Valor Econômico
Estamos apenas no meio do caminho da
constituição da propriedade privada da terra no Brasil e da sua harmonização
com o que é próprio da dinâmica do capital
Porta-vozes de setores do agronegócio fizeram
queixas e reclamações contra questões contidas na primeira fase da prova
nacional do Enem. Aquela parte da prova que é feita para averiguar quem dos
participantes tem formação e capacidade de interpretação de textos que os
habilitem a ingressar no curso superior. É fato estranho que porta-vozes de
setores do agronegócio tenham manifestado desconforto em relação a questões da
prova do Enem que supostamente não correspondem à ideia que os vinculados a
esse ramo da economia têm de si mesmos e do que é próprio dele.
Não sendo o agronegócio necessariamente
aquilo que os agronegocistas supõem que seja, é mais do que compreensível que
seja ele incluído por educadores como tema de um exame desse tipo. Como
comentou o jornalista Octavio Guedes, na GloboNews, as perguntas tiveram por
objetivo avaliar a competência de interpretação de texto de referência. A
problematização foi feita pelo autor desse texto e não pelos educadores
responsáveis pelo exame. Nem pelo governo.
A queixa do agronegócio pressupõe equivocadamente o direito de censura contra o conhecimento crítico. Educação é um ramo especializado na produção e distribuição do conhecimento, mesmo sobre vaca e soja. A queixa é um tiro pela culatra.
Nela, o agronegócio pede uma revisão pública
de sua história. No capitalismo brasileiro, a economia da propriedade da terra
é historicamente marcada por tensões e crises de gênese e de transição em
confronto com o que é próprio do capitalismo. Isto é, da economia fundada na
reprodução ampliada do capital e não na persistência imobilista da forma
rentista da propriedade fundiária que temos.
A demanda do agronegócio conduz ao que um
sociólogo define como efeito bumerangue da afirmação desinformada. A
manifestação do agronegócio pede esclarecimento e o esclarecimento passará
necessariamente pelas anomalias do processo histórico de formação aqui da
grande propriedade rural em conexão com a formação do capitalismo e suas
peculiaridades entre nós. Aqui o capitalismo não teve o percurso que foi
característico dos verdadeiros países capitalistas, como a Inglaterra, a
França, a Alemanha. E mesmo os Estados Unidos.
Aqui o capitalismo nasceu da sua negação: o
trabalho escravo. E foi determinação mediadora da crise da escravidão que entre
nós nasceu a propriedade privada da terra em 1850, na mesma semana em que o
mesmo Parlamento aprovou o fim do tráfico negreiro. Pelo direito de propriedade
ali definido, o Estado transferiu ao particular o seu direito de domínio para
que no lugar do escravo fosse a terra usada como suporte de empréstimos
hipotecários de que careciam os fazendeiros.
Os impasses desse nascimento anômalo são
pesadelo que entre nós se manifesta na questão agrária e se desdobra na questão
agrícola. O regime militar de 1964 tomou medidas para sujeitar o vício
escravista do direito de propriedade fundiária a uma revisão cíclica, de
reforma agrária, à luz dos valores e premissas que a respeito nos vem desde a
Lei de Sesmarias de 1375. A Constituição de 1946, então vigente, no artigo 147,
estabeleceu que o “uso da propriedade está condicionado ao bem-estar social”.
Com base na lei caberia ao Estado “promover a justa distribuição da
propriedade, com igual oportunidade para todos”.
A margem discursiva da questão do agronegócio
no exame do Enem tanto levaria o candidato a sentir-se desafiado a justificar
esse ramo da economia, quanto poderia levá-lo a indagar porque num país
latifundista como o nosso há 100 milhões de pessoas vivendo em estado de
insuficiência alimentar, 33 milhões delas na condição de famintas. Qual o
sentido de semelhante fato?
O examinando mais informado e mais bem
formado poderia concluir que há limitações sociais à reprodutibilidade do
agronegócio latifundista, cuja voracidade territorial não pode prosperar sem
que a reforma agrária seja completada no marco de uma reforma da agricultura.
Isto é, do uso da terra para criar emprego e produção que faça do mercado
interno uma mediação decisiva do capitalismo brasileiro. Isto é, pode ser que o
agronegócio, como concebido no Brasil, esteja colidindo com a função social da
propriedade definida na Constituição. Uma premissa histórica do direito
fundiário brasileiro. A Lei de Sesmarias aplicada no Brasil desde o dia do
Descobrimento até os direitos reconhecidos e definidos pelo regime militar de
1964.
O examinando atilado, em sua análise, não
teria como não concluir que as inquietações do agronegócio com o exame do Enem
indicam que estamos apenas no meio do caminho da constituição da propriedade
privada da terra no Brasil e da sua harmonização com o que é próprio da
dinâmica do capital.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar,
da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é
autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna
antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
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