O Globo
Rui Barbosa foi essencial para o
entendimento da Suprema Corte conforme a conhecemos hoje: guardiã da
Constituição
Em tempos de instituições consolidadas e
fortalecidas, faz-se necessário olhar para o processo histórico que nos trouxe
até aqui. E olhar para o passado é olhar para nossa história, nossa cultura,
nossa memória institucional. No ano em que se registra um século da morte de
Rui Barbosa, a partir do legado deixado por este brasileiro invulgar, de
múltiplos talentos, notável jurista, jornalista e político, temos a
oportunidade de refletir sobre a construção de nosso país no preparar do futuro
que se desenha no hoje.
Digo isso na data em que, pela primeira vez em cem anos, a presidência do Supremo Tribunal Federal retorna à Biblioteca Nacional. A última vez que isso ocorreu foi precisamente na despedida de Rui Barbosa, figura essencial para o entendimento da Suprema Corte conforme a conhecemos hoje: guardiã da Constituição, firme no entendimento de que o governo das leis sempre prevalece sobre o governo dos homens.
Um dos principais artífices da Constituição
de 1891 e de seus princípios republicanos e federalistas, com separação entre
os Poderes e regime democrático, Rui Barbosa foi um dos maiores colecionadores
de livros de seu tempo. Sua biblioteca reunia 37 mil volumes, dentre os quais
obras jurídicas dos mais diversos países, inspiração para todos os que
compreendem que não há progresso sem conhecimento.
Na ocasião dos ataques antidemocráticos de
8 de janeiro, o busto de Rui Barbosa estava entre os objetos vandalizados em
nossa Suprema Corte, e a cicatriz derivada desse episódio ali permanecerá.
Representa a resiliência em favor da liberdade e da democracia constitucional.
Reforça a primazia do conhecimento, da diplomacia e do diálogo contra atos de
violência e de opressão.
Recentemente, visitei em Salvador da Bahia
a cripta onde estão os restos mortais de Rui Barbosa e ontem participei de nova
homenagem durante visita à Biblioteca Nacional, ocasião em que ficou disponível
em meio digital, no ano em que celebramos os 35 anos da Constituição Cidadã de 1988,
um documento oficial de valor inestimável, a “prova corrigida caligraficamente
da Constituição dos Estados Unidos do Brasil” de 1891. Na mesma ocasião, fiz a
entrega da primeira edição de nossa Constituição traduzida para uma língua
indígena, o nheengatu.
Depositar a Carta Máxima em língua falada
por nossos povos originários na Biblioteca Nacional é mais que ato ético e
estético. É marco simbólico. Trata-se da valorização do indígena como parte
formativa indissociável de nossa cultura e de nossa visão de país. Da
compreensão de indígenas enquanto sujeitos de direitos e deveres em pleno
exercício de sua cidadania, viabilizando a construção de novas memórias para um
futuro que pertence a todas e a todos.
Nossa Biblioteca Nacional, importante
lembrar, é um dos mais antigos tesouros nacionais, com o maior acervo da
América Latina. A partir da soma dos tempos, reuniu a memória social que cada
geração buscou guardar, tornando-se um dos mais belos ecossistemas do país,
patrimônio imaterial de nossa identidade que se renova com seus
leitores-cidadãos.
Aberta ao público em 1814, testemunhou um
Brasil que paulatinamente clamava por mais liberdade e cidadania para tornar-se
um país-nação, ocupando-se em construir sua memória enquanto passaporte para o
futuro. Sabemos, não há distância entre leitura e democracia. O anseio por mais
participação social, igualdade e justiça, o apreço pelo público, o
compartilhamento de valores para e pelo bem comum estão intimamente
relacionados ao reconhecimento de nosso passado e à construção coletiva do
saber.
Com o retorno à Biblioteca Nacional após um
século, enquanto presidente da Suprema Corte, reforço os laços entre essas duas
instituições tão determinantes para a República. A Casa revisora das questões
constitucionais e a Casa que conserva a memória da nação brasileira, neste 25
de agosto de 2023, novamente se encontraram, num gesto de aproximação que
promove a cultura da paz entre todos aqueles que se empenham no fortalecimento
da democracia constitucional e da justiça em nosso país.
*Rosa Weber é presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça
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