sexta-feira, 17 de novembro de 2023

José de Souza Martins* - O agronegócio e o Enem

Valor Econômico

Estamos apenas no meio do caminho da constituição da propriedade privada da terra no Brasil e da sua harmonização com o que é próprio da dinâmica do capital

Porta-vozes de setores do agronegócio fizeram queixas e reclamações contra questões contidas na primeira fase da prova nacional do Enem. Aquela parte da prova que é feita para averiguar quem dos participantes tem formação e capacidade de interpretação de textos que os habilitem a ingressar no curso superior. É fato estranho que porta-vozes de setores do agronegócio tenham manifestado desconforto em relação a questões da prova do Enem que supostamente não correspondem à ideia que os vinculados a esse ramo da economia têm de si mesmos e do que é próprio dele.

Não sendo o agronegócio necessariamente aquilo que os agronegocistas supõem que seja, é mais do que compreensível que seja ele incluído por educadores como tema de um exame desse tipo. Como comentou o jornalista Octavio Guedes, na GloboNews, as perguntas tiveram por objetivo avaliar a competência de interpretação de texto de referência. A problematização foi feita pelo autor desse texto e não pelos educadores responsáveis pelo exame. Nem pelo governo.

A queixa do agronegócio pressupõe equivocadamente o direito de censura contra o conhecimento crítico. Educação é um ramo especializado na produção e distribuição do conhecimento, mesmo sobre vaca e soja. A queixa é um tiro pela culatra.

Nela, o agronegócio pede uma revisão pública de sua história. No capitalismo brasileiro, a economia da propriedade da terra é historicamente marcada por tensões e crises de gênese e de transição em confronto com o que é próprio do capitalismo. Isto é, da economia fundada na reprodução ampliada do capital e não na persistência imobilista da forma rentista da propriedade fundiária que temos.

A demanda do agronegócio conduz ao que um sociólogo define como efeito bumerangue da afirmação desinformada. A manifestação do agronegócio pede esclarecimento e o esclarecimento passará necessariamente pelas anomalias do processo histórico de formação aqui da grande propriedade rural em conexão com a formação do capitalismo e suas peculiaridades entre nós. Aqui o capitalismo não teve o percurso que foi característico dos verdadeiros países capitalistas, como a Inglaterra, a França, a Alemanha. E mesmo os Estados Unidos.

Aqui o capitalismo nasceu da sua negação: o trabalho escravo. E foi determinação mediadora da crise da escravidão que entre nós nasceu a propriedade privada da terra em 1850, na mesma semana em que o mesmo Parlamento aprovou o fim do tráfico negreiro. Pelo direito de propriedade ali definido, o Estado transferiu ao particular o seu direito de domínio para que no lugar do escravo fosse a terra usada como suporte de empréstimos hipotecários de que careciam os fazendeiros.

Os impasses desse nascimento anômalo são pesadelo que entre nós se manifesta na questão agrária e se desdobra na questão agrícola. O regime militar de 1964 tomou medidas para sujeitar o vício escravista do direito de propriedade fundiária a uma revisão cíclica, de reforma agrária, à luz dos valores e premissas que a respeito nos vem desde a Lei de Sesmarias de 1375. A Constituição de 1946, então vigente, no artigo 147, estabeleceu que o “uso da propriedade está condicionado ao bem-estar social”. Com base na lei caberia ao Estado “promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”.

A margem discursiva da questão do agronegócio no exame do Enem tanto levaria o candidato a sentir-se desafiado a justificar esse ramo da economia, quanto poderia levá-lo a indagar porque num país latifundista como o nosso há 100 milhões de pessoas vivendo em estado de insuficiência alimentar, 33 milhões delas na condição de famintas. Qual o sentido de semelhante fato?

O examinando mais informado e mais bem formado poderia concluir que há limitações sociais à reprodutibilidade do agronegócio latifundista, cuja voracidade territorial não pode prosperar sem que a reforma agrária seja completada no marco de uma reforma da agricultura. Isto é, do uso da terra para criar emprego e produção que faça do mercado interno uma mediação decisiva do capitalismo brasileiro. Isto é, pode ser que o agronegócio, como concebido no Brasil, esteja colidindo com a função social da propriedade definida na Constituição. Uma premissa histórica do direito fundiário brasileiro. A Lei de Sesmarias aplicada no Brasil desde o dia do Descobrimento até os direitos reconhecidos e definidos pelo regime militar de 1964.

O examinando atilado, em sua análise, não teria como não concluir que as inquietações do agronegócio com o exame do Enem indicam que estamos apenas no meio do caminho da constituição da propriedade privada da terra no Brasil e da sua harmonização com o que é próprio da dinâmica do capital.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

 

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