Valor Econômico
Decisão do STF traz à tona separação entre as
funções propriamente religiosas dos símbolos de fé e sua simultânea função de
símbolos das tradições culturais brasileiras
É velha pendência do Brasil republicano a
relativa à questão do caráter não confessional do Estado. Ainda em esboço,
vinha do Império, praticamente desde quando os ingleses foram patronos e
credores da Independência do Brasil. A abertura comercial do país a eles teve
uma implicação: a abertura religiosa para abrigar a fé estrangeira dos chamados
acatólicos.
O Estado monárquico criou um nicho paralelo à
religião oficial e do Estado. Eles poderiam celebrar sua fé em privado e em
templos sem forma exterior de igreja. O arranjo funcionou bem até o 15 de
novembro de 1889, quando o catolicismo deixou de ser a religião do Estado.
Coisa que também interessava à Igreja Católica, para que o clero deixasse de ser um clero de funcionários públicos, que do Estado recebia a côngrua, o seu salário. O catolicismo brasileiro optou por libertar-se do poder, uma tendência persistente no sentido justamente de construir um catolicismo socialmente enraizado, cristão. O oposto da atual voracidade de poder de evangélicos.
Haverá um rearranjo nessa opção quando
Getúlio Vargas, pelo Estado Novo, reconheceu que o catolicismo era a religião
da maioria da população, razão de um relacionamento preferencial do Estado com
a Igreja.
A decisão de agora, do STF, sobre a validade
de símbolos religiosos em recintos públicos oficiais introduz um componente
novo e interessante na definição do tema: a separação entre as funções
propriamente religiosas dos símbolos de fé e sua simultânea função de símbolos
das tradições culturais brasileiras. Se poder tivesse, eu completaria o amplo
significado dessa decisão com a substituição do atual crucifixo do recinto do
plenário do Supremo por um crucifixo da grande tradição cultural do barroco
mineiro.
A decisão do STF não resolve o problema da
questão religiosa, que vem se agravando desde meados dos anos 1950. Mas a situa
e demarca numa perspectiva jurídica e cultural.
É de supor que haverá recursos aos tribunais
para esclarecimento das questões conexas decorrentes da interpretação feita. O
crescimento das religiões evangélicas tem motivado abusos de crentes que julgam
de seu dever e missão criar situações de familiarização compulsória de não
crentes com os valores de sua fé. Tensões têm surgido com tentativas de
exposição e leitura compulsória da Bíblia em câmaras municipais e escolas.
É notória a pressão, especialmente a partir
do bolsonarismo e de Bolsonaro, no sentido de oficializar o desmonte do
catolicismo e impor nas entranhas do poder, no Executivo, no Legislativo e
mesmo no Judiciário, o fundamentalismo religioso como um atributo do poder. Na
lógica conspirativa de que procede, a função é disseminar a incerteza cultural
e religiosa para facilitar o golpe de Estado como progressiva e lenta tomada do
poder.
Já faz tempo que somos tratados como
estranhos e estrangeiros. O bolsonarismo vem recolhendo as migalhas residuais
da dominação política do nosso republicanismo socialmente excludente. Confina e
criminaliza a nossa diversidade cultural para definir e satanizar um fictício
inimigo da pátria que dê continuidade à lógica perversa da Guerra Fria, cuja
legitimidade cessou desde a morte de Stálin e sobretudo desde a queda do Muro
de Berlim.
Embora sem qualquer alusão ao fato, no meu
modo de ver, a decisão do Supremo, implicitamente, questiona e enquadra a
interpretação abusiva que da separação Estado e religião fez a
ex-primeira-dama, em campanha eleitoral-religiosa. Acolitada pelo capelão extraoficial
do mandato do presidente anterior, anunciou: “Por um bom tempo fomos
negligentes a ponto de falarmos que não poderia misturar política com religião,
e o mal tomou o espaço”.
Ainda no governo anterior, disse ela que a
cadeira presidencial era de Deus e que Deus destinara o então presidente a
ocupá-la em seu nome.
Nem mesmo um protestante legítimo, luterano,
o general Ernesto Geisel, muito mais do que um capitão, se atreveu a aparelhar
o recinto do poder por sua crença pessoal.
Apesar do questionamento de que um símbolo
católico no recinto do júri tenha sido feito por um militar e evangélico, já no
início da República, na chamada “questão do Cristo no júri”, a separação de
Estado e religião permaneceu e o Cristo também continuou crucificado em
repartições públicas, como no plenário do STF, mesmo com a eventual estranheza
de ministros conscientes do fato.
A decisão recente do STF confirmou
interpretação de instância inferior que “rejeitou a retirada de todos os
símbolos religiosos de órgãos públicos da União no Estado de São Paulo”. O
ministro Cristiano Zanin subscreveu decisão do CNJ de que “cultura e tradição
também se manifestam por símbolos religiosos”.
Um comentário:
O espiritismo não cultua 'símbolos-religiosos',mas também não condena,eu adoro todos!
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