domingo, 18 de fevereiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

As armadilhas da nova política industrial

O Globo

Plano do governo foi apresentado de modo vago, custa caro e não evita os riscos apontados pelos economistas

O programa Nova Indústria Brasil, lançado pelo governo federal em janeiro, foi apresentado em termos vagos, mas com um dado concreto: investimentos de R$ 300 bilhões até 2026, a maior parte do BNDES, para promover o que seus defensores têm chamado de “neoindustrialização”. Tal montante, equivalente a algo como 1% do PIB brasileiro no período, exige pausa para reflexão. Vale a pena? Ou será apenas dinheiro desperdiçado em projetos fadados ao fracasso, como tantas vezes no passado? Ainda não dá para avaliar a destinação dos recursos, mas é possível desde já expor os principais riscos e as principais armadilhas.

É preciso reconhecer que políticas industriais têm reflorescido no mundo. Nos Estados Unidos, o governo Joe Biden destinou US$ 465 bilhões a fábricas de semicondutores e à transição energética. A China é conhecida pelo dirigismo em setores considerados “estratégicos”. Depois do choque da pandemia nas cadeias globais de suprimento, países europeus e asiáticos têm adotado medidas para favorecer a produção local de medicamentos, chips ou outros produtos. O plano brasileiro foi apresentado como mais um no contexto global e segue uma década de reavaliação das políticas industriais no meio acadêmico, com visão mais favorável que no passado. “O novo não está tanto nos argumentos em prol da política industrial, mas sim na melhor mensuração desse tipo de política pública”, escreveu o economista Luiz Guilherme Schymura, diretor do Ibre/FGV, numa síntese da discussão que o instituto realizou sobre o tema.

Políticas industriais se definem pelo incentivo a setores ou empresas específicas, com a intenção de dar-lhes vantagem em relação aos demais. Na teoria, o país recebe em troca benefícios na forma de incremento das exportações, fornecimento de bens públicos necessários — como uma matriz energética mais limpa — ou diversificação para tornar a economia mais resistente a choques. São medidas classificadas como “verticais”, em contraste com as “horizontais”, destinadas a beneficiar todos os setores e empresas. Um exemplo de política “horizontal” é a reforma tributária em curso, que provavelmente dará à indústria mais incentivo que todo o plano de “neoindustrialização”. Quanto às políticas “verticais” específicas, o histórico do Brasil recomenda, no mínimo, ceticismo.

Só na indústria naval, os governos petistas enterraram US$ 26,4 bilhões sem nenhum resultado, repetindo o que já acontecera na ditadura militar. A escolha de “campeões nacionais” em setores variados resultou apenas em crédito barato a grupos privados, sem que tenha havido salto de inovação ou competitividade na maioria. Subsídios recorrentes à indústria automobilística se tornaram apenas uma forma de salvar empresas improdutivas. Para não falar naquela que talvez seja a política industrial mais desastrada na História recente: a reserva de mercado de informática, que manteve o país alheio ao avanço da economia digital por décadas.

Fracassos em políticas industriais ocorrem mesmo no país visto como modelo pelos arautos da “neoindustrialização”, a China. Subsídios à indústria naval chinesa favoreceram as estatais, mas não houve benefícios para o resto da economia. Outro célebre malogro chinês foi a tentativa de criar um competidor para Boeing e Airbus com a aeronave Comac C919. Mesmo com investimentos de US$ 70 bilhões para desenvolver o projeto, a entrega atrasou cinco anos, e nenhum país fora da China homologou o novo avião.

Pode haver, contudo, casos em que incentivos setoriais se justifiquem, e os exemplos da Embraer e da Embrapa — sucessos decorrentes da aposta em conhecimento e inovação — estão aí para provar. A literatura econômica recente tem se esmerado em definir as condições para o êxito de políticas industriais com base em exemplos do mundo todo — da França sob Napoleão à Coreia do Sul nos anos 1970, passando pela pecuária uruguaia. Embora não haja conclusões definitivas, ao implementar um plano caro como o Nova Indústria Brasil, o governo deveria prestar atenção aos erros mais frequentes elencados pelos economistas.

É preciso manter avaliação constante e foco em resultados mensuráveis de produtividade (nos anos 1970, a Coreia monitorava metas de exportação e investimentos, cortando subsídios das empresas que não as cumpriam). Todo incentivo deve ser temporário e, quando der errado, precisa ser cortado. “A política industrial de sucesso não diz respeito a escolher vencedores, mas sim a rejeitar perdedores”, afirmou ao jornal Financial Times o economista Dani Rodrik, da Universidade Harvard. É ainda fundamental que haja uma relação próxima, mas não promíscua, entre o mercado e a burocracia do setor público. “É preciso basear a política em informação, interação e aprendizado.”

O plano Nova Indústria Brasil não enfrenta nem esboça resposta a nenhuma dessas questões. No lugar de foco, há metas genéricas e voluntaristas para atender a setores os mais diversos — do agronegócio à saúde, do saneamento à biotecnologia, da energia limpa à mobilidade urbana. “Quanto mais coisas você tentar alcançar, mais improvável consegui-las”, disse Rodrik.

A tentativa de turbinar o BNDES também desperta incredulidade diante do histórico. “O uso do BNDES como instrumento de indução do crescimento econômico é hoje reconhecido como um dos maiores erros de política econômica recente”, escreve o economista Marcos Mendes, do Insper. “O custo fiscal foi substancial, houve a indução de alocação ineficiente de capital, concentrou renda, subsidiou ditaduras como as de Venezuela, Cuba e Angola, teve efeitos colaterais negativos sobre a política monetária e controle da inflação, promoveu o afastamento de fontes privadas de financiamento de longo prazo.”

Por fim, o plano do governo traduz a crença injustificada no Estado como cérebro do desenvolvimento. Nada poderia ser mais distante da realidade. “Empresas privadas não acertam sempre. Mas, quando erram, são penalizadas pelo mercado”, afirma Mendes. A competição, diz ele, interrompe projetos malsucedidos, enquanto o “Estado pode sustentar por muitos anos iniciativas fracassadas, pois obtém financiamento pela extração compulsória de impostos”. Os riscos da nova política industrial do governo estão claros. Só falta ele esclarecer o que fará para evitar as armadilhas.

Receita promete nova forma de ação; a ver

Folha de S. Paulo

Projeto de lei que busca diferenciar bons e maus pagadores é correto na teoria, mas sanha arrecadatória petista preocupa

É positivo, ao menos em teoria, o projeto de lei enviado pelo governo ao Congresso com o objetivo declarado de melhorar a relação entre a Receita Federal —um órgão conhecido pela voracidade por recursos— e os contribuintes.

O intuito, correto, é desenvolver um sistema que incentive a conformidade de empresas, mude a lógica de antagonismo e reduza litígios. Não menos importante, busca-se diferenciar com maior clareza bons e maus pagadores, de modo que o fisco possa concentrar esforços nos devedores recorrentes.

A proposta tem três partes: políticas de conformidade, medidas para o controle de benefícios fiscais e a criação de um cadastro de devedores contumazes.

Quanto à conformidade, há três iniciativas. A primeira, voltada para empresas com faturamento mínimo de R$ 2 bilhões anuais e dívidas acima de R$ 100 milhões, é o chamado Programa de Conformidade Cooperativa Fiscal (Confia).

Instituído por normativo da Receita em dezembro para uma fase de testes, o Confia abrange um universo de cerca de 1.600 pessoas jurídicas e almeja a resolução ágil e amigável de controvérsias tributárias. Na prática, busca-se maior disposição para autorregularização das empresas, sem multas no caso de não haver acordo em 120 dias.

A segunda providência é o Sintonia, que abrange todos os contribuintes e estimula boas práticas. Cultura mais cooperativa e interlocução eficaz entre fisco e empresas são certamente bem-vindos para melhorar o ambiente de negócios.

Há ainda regulamentação adicional do Operador Econômico Autorizado (OEA), uma modalidade existente desde 2015 para agilizar o comércio exterior.

Também é pertinente a busca do governo por melhor controle de incentivos fiscais, que proliferam sem controle no país. A ideia é que as empresas beneficiadas especifiquem de qual regra se valem.

O cadastro de devedores contumazes, por fim, é medida óbvia para punir quem de fato explora as brechas da lei. Os piores casos são os daqueles que refinanciam dívidas fiscais repetidamente.

No agregado, deve-se apoiar a visão manifestada pelo secretário especial da Receita, Robinson Barreirinhas, de que o antagonismo está ultrapassado, e o fisco moderno é o que orienta o bom contribuinte.

São palavras sensatas, mas o desafio estará na prática cotidiana. Como se sabe, qualquer mudança cultural ou institucional, para ser efetiva, depende de compromisso e aperfeiçoamentos continuados. A sanha arrecadatória do governo petista, num panorama de carga tributária já escorchante, é decerto um motivo de preocupação.

Navalni e a Rússia

Folha de S. Paulo

Morte de opositor de Putin na cadeia evidencia degeneração autoritária do país

Após um calvário de três anos, Alexei Navalni morreu em uma prisão russa num canto ermo do país, 40 km acima do Círculo Polar Ártico. Ele tinha apenas 47 anos.

Com ele desaparece não só o mais proativo crítico de Vladimir Putin surgido na última década; vai-se também um dos últimos suspiros de oposição em um país onde a calcificação do sistema político virou um fim em si mesmo.

Não que Navalni fosse perfeito, muito ao contrário. Figura dada a polêmicas, esposou visões chauvinistas e preconceituosas do mundo antes de ser adotado pelo Ocidente como o cavaleiro salvador da democracia russa.

Isso ele nunca foi. Os eleitores não chegaram a vê-lo como opção real a Putin, único homem que todos os nascidos a partir de agosto de 1999 viram como líder do país mais vasto do mundo.

Navalni tampouco dizia a que veio, como o proverbial cão que corre atrás de um automóvel e não tem ideia do que fazer quando enfim alcança seu objetivo. Faltava-lhe ideário político e econômico, para não falar de equipe.

Sobravam-lhe, contudo, engenho, expresso nos grandes protestos que mobilizou contra Putin, e coragem. Quando foi envenenado na Sibéria, acabou removido para tratamento na Alemanha.

Poderia ter ficado por lá com sua mulher e dois filhos, mas decidiu voltar a Moscou de forma temerária. Foi preso imediatamente e nunca mais deixou o cárcere, tendo uma pena de três anos e meio aumentada para 30 anos e meio em julgamentos subsequentes.

O cheiro de perseguição política evidente se espraiou pelas condições de seu encarceramento, com longos períodos em celas solitárias e o previsível declínio físico —que, nunca se deverá saber ao certo, pode ter sido central para sua morte.

É improvável que algo mude: o Ocidente continuará a chamar Putin de assassino, e os russos tendem a manter a aprovação acima de 80% de seu líder em uma guerra que pode vencer contra a Ucrânia.

Se tal cenário é multifatorial, incluindo aí apoio genuíno a Putin, é certo que a morte de Navalni será marca dos efeitos da degeneração autoritária crescente da Rússia.

A necessária autocrítica do STF

O Estado de S. Paulo

Como mostra pesquisa, confiança dos brasileiros no STF está se deteriorando, mas não porque a Corte defendeu o Estado de Direito, e sim pelos abusos cometidos a pretexto dessa defesa

Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) prestou inestimáveis serviços: da punição aos corruptos do mensalão à preservação das prerrogativas dos Estados na pandemia e a defesa do processo eleitoral, além da responsabilização dos executores e artífices do atentado do 8 de Janeiro. Em momentos críticos, o STF teve papel crucial na defesa da soberania do povo, encarnada nas instituições republicanas. E, no entanto, o sentimento desse mesmo povo em relação à mais alta instância judicial do País é de desconfiança.

Segundo pesquisa AtlasIntel, mais da metade dos brasileiros diz não confiar no STF. Entre 51% e 56% dos entrevistados consideram “péssima” a atuação dos ministros em questões capitais, como a defesa da democracia, o respeito ao Legislativo, reformas para melhorar o Judiciário, correção de abusos de instâncias inferiores, profissionalismo e competência dos ministros, defesa dos direitos individuais, imparcialidade entre rivais políticos e combate à corrupção. A trajetória é de deterioração. Em um ano, os que confiam no STF caíram de 45% para 42%, e os que não confiam cresceram de 44% para 51%.

Justificado ou não, esse descrédito é ruim. O bom funcionamento do Estado Democrático de Direito depende de um Judiciário que seja não só autônomo e independente, mas também respeitado. A percepção ideal da Justiça é de um quadro de servidores qualificados, que julgam conflitos sobre os quais não têm parte, aplicando leis que não criaram. Mas o sentimento predominante sobre o STF é o oposto: de uma Corte incompetente, instável, politizada, conivente com a corrupção e até autoritária.

Uma das razões estruturais e exógenas para essa desconfiança é uma disfuncionalidade constitutiva. Constituições deveriam ser abstratas e sucintas, consagrando direitos fundamentais e princípios basilares para o funcionamento do Estado, e deixando o resto às composições políticas. Mas os constituintes pecaram por excesso, confeccionaram uma Carta abrangente e pormenorizada e atribuíram à Corte constitucional competências excessivamente amplas, inclusive sobre matérias penais e administrativas. Obrigado a arbitrar sobre controvérsias que em outras partes do mundo são deixadas a outras instâncias judiciais ou, sobretudo, à política, o STF é sobrecarregado e tragado por paixões partidárias.

Essa disfuncionalidade incentiva o oportunismo político. As esquerdas, com frequência minoritárias nas Casas Legislativas, recorrentemente tentam reverter na Corte políticas que perderam no voto. Populistas à direita, insatisfeitos com prerrogativas das minorias, elegem a Corte como o “inimigo público número um” quando esta não se dobra à “vontade do povo” – nome que eles dão ao alarido dos reacionários.

Nada disso exime os ministros de fazer um exame de consciência. A maior causa da deterioração da autoridade do STF não é a sua atuação em defesa da democracia ou da Constituição, mas os abusos cometidos a pretexto dessa defesa: invasões de competências legislativas, protagonismo midiático, atropelamento do processo legal, relações promíscuas com os poderosos de turno.

Um exemplo cristalino são as arbitrariedades nos inquéritos conduzidos por Alexandre de Moraes contra atos antidemocráticos, as chamadas “milícias digitais” e as fake news. Outro são as revisões monocráticas de Dias Toffoli de acordos fechados no âmbito da Operação Lava Jato. É fato que, em nome do combate à corrupção, a Lava Jato se permitiu toda sorte de abusos, mas, ao invés de corrigi-los, Toffoli, com a conivência de seus pares, incorre nos mesmos abusos, com o sinal trocado. De instância saneadora do lavajatismo, o STF se converteu em antilavajatista, instaurando um neolavajatismo. É o mesmo voluntarismo messiânico. Só que dessa vez a população está escolada: segundo a AtlasIntel, nada menos que 80% discordam da suspensão das multas impostas aos criminosos confessos.

De guardiães do Estado de Direito, alguns ministros se autoatribuíram a missão de vigilantes da política. Mas a população começa a se perguntar quem, afinal, vigia os vigilantes. Outros se mostram impacientes com a ordem jurídica e, ao invés de serem seus operadores, querem ser seus reformadores para curar “injustiças sociais”. Mas a população parece esperar deles algo mais modesto: que apenas cumpram a lei e respeitem o Estado Democrático de Direito.

Todos ganham com a reforma administrativa

O Estado de S. Paulo

Se for racional e bem conduzida, a reforma para regenerar a burocracia estatal, máquina que hoje produz desigualdade, pobreza, injustiça e conflito, será a mais popular das agendas

Nos últimos 25 anos, o salário dos servidores de elite do Executivo federal aumentou, em média, 40% acima da inflação. Mas os dados, levantados pelo Movimento Pessoas à Frente, mostram uma trajetória díspar. Carreiras com maior poder de pressão – seja porque estão mais próximas do centro do poder (como analistas de gestão, Orçamento e planejamento), ou porque têm a chave do cofre (auditores fiscais), ou porque estão associadas ao maior acumulador de privilégios, o Judiciário (advogados da União) – acumularam aumentos de até 60%. Inversamente, postoschave de alta relevância política e complexidade técnica, mas que são comissionados, não concursados, sofreram depreciação de quase 40%. Um secretário nacional, o número dois dos ministérios, ganha hoje menos que um auditor fiscal em início de carreira.

Tais disparidades retratam um sistema disfuncional e arbitrário que se torna cada dia mais uma máquina de gerar desigualdades, pobreza, injustiça social e conflito civil. Desigualdade, porque, em média, os trabalhadores do setor público ganham acima de seus pares na iniciativa privada (até 50%), e a desigualdade entre as carreiras do topo e as da base no setor público é maior do que no privado (até sete vezes). Pobreza, porque uma máquina custosa e improdutiva pressiona as contas públicas – e, logo, a carga tributária e a dívida pública, o que corrói a renda pelos juros e inflação –, contrai os investimentos públicos e afugenta os privados. Injustiça social, porque os mais pobres (que, em razão de uma tributação regressiva, pagam proporcionalmente mais) são os que mais sofrem com a carência de serviços básicos como saúde, segurança ou educação. E conflito, porque estas distorções e perversões incitam a descrença do cidadão em relação ao Estado Democrático de Direito e desencadeiam um ciclo vicioso de vilanização dos servidores retroalimentada pela sua vitimização.

O Estado brasileiro é grande demais, porque é ineficiente, e gasta demais, porque gasta mal. Corrigir essa situação é não tanto uma questão de solucionar uma disputa abstrata entre o Estado “mínimo” (de certas vertentes liberais) e o Estado “máximo” (das vertentes socialistas), ou mesmo entre redução de gastos ou aumento de impostos, mas de encontrar mecanismos concretos para que o Estado seja eficaz e gaste bem conforme as prioridades da população. A sociedade brasileira optou, por exemplo, por um serviço universal de saúde. Isso tem um custo, que os cidadãos estão dispostos a pagar, mas desde que seja revertido em benefícios.

Há disfunções que exigem mudanças constitucionais. Em todo o mundo prevê-se o regime de estabilidade para resguardar a burocracia e políticas de Estado das alternâncias partidárias. Mas em países desenvolvidos essa condição é prerrogativa de poucas carreiras de Estado. A estabilidade universal cimentada pela Constituição não tem paralelo no mundo.

Mas mais urgente, relevante e factível que mudar o regime de estabilidade é regulamentar sistemas mais flexíveis de progressão e realocação de carreira com base em metas, necessidades e avaliações de desempenho que premiem os mais comprometidos. Isso implica reduzir os salários iniciais e eliminar progressões automáticas. São distorções que podem ser corrigidas com legislação ordinária, assim como uma perversão que tem impacto, sobretudo, moral: os privilégios, supersalários e penduricalhos acumulados por pequenas castas.

Uma agenda de reformas da administração pública seria uma oportunidade de reverter o atual ciclo de subdesenvolvimento excludente em uma trajetória de desenvolvimento inclusivo. A um tempo, ela promoveria um revigoramento cívico e político, incentivando a sociedade a se aproximar e participar da gestão da coisa pública; garantiria melhores serviços a todos, inclusive aos funcionários públicos e especialmente aos cidadãos mais vulneráveis; melhoraria as condições de produtividade e crescimento econômico; e promoveria mais distribuição de oportunidades e renda, inclusive entre os servidores públicos.

De pai para filho

O Estado de S. Paulo

Inadimplente em mais de US$ 500 milhões, Cuba apela à boa vontade lulopetista

Um encontro recente de representantes dos governos cubano e brasileiro no Ministério da Fazenda, em Brasília, selou oficialmente a reabertura das negociações sobre a dívida de Cuba com o Brasil, que supera meio bilhão de dólares. O débito é praticamente todo referente ao financiamento da reforma do Porto Mariel, obra iniciada em 2010 pela Odebrecht, no final do segundo governo Lula da Silva.

Foi um período de desmesurada generosidade da gestão petista com nações companheiras. Cuba teve tratamento especial, com 25 anos para pagamento do empréstimo de US$ 656 milhões, mais do que o dobro do prazo médio de 11 anos dado aos demais, e taxas de juros quase simbólicas, que chegavam a menos de 5% ao ano. Porto Mariel foi também o único projeto atrelado 100% ao risco soberano de um país.

Nada disso era conhecido à época. Alegando sigilo comercial, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) não divulgava detalhes do financiamento, que somente depois dos escândalos de corrupção revelados pela Lava Jato vieram à tona – inclusive em depoimentos de acordos de leniência que agora o ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli, que já foi citado por Marcelo Odebrecht como “o amigo do amigo do meu pai”, se empenha em desqualificar.

Em depoimento em 2016, o pai de Marcelo, Emílio Odebrecht, contou que a obra no porto cubano não estava nos planos da Odebrecht nem do BNDES. Afirmou que a ideia partiu do caudilho venezuelano Hugo Chávez, num encontro na Venezuela, e foi apoiada por Lula da Silva. Uma completa ação entre amigos. Na inauguração, Marcelo Odebrecht estava lá, com a então presidente Dilma Rousseff, ao lado do ditador cubano Raúl Castro.

Agora, com Lula da Silva em sua terceira passagem pelo Palácio do Planalto, Cuba volta a negociar uma dívida claramente impagável para um país em profunda crise econômica desde que perdeu a mesada soviética, além de sofrer embargo dos Estados Unidos. A incapacidade financeira de Cuba para honrar seus compromissos era, portanto, notória, e o calote, mais do que esperado.

É imperioso que os gestores públicos respeitem um dos principais critérios financeiros: dívida é dívida e, como tal, tem de ser paga. Principalmente quando se trata de dinheiro público e, ainda mais relevante, quando se trata de relação comercial entre países. O BNDES está sendo ressarcido por parte dos prejuízos com dinheiro do erário brasileiro. No caso de Cuba, o Fundo Garantidor de Crédito, do Ministério da Fazenda, já pagou US$ 273 milhões. E ainda há 11 prestações a serem pagas, de acordo com dados do próprio banco.

Flexibilização de dívida é um procedimento normal entre credor e devedor, o que não significa, obviamente, fazê-la descer a um nível tão baixo que se assemelhe a um perdão. No passado recente, Cuba lastreou parte do empréstimo em recebíveis da indústria estatal de tabaco. Espera-se que a benevolência petista com os companheiros cubanos não leve à quitação de US$ 500 milhões em charutos.

O Brasil num mundo de mais incertezas

Correio Braziliense

O nível de atividade nos Estados Unidos, a principal locomotiva do mundo, está fraquejando, o que levou o Federal Reserve (Fed), o Banco Central norte-americano, a sinalizar um possível corte nas taxas de juros nos próximos meses

Os dados da economia mundial devem ser vistos com muita atenção pelo governo brasileiro. Os números captados nos quatro cantos do planeta apontam que um processo de desaceleração da economia está em curso, e isso terá seu preço para o Brasil, que, em 2023, se aproveitou muito dos ventos globais positivos que ainda estavam soprando, o que resultou em um saldo recorde da balança comercial de quase US$ 100 bilhões. Em 2024, certamente, o comércio internacional tenderá a andar a passos mais lentos, reduzindo a força de um dos pilares que sustentaram o avanço do Produto Interno Bruto (PIB) na casa de 3%.

O nível de atividade nos Estados Unidos, a principal locomotiva do mundo, está fraquejando, o que levou o Federal Reserve (Fed), o Banco Central norte-americano, a sinalizar um possível corte nas taxas de juros nos próximos meses. Nos últimos dias, vários indicadores importantes endossaram esse quadro. A produção industrial registrou queda de 0,3% em janeiro, quando os analistas esperaram alta de 0,2%. As vendas do varejo computaram um tombo ainda maior, de 0,8%. No mercado imobiliário, com peso importantíssimo no PIB do país, tanto as vendas quanto as construções de imóveis despencaram entre 20% e 30% frente ao mês anterior.

O que mais tem perturbado os analistas é que, mesmo com esse enfraquecimento da economia dos EUA, a inflação se mantém resistente e voltou a surpreender para cima. No mês passado, os preços aos consumidores acusaram elevação de 0,3%, acima do projetado pelo mercado (0,2%). Já os preços no atacado saltaram 0,3% ante o 0,1% projetado, com o núcleo da inflação, que desconta fatores atípicos, aumentando 0,6%. Nesse contexto de atividade fraca, mas com custo de vida em alta, o Federal Reserve terá mais dificuldade para calibrar os juros. Havia um quase consenso de que as taxas baixariam a partir de maio, agora, já se discute o início dos cortes em junho. Essa incerteza prejudica, sobretudo, os países emergentes, como o Brasil, que veem os investidores travados num ambiente de riscos consideráveis.

No Reino Unido, a recessão já chegou. O PIB do quarto trimestre de 2023 recuou 0,3%, depois de ter contraído 0,1% entre julho e setembro. No acumulado do ano, a economia britânica avançou apenas 0,1%, nada perto dos 4,3% observados em 2022. No Japão, a atividade também tombou nos três últimos meses do ano passado. A expectativa era de crescimento de 0,2% frente ao trimestre imediatamente anterior, mas houve queda de 0,1%. Na União Europeia, não foi diferente. O PIB caiu 0,1% entre outubro e dezembro últimos, fazendo com que o resultado final do ano tivesse incremento de minguado 0,5%.

O Brasil, ressalte-se, está longe de uma recessão. Mas há um movimento leve de desaceleração em curso. Os sinais do primeiro trimestre são de um PIB melhor que o projetado, mas há preocupações com o restante do ano. Será preciso que o governo mantenha firme o compromisso de ajuste nas contas públicas, permitindo que o Banco Central possa continuar cortando a taxa básica de juros (Selic). Se os gastos federais não saírem do controle, será possível que a autoridade monetária leve a Selic, que está em 11,25%, até 8,75% ao ano em dezembro, um afrouxamento e tanto.

A queda dos juros iniciada no ano passado ainda não teve efeito na atividade. Esse processo leva de seis a nove meses. Assim, espera-se que, no segundo semestre, a política monetária menos restritiva estimule os investimentos e o crédito ao consumo. São instrumentos importantes para manter a roda da economia girando. O governo tem a seu favor a inflação mais baixa. No atacado, são dois meses seguidos de queda dos preços. Ou seja, esse movimento chegará aos consumidores, como se viu nos primeiros meses de 2023. Portanto, paciência e bom senso farão muito bem ao Brasil neste mundo cada vez mais complexo e imprevisível.

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