderes. É hora de corrigir esse abuso
Em 2019, o Congresso aprovou e o presidente
da República sancionou a criação do juiz de garantias. Desde janeiro de 2020,
contudo, o Supremo Tribunal Federal (STF) mantém suspensa sua implementação.
Agora, a Corte finalmente pautou as ações que discutem a sua
constitucionalidade.
Trata-se de uma norma processual adotada há
décadas em vários países europeus, que foi debatida por mais de dez anos no
Congresso e ganhou tração após o vazamento das conversas entre o então juiz
Sérgio Moro e os procuradores da Operação Lava Jato que motivaram a Suprema Corte
a declarar a parcialidade do magistrado e anular processos conduzidos por ele.
Pela Lei 13.964/19, em vez de um só juiz,
os processos criminais passam a ter dois em etapas distintas. O juiz de
garantias fica responsável pela fase de produção de provas, cabendo-lhe exercer
o controle de constitucionalidade das investigações, autorizar busca e
apreensão, deferir pedidos de quebra de sigilo e determinar medidas restritivas
ao ir e vir do acusado. Finda a instrução e aceita a denúncia, o processo é
transferido a outro juiz, responsável por julgar o mérito.
Como alegaram entidades de advogados, pelo
sistema atual o juiz tem pouca motivação para revisar eventuais erros no
inquérito em que ele próprio atuou, aumentando o risco da punição de inocentes
e da impunidade de culpados. Por sua vez, magistrados e promotores se
manifestaram contra, alegando razões estruturais e fiscais: a necessidade de
realizar concursos, contratar servidores e formar juízes numa realidade em que
40% das comarcas contam só com um magistrado.
São questões pertinentes. Mas o único tema
sujeito a controle de constitucionalidade é a criação de despesas sem previsão
orçamentária. Ainda assim, esta, como as outras alegações, são passíveis de
pronta solução. Tanto que o então presidente da Corte, o ministro Dias Toffoli,
havia adiado a implementação da norma por seis meses, entendendo que o
Judiciário precisava de tempo hábil para se organizar, mas que não havia
necessidade imediata de criação de cargos. O adiamento era já medida
excepcional, mas não afrontava a decisão do Congresso. Na semana seguinte,
contudo, Luiz Fux aproveitou-se de um plantão e concedeu liminar em ação movida
por uma associação de promotores, suspendendo a eficácia da lei por prazo
indeterminado.
O Congresso criou o juiz de garantias
justamente em resposta a abusos do Judiciário, com o objetivo de assegurar a
isenção da magistratura, preservar o equilíbrio processual e garantir segurança
jurídica. Ironicamente, Fux agrediu todos esses princípios ao obliterar a
decisão dos representantes eleitos no Legislativo e no Executivo.
Sem disfarçar suas motivações
corporativistas, Fux alegou que a “medida foi feita para depreciar o juiz da
causa” e que – mesmo após anos de debates no Congresso – faltavam “melhores
subsídios” quanto ao “impacto financeiro” do juízo de garantias. A preocupação
fiscal, diga-se, é seletiva. Fux nunca hesitou em apelar a pedidos de vista ou
liminares para engavetar ações que contrariavam interesses da magistratura,
como quando protelou por quatro anos o fim do auxílio-moradia a todos os juízes
e promotores do País, onerando os cofres públicos em mais de R$ 1 bilhão.
A liminar desmoraliza o próprio Poder
Judiciário, que deveria funcionar como um colegiado. Mas, sobretudo, afronta os
demais Poderes, cujas competências foram sequestradas pelo voluntarismo e as
idiossincrasias de um único juiz.
Intransigente ao escrutinar o cisco no olho
dos outros, a Corte se mostra muito confortável com a trave no seu. O STF anda
alarmado com “ataques às instituições” e “ameaças ao Estado Democrático de
Direito”, a ponto de lançar mão de expedientes no mínimo duvidosos contra os
supostos agressores – como inquéritos secretos e intermináveis ou remoções de
conteúdos nas redes digitais determinadas de ofício e mal fundamentadas –, mas
por mais de três anos tem tolerado uma flagrante agressão aos demais Poderes
saída de seus próprios bancos. Já passou da hora de pôr um fim a ela.
Contra racismo, não bastam palavras
O Estado de S. Paulo
O caso de Vini Jr. expõe a covardia da
cúpula do futebol, que se limita a notas de repúdio e slogans vazios
Chega a ser aflitiva a sensação de que Vini
Jr., um atleta de apenas 21 anos, parece travar de forma solitária, quase
quixotesca, sua dura batalha contra o racismo. Vítima de ataques sistemáticos
de torcedores adversários, o jogador brasileiro do Real Madrid parece ter se
tornado o alvo preferencial dos racistas espanhóis, sem que nada tenha sido
feito para efetivamente contê-los. O último episódio aconteceu no fim de
semana, num jogo contra o Valencia, e parece ter sido a gota d’água para o
jovem atleta, que passou a considerar a hipótese de deixar a Espanha. Ele não
disse, mas está claro que está cansado de apanhar sozinho.
Pudera. O Real Madrid, por exemplo, demorou
12 horas para divulgar uma nota de apoio ao jogador. E o presidente da liga
espanhola, Javier Tebas, em vez de condenar os ataques, preferiu minimizá-los e
ainda cobrou respeito de Vini Jr. Tudo isso mostra o quão distantes estão os
dirigentes de futebol de dimensionar os efeitos nefastos do racismo. A dor e a humilhação
da vítima não os comovem.
Essa é uma luta que tem de ser
protagonizada pela cúpula do futebol – no Brasil, na Espanha e no mundo. É bem
possível que, no fundo, alguns considerem que um contrato milionário possa
remir o desrespeito. Vinícius mostra de forma categórica que não. Quando diz
estar pronto para atingir seu propósito, que é o de fazer com que “futuras
gerações não passem por situações parecidas”, ele traça de forma exata a
proporção do problema. Não bastam camisas com mensagens politicamente corretas
ou notas padronizadas de repúdio. É preciso ação efetiva para coibir o abuso.
No futebol, a imposição desse limite virá à
medida que a torcida sofra o prejuízo. E, por tabela, os clubes. A punição dos
responsáveis identificados é muito importante, mas não suficiente. Nada dói
mais no torcedor apaixonado do que a perda de pontos de seu time no meio de um
campeonato. Infelizmente, o “processo educativo” da torcida tem de passar por
penalidades como essa. Não dá para esperar que, de uma hora para outra, só com
recomendações, as torcidas deixem de aceitar esses delinquentes entre seus
integrantes.
Elas são capazes de produzir espetáculos
emocionantes, mas por vezes aceitam sem qualquer reação o comportamento
deplorável de racistas que agem movidos pelo fenômeno de um “anonimato de
massa” – que a alta tecnologia dos estádios já provou ser imaginário.
Tome-se o exemplo do jogo Corinthians x
Boca Juniors, em São Paulo, no ano passado, pela Libertadores, quando um
torcedor argentino imitou um macaco inúmeras vezes para ofender jogadores
brasileiros. Identificado e detido, ele foi solto depois do pagamento de R$ 3
mil de fiança e escoltado por representantes consulares na volta a seu país.
O ponto central é: as medidas adotadas
nesse caso foram suficientes para evitar novos casos de racismo? Certamente
não. A prisão dos sete suspeitos no caso de Vini Jr. na Espanha é igualmente
importante, mas não pode ser a única resposta.
Cabe aos cartolas da Fifa, de todas as
ligas de futebol e de cada time a maior parte da responsabilidade para fazer
valer na prática o que só vemos como marketing esportivo: racismo não.
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