Aumento do salário mínimo vai contra disciplina fiscal
O Globo
Nova política de reajuste custará R$ 82,4
bilhões até 2026. Governo precisa dizer de onde sairá o dinheiro
Sob pretexto de afagar quem trabalha, os
parlamentares vislumbraram apenas os próprios ganhos político-eleitorais ao
aprovar mudanças no reajuste do salário mínimo. Pela nova regra, o valor
passará a ser corrigido pela inflação do ano anterior somada ao crescimento do
PIB de dois anos antes. Os números só serão confirmados no início de 2024, mas o
governo estima para o ano que vem um salário mínimo de R$ 1.421,
aumento de 7,65% em relação ao atual. É esse valor que deverá constar da
proposta orçamentária enviada ao Congresso.
É verdade que o reajuste do mínimo acima da inflação foi promessa de campanha de Luiz Inácio Lula da Silva e tema de embates entre ele e o então presidente Jair Bolsonaro (PL). Bolsonaro reajustou o mínimo pela inflação durante seu governo e também prometera aumento real caso reeleito. Mas a campanha acabou faz tempo. Espera-se de Lula senso de responsabilidade para equilibrar suas promessas com a realidade fiscal do país. O reajuste do salário mínimo tem impacto incontornável nas contas públicas. Estima-se que cada real de aumento gere para o governo uma despesa de R$ 366 milhões ao longo de um ano. É esse o custo da demagogia populista.
De acordo com dados do próprio governo, a
nova política de reajuste do mínimo custará R$ 82,4 bilhões até o fim do
mandato de Lula, em 2026. Só no próximo ano, o impacto estimado é de R$ 18,1
bilhões. Isso acontece porque o mínimo é usado como referência para o pagamento
de aposentadorias e pensões do INSS. A grande maioria dos beneficiários (65%,
ou quase 14 milhões de brasileiros) recebe um salário mínimo. Ele é parâmetro
também para programas sociais de baixa eficácia comprovada — como Benefício de
Prestação Continuada (BPC) e abono salarial — e seguro-desemprego.
Não apenas contas do governo federal serão
afetadas pela medida populista aprovada no Congresso. A Confederação Nacional
de Municípios (CNM) estima que o aumento do mínimo em 2024 resultará num
acréscimo de quase R$ 5 bilhões nas despesas das prefeituras com pessoal e
encargos. O impacto será mais significativo nas cidades pequenas e médias,
especialmente na Região Nordeste. Some-se a isso a perda de arrecadação de
centenas de municípios depois da revisão da população pelo último Censo, e está
formada mais uma confusão que o Planalto terá de resolver, pois é para lá que
na certa os prefeitos acorrerão em romaria.
No rol das decisões demagógicas que põem em
risco a austeridade fiscal inclui-se também a proposta para ampliar o limite
anual de faturamento do Microempreendedor Individual (MEI) para R$ 144.900. A
ideia gestada no governo é que quem obtiver faturamento de até R$ 81 mil (teto
atual) continue pagando apenas 5% do salário mínimo à Previdência. Sabe-se que
o MEI, além de não cumprir os objetivos para os quais foi criado, é fonte
permanente de déficit para a Previdência.
É um contrassenso que, depois da aprovação
do novo arcabouço fiscal — embora imperfeito, ao menos ele impõe uma regra para
as despesas —, o governo contrate aumento em seu custo fixo. Se as metas
fiscais anunciadas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já se mostravam
difíceis de cumprir sem alta expressiva na arrecadação, imagine-se num cenário
de crescimento inexorável de gastos. O governo precisa explicar como cobrirá
mais esse rombo que acaba de criar.
Brasil precisa prestar atenção ao risco de
deflação na China
O Globo
Sinais de queda nos preços trazem ameaça de
recessão, que teria impacto imediato nas exportações brasileiras
O Palácio do Planalto precisa acompanhar de
perto a situação econômica da China, principalmente os
sinais de deflação que começam a aparecer. Por ser o maior parceiro comercial
do Brasil, se o país entrar em recessão, as exportações de minério de ferro,
grãos e alimentos sofrerão impacto. O agronegócio, atividade mais dinâmica da economia
brasileira, será atingido, com menor circulação de dinheiro no interior e
reflexos inevitáveis no PIB.
A deflação é tão ou mais perigosa que a
inflação. Os preços se retraem, os consumidores adiam suas compras para mais à
frente pagar menos, e o país fica assombrado pelo fantasma da recessão, que, no
limite, pode se tornar depressão. Governos devem agir antes de a situação
chegar a esse ponto.
A saída da economia chinesa das restrições
impostas pela pandemia era esperada como um impulso que ajudaria o mundo a
também retomar o crescimento. Em vez disso, as taxas estão aquém das previsões
e, para tornar a situação mais crítica, os preços estão em queda em diversos
setores.
O crescimento da economia chinesa no
segundo trimestre — de 6,3% em relação ao mesmo período do ano anterior — não
animou os analistas. Ficou abaixo do esperado, mesmo com o benefício de um
efeito estatístico: a base de comparação é baixa, pois 2022 ainda sofreu o
impacto da recessão da pandemia, com lockdown em cidades como Xangai. Para
confirmar o pessimismo, basta mudar a referência: a economia chinesa cresceu
apenas 0,8% no segundo trimestre, na comparação com o primeiro.
Entre as evidências de que a China pode
estar entrando em deflação está a constatação de que os preços de bens e
serviços caíram 1,4% no segundo trimestre em relação ao ano anterior. Foi a
maior queda desde 2009, na crise financeira mundial.
O cenário é ainda mais inóspito, pois o
mercado imobiliário chinês, que concentra boa parte dos ativos financeiros do
país, há tempos enfrenta dificuldades. Em junho, a venda de apartamentos caiu
27% na comparação com 2022. A segunda maior incorporadora, a Evergrande, luta
contra a insolvência. Não honrou em 2021 o resgate de títulos que lançou no
mercado e continua com pesadas dívidas. A maior incorporadora, a Country
Holdings, vai pelo mesmo caminho. Nos últimos dias não teve dinheiro em caixa
para pagar títulos de dívida vencidos.
Ao contrário do ativismo demonstrado
noutras crises, o governo chinês tem mantido uma postura de passividade. Cortou
um pouco a taxa de juros, e lideranças do Partido Comunista, segundo a revista
britânica The Economist, distribuíram apenas 31 orientações para autoridades
incentivarem o setor privado, sem nenhum plano fiscal de estímulo ao
crescimento. Em tais circunstâncias, o governo brasileiro deveria evitar, em
seus planos econômicos, arroubos que apostem nos bons ventos vindos de fora.
Efeitos do marco
Folha de S. Paulo
Regras para o saneamento atraem recursos
para superar vergonhoso atraso no setor
Acumulam-se evidências de que o marco legal
do saneamento, promulgado em 2020, já resulta em aumento de investimentos no
setor, tornando mais crível a meta de alcançar a universalização da coleta e
tratamento de esgoto até 2033, determinada pela nova legislação.
A tentativa
estatista do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de retroceder em pontos
importantes das novas regras trouxe incertezas, mas por
resistência do Congresso não logrou impedir o aumento da atuação do campo
privado.
Desde a entrada em vigor do marco foram
realizados 28 leilões parra a prestação de serviços em 17 estados, de acordo
com a associação do setor. Em conjunto, as concessionárias vencedoras terão de
investir R$ 98 bilhões ao longo dos prazos das concessões.
Trata-se de um avanço importante para
atingir a meta de destinar ao menos R$ 45 bilhões anuais ao saneamento, pouco
acima do dobro do que era tipicamente aportado no país até 2020.
Boa notícia também é a disposição de bancos
e do mercado de capitais —em última instância, famílias brasileiras— em
realizar investimentos de longo prazo na área.
Duas das maiores concessionárias e
operadoras privadas, Aegea e Iguá, captaram nas últimas semanas o volume
recorde de R$ 9,3 bilhões por meio de debêntures, com prazos entre
18 e 20 anos e ampla distribuição para pessoas físicas em plataformas de
investimentos.
Outras fontes
de recursos são instituições oficiais, como o BNDES, o banco federal de fomento,
e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, experientes em boa estruturação de
projetos.
Com mais dinheiro, tudo indica que haverá
forte aceleração da expansão da rede e do tratamento de água e esgoto nos
próximos anos, desde que seja preservada a principal diretriz regulatória
—ampliar opções legais e financeiras para a entrega do serviço essencial.
Ao contrário do que prega a crítica
ideológica, as novas regras não privilegiam o setor privado. Governos
municipais e blocos regionais podem avaliar modalidades diferentes e escolher
as mais adequadas às condições locais.
O cardápio inclui concessões, parcerias
público-privadas e a eventual continuidade da prestação do serviço por
estatais, que precisarão provar capacidade financeira, outra exigência legal.
A centralização da definição dos padrões
técnicos na Agência Nacional de Águas (ANA) também permitirá aumento de escala
e eficiência.
Poucas prioridades podem ser maiores do que
estender a coleta de esgoto para os 92 milhões de brasileiros (mais de 40% da
população) desprovidos de conexão com a rede, segundo dados do sistema federal
—que mostra, além disso, que somente 51,2% da água passa por tratamento
sanitário. São números vergonhosos, que não autorizam picuinhas políticas.
Caos argentino
Folha de S. Paulo
Onda de saques a supermercados soma-se a
desastre econômico e incerteza política
O bem-estar material tende a ser fator
decisivo para as escolhas do eleitorado, e o caos econômico não raro descamba
para a desordem social e política. Em meio ao descontrole inflacionário e ao
encolhimento da renda, a Argentina experimenta hoje esse risco.
Nas primárias para a Casa Rosada realizadas
em 13 de agosto, o voto de protesto proporcionou a ascensão de um candidato
antissistema, Javier Milei, de um radicalismo liberal irrealista. Poucos dias
depois, o país vizinho se viu às voltas com uma onda de
saques populares a supermercados.
Os ataques começaram em cidades da
província de Mendoza e se espalharam pelas de Córdoba, Neuquén e Río Negro,
além da região metropolitana da capital Buenos Aires —onde, segundo relatos,
cerca de 200 pessoas foram detidas na semana que passou.
A menos de dois meses das eleições, o
desalento e o desespero são tratados à base de politização rasteira. A
porta-voz da Presidência, Gabriela Cerruti, disse que os candidatos da oposição
incentivaram os ataques pelas redes sociais.
A presidenciável conservadora Patricia
Bullrich, que advoga o endurecimento da política de segurança pública, cobrou
"lei e ordem para sair desse inferno"; o autoproclamado
anarcocapitalista Milei, não sem fundamento, relacionou os saques à crise
econômica.
A conjuntura é de fato calamitosa, com
aumento da dívida externa, derretimento da moeda nacional e inflação acima dos
três dígitos.
Segundo dados de março do Indec, o IBGE
argentino, o percentual de pobres (com renda individual mensal inferior a
57.302 pesos, então R$ 774) quase dobrou em dez anos, indo de 25,9%
da população em 2012 para 43,1% em 2022.
Dificilmente se poderá demonstrar o papel
da radicalização política no incentivo aos saques. O fato é que o presidente
esquerdista Alberto Fernández colhe, ao final de seu mandato, resultados
desastrosos de uma política que evitou ajustes nas finanças federais.
A disputa presidencial se afigura imprevisível, dado o equilíbrio entre os principais candidatos, entre eles o governista Sergio Massa, ministro da Economia. A incerteza se estende à composição futura do Congresso, o que não permite prever como a Argentina tentará escapar do caos em que se meteu.
O Estado de S. Paulo
O Brasil não ganha nada e perde muito
aderindo acriticamente ao projeto de expansão da China, para quem o bloco é um
veículo para promover seu confronto com o Ocidente
Na superfície, a expansão do Brics mostra
força. Paradoxalmente, ela aprofunda a crise de identidade do grupo. Sua coesão
– grandes países emergentes com perspectiva de forte crescimento – sempre foi
potencial, enquanto suas discrepâncias econômicas, políticas e militares são
reais. Ao longo dos anos, as discrepâncias aumentaram. Com o acréscimo de
Egito, Irã, Argentina, Etiópia, Arábia Saudita e Emirados Árabes, aumentaram
mais. Já a coesão está sendo moldada pelas ambições da China.
Geopoliticamente, essa coesão se
caracterizava por uma desconfiança da ordem global arquitetada pelos países
desenvolvidos. O bloco nunca teve, e nem poderia ter, dadas as discrepâncias,
um modelo alternativo. Mas buscava ao menos equilibrar a balança em prol de
melhores condições ao seu desenvolvimento. Esse intento dependia das promessas
econômicas. Mas elas não se realizaram. Desde que o grupo foi idealizado em
2001 como uma categoria de investimento do Goldman Sachs, a economia chinesa se
modernizou e cresceu fortemente, mas agora enfrenta problemas. Após a
formalização do bloco, em 2009, a economia da Índia foi a que mais cresceu, mas
está longe do tamanho da China. Os outros permaneceram estagnados.
A ampliação aumenta as disparidades. A
economia da Arábia Saudita é rica e a única das novas seis em expansão. Os
Emirados Árabes são ricos também, mas pequenos. A Etiópia é pobre, o Irã é
fechado, a Argentina está quebrada. Se economicamente o Brics ficou mais
heterogêneo, politicamente ficou mais autoritário. Com exceção da convoluta
democracia argentina, os outros são autocracias moderadas ou fortes.
Quais teriam sido os critérios para essas
escolhas? Segundo Celso Amorim, “primeiro você escolhe os países, aí depois
define os critérios”. Mais preocupante que o cinismo exposto pelo mentor da
política externa do presidente Lula são os verdadeiros critérios que ele
disfarça. Ao fim, prevaleceram as ambições da China de institucionalizar sua
liderança sobre o mundo em desenvolvimento. Para Argentina, Egito e Etiópia, o
Brics é um meio de acessar investimentos e apoio chinês. Arábia Saudita e
Emirados Árabes entram nos planos de Pequim de expandir sua influência no
Oriente Médio. A escolha do Irã é mais do que tudo um instrumento de
hostilização ao Ocidente.
O arranjo intensifica uma tensão no bloco
entre, de um lado, China, Rússia e Irã, que buscam arregimentar aliados para
confrontar o Ocidente, e, de outro, potências médias que buscam se manter não
alinhadas, como Índia, Brasil e Arábia Saudita. A cúpula em Johannesburgo foi
um triunfo para os primeiros, e deixou muitos desafios aos últimos.
Para superá-los, o Brasil precisa estreitar
laços com outros países não alinhados, em especial a Índia, na qual também pode
se inspirar do ponto de vista econômico e, em parte, geopolítico. A Índia tem
sido bem-sucedida em equilibrar seus interesses entre a esfera sino-russa e a
ocidental. Esse equilíbrio se sustenta sobre seu crescimento econômico, focado
em investimentos numa economia baseada em conhecimento e tecnologia.
O Brasil foi e é o país com as melhores
credenciais democráticas do Brics, e pode fortalecer sua independência e
posição de equilíbrio se focar, por exemplo, em revigorar laços com os EUA,
concluir o acordo Mercosul-União Europeia ou ingressar na OCDE. Mas esses
propósitos têm sofrido com ruídos vindos do revanchismo ideológico do
presidente Lula. “O Brasil voltou”, repete sem cessar. Mas ao palco ocidental
voltou com relutância, e de Johannesburgo voltou menos relevante.
O Brics continua a oferecer oportunidades
ao País. Mas a incoerência e a inoperância do grupo sempre evocaram o célebre
lamento de Macbeth sobre a vida: “uma sombra errante”; “um pobre ator que se
pavoneia e se aflige no palco”; um conto “cheio de som e fúria, significando
nada”. Agora, há o risco de que esse conto, longe de ser “contado por um
idiota”, seja moldado às ambições cada vez mais agressivas de uma superpotência
autocrática. Isso significa muitas coisas. E nenhuma delas é boa para o Brasil.
Saneamento e desigualdade
O Estado de S. Paulo
Brasileiros pardos, pobres e com baixa
escolaridade são vítimas da negligência do Estado de investir em redes de
esgoto; situação trava desenvolvimento humano e sustentável do País
O acesso à rede de esgoto continua
vergonhosamente a ser o grande mal de um Brasil em plena terceira década do
século 21. Não há como conter a indignação diante da evidência já apresentada
pelo IBGE de que 32,2% da população não dispunha desse serviço fundamental em
2022. Recente estudo, porém, confirma o vínculo dessa mazela à persistente
desigualdade social do País. Os brasileiros sujeitos a tal condição são, em sua
maioria, pardos, têm renda mensal de 25% do salário mínimo e não concluíram o
ensino fundamental.
O estudo Quem não tem saneamento básico, da
Associação das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto
(Abcon), esmiúça dados sobre o saneamento básico reunidos pela Pnad Contínua do
ano passado. Consequentemente, expõe o alto grau de negligência de autoridades
públicas eleitas com a promessa tácita, mesmo não proferida em comícios, de
prover e garantir a dignidade e a cidadania por meio do acesso aos serviços
públicos essenciais. Os dados mostram que, dentre os brasileiros sem acesso à
rede de esgoto, 19,5% são crianças menores de 12 anos. Parcelas importantes do
presente e do futuro do País estão condenadas, por omissão do Estado, a padecer
de todos os males do despejo de dejetos em fossas, a principal das
alternativas. Perpetua-se a pobreza.
O acesso à rede de esgoto, segundo o
estudo, escala em paralelo à renda do cidadão, em brutal reprodução da
desigualdade econômica. Dentre os brasileiros com renda de até ¼ do salário
mínimo, 55,9% estão apartados das redes de coleta. O porcentual reduz para
23,1% entre os que dispõem de um a dois salários mínimos e continua caindo nas
faixas seguintes. Somente 10% dos que vivem com mais de cinco salários mínimos
enfrentam tal condição.
A desigualdade lastreada na raça igualmente
está refletida nos dados. Se 24,1% dos brancos não têm acesso à rede de esgoto,
a proporção escala nos demais grupos. Entre os pardos, alcança 40,4%; e entre
os pretos, 30,6%. Os mais expostos são 44,1% dos indígenas. O nível de
escolaridade pesa também, com 39% dos brasileiros que não concluíram o ensino
fundamental vivendo nessas condições. Os formados em ensino superior não passam
de 7,7%. O Nordeste lidera as regiões do País com 43% de pessoas sem esse
serviço.
O quadro de atraso e injustiça social
encontra exemplo em Vila da Barca, favela na zona central de Belém (PA) vizinha
a um condomínio de alto padrão, descrita em recente reportagem do Estadão. As
palafitas sobrevivem há um século, graças à negligência das autoridades
públicas, e impõem a seus moradores a convivência com o lixo, o precário acesso
à água e a distância da rede de coleta de esgoto. O descaso tenderia a se
perpetuar, não fosse a escolha de Belém como sede da Conferência das Nações
Unidas sobre Mudança Climática de 2025, a COP-30.
Não é preciso grande esforço para perceber
os malefícios dessas condições físicas para a saúde e o desenvolvimento humano
das pessoas – e seus custos inevitáveis para o Estado. Tampouco são necessários
adjetivos para entender os impactos do lixo e do esgoto despejados das
palafitas no Rio Guajará ao meio ambiente da capital paraense. Até o momento,
esse é o cartão-postal da COP-30 no Brasil.
O governo Lula da Silva e seus dois
sucessores, sejam quem forem, serão cobrados pelas metas criadas pelo Marco do
Saneamento, assim como governadores e prefeitos. A Lei 14.020/20, que definiu
as diretrizes para o setor, impôs o compromisso de extensão da rede de coleta e
tratamento de esgoto a 90% dos brasileiros até 2030 e de universalização três
anos depois. No Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), entretanto,
falta clareza sobre a disponibilidade dos recursos prometidos para cumprir
esses objetivos. Não há tempo de sobra quando se trata de brutal injustiça
social. É preciso agir com urgência e eficácia. Do contrário, o desenvolvimento
sustentável e humano do País continuará quimérico por mais algumas décadas –
isso sem falar da eternização de uma inaceitável indecência.
Juiz de garantias é constitucional
O Estado de S. Paulo
Apesar da demora, Corte acerta ao
reconhecer a competência do Congresso para legislar sobre o juiz de garantias
A conclusão do julgamento sobre a constitucionalidade
do juiz de garantias pelo Supremo Tribunal Federal (STF) evidencia como a
demora no julgamento de uma liminar pode ser disfuncional e antidemocrática,
impedindo que a vontade do Congresso seja respeitada e devidamente aplicada.
Trata-se de um caso paradigmático sobre o papel do Poder Judiciário em relação
às leis aprovadas pelo Legislativo.
Em dezembro de 2019, o Congresso aprovou
uma mudança na legislação processual penal, fixando que o magistrado
responsável pela investigação, o chamado juiz de garantias, não deve ser o
mesmo que julga a causa. A alteração reafirmava o princípio constitucional da
imparcialidade do juiz e estava em linha com a legislação de outros países. Ou
seja, não havia nenhuma sombra de inconstitucionalidade sobre a figura do juiz
de garantias. O que havia era tão somente a necessidade de um prazo razoável
para a implementação do novo modelo pelos tribunais.
Em janeiro de 2020, o então presidente do
STF, ministro Dias Toffoli, mantendo a decisão do Congresso sobre o juiz de
garantias, estendeu para 180 dias o prazo de sua implementação. No entanto, uma
semana depois, o ministro Luiz Fux proferiu decisão liminar suspendendo por
tempo indeterminado a alteração feita pelo Congresso. Segundo Fux, a regra
feria a autonomia organizacional do Judiciário e impunha custos excessivos aos
tribunais.
Agora, mais de três anos e meio depois, o
plenário do STF julgou o caso. Com exceção de Luiz Fux, todos os ministros
votaram pela constitucionalidade da figura do juiz de garantias. Segundo o
colegiado, trata-se de uma opção legítima do Congresso visando a assegurar a
imparcialidade no sistema de persecução penal. A Corte também entendeu que não
houve violação do poder de auto-organização dos tribunais, uma vez que a União
tem competência para propor leis sobre o processo penal.
É parte fundamental do Estado Democrático
de Direito o controle de constitucionalidade das leis exercido pelo Judiciário.
Com isso, assegura-se a prevalência da Constituição sobre todo o ordenamento
jurídico. No entanto, fere radicalmente o Estado Democrático de Direito o uso
desse poder de controle da constitucionalidade pelo Judiciário para fazer
escolhas políticas. Juiz não é parlamentar.
Em seu voto, o ministro Luiz Fux disse que a criação do juiz de garantias feria o princípio da proporcionalidade. Segundo ele, não existe motivo para presumir a parcialidade do magistrado que atuou durante a investigação para julgar a ação penal. O argumento do ministro evidencia como é fácil recorrer a uma linguagem aparentemente jurídica – no caso, o princípio da proporcionalidade – para revisar politicamente a vontade do legislador. Com a liminar de janeiro de 2020 e mais recentemente com seu voto, Luiz Fux apenas discordou da escolha feita pelo Congresso, como se o STF fosse uma terceira casa legislativa. Felizmente, os outros dez ministros tiveram uma compreensão do papel da Corte mais alinhada com o que dispõe a Constituição.
Falta consenso à reforma administrativa
Correio Braziliense
O presidente da Câmara, deputado Arthur
Lira, entende que o momento é propício à retomada do debate e aprovação da
reforma administrativa, construída no governo passado, o que fecharia o círculo
das mudanças estruturantes
Há muito, os Poderes da República, por
unanimidade, estão convencidos de que o Estado brasileiro precisa de mudanças
estruturais, a fim de que seja mais eficaz e eficiente no atendimento às
demandas da sociedade. Para isso, seriam necessárias as reformas da
Previdência, tribuntária e fiscal. A Reforma da Previdência foi a primeira a
ser aprovada em 2019. As alterações no sistema motivaram controvérsias. As
Forças Armadas foram excluídas das mudanças e tiveram seus privilégios
preservados. Para muitos, foi uma injustiça em relação aos servidores civis e
aos trabalhadores da iniciativa privada. Nesta semana, o Congresso concluiu a
aprovação do arcabouço fiscal, que vai à sanção do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva. A reforma tributária, aprovada na Câmara, está em avaliação no Senado
e deverá voltar à pauta de votação em outubro, na previsão do relator senador
Eduardo Braga.
Diante deste novo cenário, o presidente da
Câmara, deputado Arthur Lira, entende que o momento é propício à retomada do
debate e aprovação da reforma administrativa, construída no governo passado, o
que fecharia o círculo das mudanças estruturantes. Para ele, a revisão do
sistema administrativo melhoraria a eficiência do Estado e seria um sinal ao
mundo de que o Brasil está ingressando na modernidade. Ele assegura que os
direitos conquistados pelos servidores públicos até a data da promulgação da
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 32 estariam preservados. Os que
ingressarem depois estariam subordinados às novas regras aprovadas com a reforma.
O governo federal reconhece a necessidade
de uma reforma administrativa. Mas discorda frontalmente da PEC 32. O
ex-ministro e hoje presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, já declarou que o
presidente Lula admite que é preciso fazer essa revisão. Mas isso não significa
que a proposta em debate contemple a visão do presidente nem do Partido dos
Trabalhadores. Para a legenda, é preciso construir um Estado mais eficiente,
transparente e que promova a carreira dos servidores. Ou seja, a reforma não
poderá conter obstáculos que impeçam a ascensão profissional e hierárquica dos
profissionais que ingressarem no setor público. Outro ponto divergente é a uma
abertura mais larga à terceirização de trabalhadores, como ocorre hoje.
Instituições representativas dos servidores
públicos veem a PEC 32 como uma proposta de sucateamento de setores do Estado.
Avaliam que ela afeta inclusive os aposentados do Executivo. Rechaçam a ideia
de que os servidores recebem elevados salários e têm uma vida nabesca. Estudo
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2018, mostrou que a
média salarial dos servidores municipais era de R$ 2.150, dos estaduais, R$
4.150, e dos federais R$ 6.500. Valores superiores a esses são destinados aos
que ocupam cargos de confiança e funções gratificadas, sem a estabilidade
garantida aos servidores que não são regidos pela CLT.
Se a reforma administrativa se revela tão necessária, principalmente ante os gastos com o funcionalismo, uma vez que é fundamental rever as despesas e seria descabido elevar impostos, seria um bom momento também de estabelecer equidade salarial entre os servidores dos Três Poderes — Executivo, Legislativo e Judiciário. Todos os profissionais são remunerados pelo caixa da União, não importa ao Poder que servem. Seria uma alternativa para findar com os privilégios com custos elevados para contribuintes, sejam eles da iniciativa, sejam do setor público. Nesse pacote estariam as Forças Armadas, também formada, na essência, por servidores públicos.
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