sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

José de Souza Martins - Dilemas do Estado laico

Valor Econômico

Decisão do STF traz à tona separação entre as funções propriamente religiosas dos símbolos de fé e sua simultânea função de símbolos das tradições culturais brasileiras

É velha pendência do Brasil republicano a relativa à questão do caráter não confessional do Estado. Ainda em esboço, vinha do Império, praticamente desde quando os ingleses foram patronos e credores da Independência do Brasil. A abertura comercial do país a eles teve uma implicação: a abertura religiosa para abrigar a fé estrangeira dos chamados acatólicos.

O Estado monárquico criou um nicho paralelo à religião oficial e do Estado. Eles poderiam celebrar sua fé em privado e em templos sem forma exterior de igreja. O arranjo funcionou bem até o 15 de novembro de 1889, quando o catolicismo deixou de ser a religião do Estado.

Coisa que também interessava à Igreja Católica, para que o clero deixasse de ser um clero de funcionários públicos, que do Estado recebia a côngrua, o seu salário. O catolicismo brasileiro optou por libertar-se do poder, uma tendência persistente no sentido justamente de construir um catolicismo socialmente enraizado, cristão. O oposto da atual voracidade de poder de evangélicos.

Haverá um rearranjo nessa opção quando Getúlio Vargas, pelo Estado Novo, reconheceu que o catolicismo era a religião da maioria da população, razão de um relacionamento preferencial do Estado com a Igreja.

A decisão de agora, do STF, sobre a validade de símbolos religiosos em recintos públicos oficiais introduz um componente novo e interessante na definição do tema: a separação entre as funções propriamente religiosas dos símbolos de fé e sua simultânea função de símbolos das tradições culturais brasileiras. Se poder tivesse, eu completaria o amplo significado dessa decisão com a substituição do atual crucifixo do recinto do plenário do Supremo por um crucifixo da grande tradição cultural do barroco mineiro.

A decisão do STF não resolve o problema da questão religiosa, que vem se agravando desde meados dos anos 1950. Mas a situa e demarca numa perspectiva jurídica e cultural.

É de supor que haverá recursos aos tribunais para esclarecimento das questões conexas decorrentes da interpretação feita. O crescimento das religiões evangélicas tem motivado abusos de crentes que julgam de seu dever e missão criar situações de familiarização compulsória de não crentes com os valores de sua fé. Tensões têm surgido com tentativas de exposição e leitura compulsória da Bíblia em câmaras municipais e escolas.

É notória a pressão, especialmente a partir do bolsonarismo e de Bolsonaro, no sentido de oficializar o desmonte do catolicismo e impor nas entranhas do poder, no Executivo, no Legislativo e mesmo no Judiciário, o fundamentalismo religioso como um atributo do poder. Na lógica conspirativa de que procede, a função é disseminar a incerteza cultural e religiosa para facilitar o golpe de Estado como progressiva e lenta tomada do poder.

Já faz tempo que somos tratados como estranhos e estrangeiros. O bolsonarismo vem recolhendo as migalhas residuais da dominação política do nosso republicanismo socialmente excludente. Confina e criminaliza a nossa diversidade cultural para definir e satanizar um fictício inimigo da pátria que dê continuidade à lógica perversa da Guerra Fria, cuja legitimidade cessou desde a morte de Stálin e sobretudo desde a queda do Muro de Berlim.

Embora sem qualquer alusão ao fato, no meu modo de ver, a decisão do Supremo, implicitamente, questiona e enquadra a interpretação abusiva que da separação Estado e religião fez a ex-primeira-dama, em campanha eleitoral-religiosa. Acolitada pelo capelão extraoficial do mandato do presidente anterior, anunciou: “Por um bom tempo fomos negligentes a ponto de falarmos que não poderia misturar política com religião, e o mal tomou o espaço”.

Ainda no governo anterior, disse ela que a cadeira presidencial era de Deus e que Deus destinara o então presidente a ocupá-la em seu nome.

Nem mesmo um protestante legítimo, luterano, o general Ernesto Geisel, muito mais do que um capitão, se atreveu a aparelhar o recinto do poder por sua crença pessoal.

Apesar do questionamento de que um símbolo católico no recinto do júri tenha sido feito por um militar e evangélico, já no início da República, na chamada “questão do Cristo no júri”, a separação de Estado e religião permaneceu e o Cristo também continuou crucificado em repartições públicas, como no plenário do STF, mesmo com a eventual estranheza de ministros conscientes do fato.

A decisão recente do STF confirmou interpretação de instância inferior que “rejeitou a retirada de todos os símbolos religiosos de órgãos públicos da União no Estado de São Paulo”. O ministro Cristiano Zanin subscreveu decisão do CNJ de que “cultura e tradição também se manifestam por símbolos religiosos”.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

O espiritismo não cultua 'símbolos-religiosos',mas também não condena,eu adoro todos!