Reforma tributária ainda é uma obra em construção
O Globo
Lula deve sancionar regulamentação sem vetos,
pois o próprio texto traz mecanismos de ajuste com o tempo
A regulamentação da reforma
tributária no Congresso foi um marco na modernização de um
sistema de impostos disfuncional, caótico e arcaico. Mas não esgota o assunto.
Trata-se, na verdade, de uma obra em construção. O secretário da Reforma
Tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, tem razão ao dizer que houve
“um avanço muito grande” em comparação com o que existe no país e que, apesar
das inúmeras imperfeições nas regras aprovadas pelos parlamentares, elas são um
preço necessário a pagar pela evolução.
Para começar, será uma revolução o contribuinte saber com exatidão quanto imposto paga, não precisar recorrer à esfera administrativa ou à judicial contra cobranças indevidas e se preocupar apenas com dois impostos sobre valor adicionado (IVA), sistema adotado há décadas nos países mais desenvolvidos. Apenas no ICMS, imposto estadual, há 27 regulamentações diferentes, para não falar na barafunda de normas e regras municipais. As empresas economizarão tempo e dinheiro no relacionamento com o Fisco.
Regulamentada a reforma, há um longo caminho
até a implantação completa das novas regras tributárias, prevista para 2033. É
um período suficiente para corrigir as várias distorções criadas ao longo da
aprovação. Sem o número expressivo de exceções à alíquota-padrão incluídas na
nova legislação pelo Congresso, a reforma teria provavelmente sido inviável
politicamente. Como esperado, grupos de interesse agiram para isentar bens e
serviços dos novos impostos. Caberá ao Executivo e ao Legislativo, na implementação
do novo sistema, corrigir os desvios.
Pelos cálculos iniciais, o inchaço na lista
de exceções aponta para uma alíquota-padrão ao redor de 28%, acima dos 26,5%
previstos como teto na própria lei. A valer tudo como foi aprovado, o Brasil
teria o maior IVA do mundo. Mas a nova legislação foi feliz ao prever um
gatilho que impedirá isso de acontecer. Quando os impostos chegarem a 26,5%, o
governo terá de enviar projeto ao Congresso com a finalidade de elevar a
taxação de bens e serviços beneficiados, para respeitar o teto da
alíquota-padrão.
A principal vantagem dos novos impostos é
que, ao diminuir a sonegação e a inadimplência, as alíquotas poderão até ser
reduzidas sem que haja perda de arrecadação. Técnicos da Fazenda confiam que a
cobrança dos tributos por meio de nota fiscal eletrônica e a divisão automática
dos recursos entre as fontes arrecadadoras (conhecida tecnicamente como split
payment) ajudarão a fechar o cerco contra sonegadores e fraudadores. A depender
da redução da sonegação e das fraudes, a alíquota de referência poderá ser reduzida
em 2 a 3 pontos percentuais, segundo projeções do governo.
Outro aspecto relevante será o fim da
cobrança cumulativa, que também poderá ajudar a aliviar a carga tributária. O
novo sistema facilita o aproveitamento de créditos e estimula toda empresa a
pedir nota fiscal, de modo que possa abater os impostos pagos às demais
daqueles que recolhe ao Fisco.
O importante agora é o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva sancionar a regulamentação sem vetos. Não faz sentido o Executivo
alterar o texto de uma reforma que necessita de tempo para ser absorvida. Ela
teve a sabedoria de prever mecanismos que garantem seus próprios ajustes no
futuro. O Brasil deixará definitivamente para trás uma estrutura tributária
obsoleta e iníqua.
Projeto de regulação da IA cria regras demais
para tecnologia ainda incerta
O Globo
Regular abusos é necessário, mas é preciso
cautela para lei não frear inovação nem ficar logo obsoleta
O Congresso deixou de lado, por pressão das
plataformas digitais, o Projeto de Lei das Redes Sociais, que já deveria ter
sido aprovado. Paradoxalmente, demonstra mais agilidade ao tratar da inteligência
artificial. Os senadores aprovaram um Projeto de Lei (PL)
regulamentando o desenvolvimento e uso da IA no Brasil. O projeto, de autoria
do senador Rodrigo
Pacheco (PSD-MG), seguiu para avaliação da Câmara dos
Deputados.
O texto determina regras a ser seguidas por
empresas que usarem IA e estabelece como se dará a supervisão delas.
Tecnologias classificadas como de alto risco, que podem causar danos, deverão
ter regulação mais restrita. Entre elas, o PL inclui concessão de serviços
públicos, seleção de estudantes, recrutamento de trabalhadores ou veículos
autônomos. Quem desenvolver sistemas com tais finalidades será obrigado a
realizar testes de avaliação. A preocupação é evitar discriminação e acidentes.
Em caso de dúvidas ou problemas, deverá implementar medidas corretivas. A
responsabilidade de regular IAs de alto risco será de um novo organismo do
governo, o Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência
Artificial (SIA).
Atendendo à demanda da opinião pública, o PL
proíbe o uso de ferramentas de IA para o poder público avaliar ou classificar
cidadãos no acesso a bens e serviços. Armas autônomas e avaliação de risco de
cometer crime também são banidas pela legislação. O uso da biometria é
permitido somente para capturar fugitivos, cumprir mandados de prisão e para
flagrantes de crimes com penas de mais de dois anos de prisão.
Questionados se o país deveria garantir a
regulamentação de IA, 50% dos brasileiros responderam que sim, de acordo com
pesquisa de opinião feita pelo Instituto Ipsos para a Fundação Luminate. Apenas
19% se disseram contrários, enquanto outros 31% afirmaram ser neutros ou não
saber. Quanto mais a população se informa sobre IA, mais defende a regulação.
As respostas na Argentina, na Colômbia e no México seguem o mesmo padrão.
O interesse da população pela IA é prova de
que o potencial transformador da nova tecnologia é avassalador. Estimular seu
uso é um dos caminhos da geração de riqueza e do desenvolvimento, e o Brasil
não pode ficar fora dessa corrida. O desafio é regular com sabedoria para
manter o direito à liberdade dentro dos parâmetros estabelecidos pelos
princípios constitucionais.
Embora o texto de Pacheco tente evitar a
omissão cometida com as redes sociais, peca no sentido oposto: estabelece
restrições demais para uma tecnologia cujos contornos e impactos ainda estão
indefinidos. É verdade que a IA oferece riscos e desperta preocupações, mas
criar regras e limites exagerados no atual estágio poderá acabar inibindo seu
desenvolvimento ou, pior, impor categorias e disciplinas que rapidamente se
tornarão obsoletas diante da realidade.
A conta do almoço grátis chega cedo ou tarde
Folha de S. Paulo
Apenas se abandonar gastança Lula terá condições de concluir seu mandato sem pôr em risco a estabilidade macroeconômica
Chegou a fatura da irresponsabilidade orçamentária de Luiz Inácio Lula da Siva (PT). Ela contém tumulto financeiro, câmbio e juros em cavalgada e inflação rumando para níveis preocupantes.
Para pagá-la, há o caminho organizado e o caótico, a depender da escolha do presidente da República.
No primeiro, minimizam-se custos para a sociedade. O segundo é a rota corrente, que produzirá desastres.
Desde que foi eleito, Lula praticou o ideário, derrotado pela história, de que o progresso decorre da expansão ilimitada do Estado, a teoria do almoço grátis.
A opção pela gastança, escancarada na emenda de transição de governo que expandiu a despesa federal em R$ 150 bilhões, sempre tem fôlego curto. Na sequência colhem-se "mais inflação, juros e endividamento", como alertou, sob severa crítica, esta Folha em dezembro de 2022. Ao final, a receita insustentável acabará por impactar negativamente o emprego.
Para a sorte de Lula, os legisladores que aprovaram a autonomia do Banco Central em 2021 não pensavam como ele. A ação firme da autoridade monetária contra-arrestou a incontinência do Planalto e evitou que a inflação saísse do controle por quase dois anos.
A elevação da Selic não justifica regozijo, mas é melhor que a hiperinflação e seus efeitos devastadores sobre a renda, sobretudo da parcela mais pobre dos brasileiros.
A degradação das perspectivas para a dívida pública chegou a tal ponto, porém, que os instrumentos da autoridade monetária mostram-se insuficientes.
O choque recente nos juros básicos, que os projetou para asfixiantes 14,25% ao ano em março, não estancou a sangria. O dólar e os juros da praça dispararam para alturas imprevistas, disseminando estragos e prejuízos ainda mal contabilizados.
A economia caminha para um cavalo de pau se não houver freio de arrumação urgente na política fiscal. A velha artimanha de Lula de acusar um complô de operadores financeiros pela situação terá pouca serventia.
A condição de devedor contumaz do Tesouro Nacional foi acentuada. Sem tomar vultosos e frequentes empréstimos, a máquina pública entra em colapso.
Para a virada de perspectivas, o pacote enfraquecido pelo Congresso não será o bastante. A poupança para impedir o descalabro da dívida requer mecanismos bem mais persistentes e valores muito mais significativos, o que é impossível sem redução de despesas.
Lula ainda pode decidir o desfecho da economia, embora a margem para erros esteja se estreitando.
Encapsular-se na teoria do almoço grátis vai conduzi-lo para um fiasco parecido com o de Dilma Rousseff, o que seria uma pena, pois em quase todos os outros setores o governo atual supera o de Jair Bolsonaro (PL).
Se tiver a coragem para mudar de rumos diante de riscos palpáveis de ruína, o presidente terá condições de concluir seu terceiro mandato sem comprometer a estabilidade macroeconômica, a conquista mais cara à sociedade brasileira nos últimos 30 anos.
Crises na Alemanha e na França desafiam
projeto europeu
Folha de S. Paulo
Representando 40% do PIB da UE, países
enfrentam tensão na governabilidade e ameaça extremista; volta de Trump
preocupa
Quando queria atacar seu rival estratégico na
primeira metade do século 19, o czar russo Nicolau 1º chamava o Império Otomano
de "o homem doente da Europa".
O apelido viria a se consagrar, aplicado aqui e ali nas décadas a seguir.
Poucos poderiam prever, no entanto, que o
termo pudesse ser empregado nos dias de hoje em referência não só à Alemanha,
a maior economia do continente, mas, por motivos diferentes, também à França.
Os dois países, que concentram 34% da
população e 40% do PIB da União
Europeia (UE), são a fundação sobre a qual se assenta todo o
projeto do bloco, atualmente com 27 integrantes.
A ameaça da ascensão do extremismo de direita
é um denominador comum. Com o crescente risco de colapso da política
tradicional nos esteios do projeto europeu, o futuro parece nebuloso.
Criada em 1993, a UE foi a culminação de uma
engenharia iniciada no pós-guerra em 1951 que visava evitar que alemães e
franceses se matassem. A oportunidade foi inundada de dinheiro dos Estados
Unidos, interessado em se contrapor ao colosso soviético logo ao
lado, e prosperou.
Todo esse arcabouço está vulnerável a um
empurrão de outro líder russo, Vladimir
Putin. O gás barato da Rússia que
abastecia Alemanha e outras nações acabou, dadas as sanções decorrentes da
invasão da Ucrânia,
e Berlim buscou alternativas caras.
Escolhas erradas de sua indústria-símbolo, a
automobilística, e o alto custo da energia enfraqueceram o setor ante a
concorrência chinesa. A gigante Volkswagen, que emprega 300 mil pessoas, já anunciou
que vai fechar fábricas, no que será seguida por congêneres como a
Tesla e a Ford.
Com efeito, o frágil governo do
social-democrata Olaf Scholz não
se sustenta. O primeiro-ministro antecipou o
processo eleitoral para fevereiro em busca de apoio, mas hoje
as duas principais forças no país são a oposição de direita clássica dos
democatas-cristãos e a extremista de direita Alternativa para Alemanha.
A estabilidade associada ao monólito alemão
está em xeque, e o fortalecimento dos extremos, inclusive à esquerda, passa
pela mesma questão que afeta a política francesa: a imigração.
Na terra de Emmanuel
Macron, uma série de
medidas arriscadas do presidente francês para tentar bloquear a
ultradireitista Reunião Nacional só enxugou gelo. Após convocar eleições e ser
derrotado, indicar um premiê que caiu em apenas três meses e ver o governo
paralisado, o líder tenta manquitolar até o fim de seu mandato, em 2027.
Enquanto isso, a insatisfação social cresce
no país, com a tensão nos bairros de imigrantes se fundindo à reação dos
protegidos agricultores a aberturas como o acordo UE-Mercosul.
Crises de governabilidade nos dois pilares da
Europa, mais o elemento mercurial da volta de Donald Trump à
Presidência dos EUA, só trazem a certeza de tempos turbulentos à frente.
A inconstância universal da ciência humana
Folha de S. Paulo
Cosmos se expande mais rápido do que diz
modelo padrão; assim caminha o conhecimento, aos tropeços para resolver enigmas
Quanto mais perscruta os céus, mais a
humanidade percebe que pouco sabe sobre o universo. De modo paradoxal, nem
mesmo o aumento exponencial de conhecimento propiciado por telescópios
espaciais permitiu ainda resolver, entre outros, o enigma da taxa de expansão
do cosmos.
Projeto, construção e lançamento desses
instrumentos, como Hubble (1990) e James Webb (2021), custaram bilhões de
dólares, e 20 anos ou mais separam a concepção do funcionamento.
Sem interferência da atmosfera terrestre e
poluição luminosa, eles observam muito melhor as galáxias longínquas e,
portanto, mais antigas. Assim, a visão humana se dilata pelo espaço e no tempo,
aproximando-se do limiar em que surgiram os primeiros objetos após o Big Bang,
há ancestrais 13,8 bilhões de anos.
Milhões de galáxias foram mapeadas dessa
maneira. Medindo sua distância da Terra e escrutinando corpos peculiares como
estrelas pulsantes, astrofísicos desenvolveram métodos para confirmar previsões
sobre a taxa de expansão do universo, chamada de constante de Hubble.
Pelo modelo padrão da cosmologia, esse valor
seria da ordem de 67-68 km por segundo por megaparsec. Um megaparsec equivale a
3,26 milhões de anos-luz, unidade de medida espacial que indica a distância
percorrida pela luz em um ano (9,5 trilhões de km) —cifras insondáveis para a
dimensão humana, admita-se.
Os dados obtidos com o Hubble, porém, apontam
uma constante entre 70 e 76 km. A desconfiança de que medições do pioneiro
telescópio espacial estivessem erradas foi desfeita pelo Webb, que indicou
números similares.
Isso "confirma a descoberta intrigante
do telescópio espacial Hubble com a qual temos lutado por uma década. O
universo está se expandindo mais rápido do que nossas melhores
teorias podem explicar", disse Adam Riess, Nobel de Física de 2011 e líder
do estudo publicado neste mês no Astrophysical Journal.
Os cientistas suspeitam que a discrepância
decorra de duas entidades misteriosas: a matéria
escura e a energia escura, que compõem 96% do cosmos. Sim, só
conseguimos ver menos de 5% do que existe no universo, e o restante se conhece
somente pelos efeitos que exercem.
Assim procede a ciência, de tropeço em tropeço. Passos gigantescos, como a formulação do modelo padrão da cosmologia, topam com inconsistências reveladas pela observação, que exigem novas teorias para explicá-las —e novos telescópios para alcançar luzes antes insuspeitadas.
O incrível inquérito dos dois mil dias
O Estado de S. Paulo
Não há lugar numa democracia para um
inquérito tão longevo e, ademais, coberto por um sigilo inexplicável como o das
‘fake news’, ora prorrogado por seis meses por Alexandre de Moraes
Pela enésima vez, o ministro Alexandre de
Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), prorrogou por seis meses o chamado
inquérito das fake news, aberto de ofício em 14 de março de 2019 pelo
então presidente do STF, ministro Dias Toffoli, a fim de apurar “fatos e
infrações relativas a notícias fraudulentas (fake news) e ameaças veiculadas na
internet que têm como alvo a Corte, seus ministros e familiares”.
À época, Dias Toffoli afirmou, com razão, que
“não existe Estado Democrático de Direito nem democracia sem um Judiciário
independente e sem uma imprensa livre”. De modo que ataques às instituições
republicanas e ao jornalismo profissional como os perpetrados pelo chamado
“gabinete do ódio” – gangue instalada no seio do governo Jair Bolsonaro para
disseminar desinformação, como revelou o Estadão – são ataques contra
o próprio regime das liberdades. Porém, transcorridos mais de dois mil dias, é
preciso reafirmar que não há lugar no mundo democrático para uma investigação
policial tão longeva e, ademais, coberta pelo manto de um sigilo inexplicável.
A justificativa formal apresentada por Moraes
para conceder mais essa extensão de prazo à Polícia Federal (PF) é a
necessidade de colher o depoimento de mais 20 pessoas, concluir diligências
pendentes e analisar informações recebidas pelas autoridades policiais por meio
da quebra de sigilos fiscal e bancário dos investigados. Ora, se ao longo de
mais de cinco anos essas diligências elementares não foram realizadas, está-se
diante, é forçoso dizer, de incompetência dos investigadores, no cenário mais
benevolente, ou de manipulação política de uma investigação policial que
haveria de ser técnica, no pior.
Até pouco tempo atrás, um suposto incômodo de
alguns ministros do STF com o colega Alexandre de Moraes pela longa duração do
“inquérito do fim do mundo” – como o ex-ministro Marco Aurélio Mello
classificou o inquérito das fake news por seu prolongamento no tempo
e falta de objeto claro – era reportado como uma conversa de bastidor na Corte.
Mas tal é o absurdo da situação hoje que até o presidente do STF, ministro Luís
Roberto Barroso, já verbalizou que a conclusão do inquérito das fake news “está
demorando”, ainda que tenha ponderado que a indefinição sobre o término se dá
não pela condução das investigações, mas sim pela “multiplicação” de fatos a
serem investigados.
Ora, é evidente que em um inquérito tão
aberto como esse tudo haverá de caber, a depender da disposição e da
criatividade de quem o conduz. Basta dizer que uma investigação que começou,
como foi dito, para apurar a disseminação de notícias falsas contra a Corte e
seus ministros já levou à censura de órgãos de imprensa, como a revista Crusoé
e o portal O Antagonista, e à instauração de outros inquéritos no âmbito do
próprio Supremo, como o que apura a ação das chamadas “milícias digitais”,
outra investigação ampla e que parece não ter data para acabar.
Este jornal foi um dos primeiros a
reconhecer, no momento apropriado, que o inquérito das fake news,
considerado plenamente constitucional pelo plenário do STF, cumpriu um valoroso
papel na defesa da instituição e do jornalismo profissional. Graças a essa
investigação, o Estado pôde avançar sobre o funcionamento de uma verdadeira
organização criminosa operando desde o Palácio do Planalto para apagar a linha
divisória entre fatos e mentiras – sem a qual não há debate público racional e,
consequentemente, democracia digna do nome.
Mas aqueles tempos excepcionais já passaram,
para o bem do País. Já é mais do que hora de encerrar esse inquérito, seja
propondo o indiciamento dos indivíduos contra os quais se reuniram indícios de
autoria e materialidade delitiva, seja arquivando as investigações contra quem
nada se pôde provar. Se, ao fim e ao cabo, o objetivo maior do STF e da PF é
salvaguardar o Estado Democrático de Direito no País, é isso o que deve ser
feito, não apenas em nome da coerência, mas em respeito à legislação penal e à
Constituição, que não admitem que o peso do aparato persecutório estatal paire
indefinidamente sobre qualquer cidadão.
Lula faz errado, mas sabe o que faz
O Estado de S. Paulo
A disputa do governo contra o mercado é fruto
de cálculo político e diagnóstico equivocado sobre os erros petistas, deixa
Haddad sozinho e contrata uma ruína econômica para o futuro
Há uma mistura de insensatez, cálculo
político e diagnóstico errado na ruidosa disputa deflagrada pelo governo do
presidente Lula da Silva contra o mercado financeiro, o mundo corporativo e
quem mais acredita em compromisso fiscal – essa regra ao mesmo tempo elementar,
complexa e imprescindível da economia, cujo descumprimento desmorona mandatos e
faz o País pagar caro.
A rinha pública promovida pelo Palácio do
Planalto produziu uma considerável destruição de riqueza, deixou feridas a
serem cicatrizadas na segunda metade do mandato e despertou um debate
intrigante sobre a origem e o efeito da resistência lulopetista. Mas hoje
parece evidente: Lula sabe o que está fazendo ao dobrar a aposta contra o que
ele e seus sabujos do PT definem como “Faria Lima”, hoje o símbolo de uma
suposta conspiração das elites para prejudicar seu governo.
Se Lula o faz é porque acredita que isso lhe
renderá dividendos políticos e eleitorais. Afinal, como se sabe, para o
pensamento petista há algo muito mais importante do que o equilíbrio
macroeconômico: votos. E porque tanto ele quanto o PT nada aprenderam com a
história e com seus erros do passado – não só porque o lulopetismo ignora o
fato de que é o equilíbrio macroeconômico que dá sustentação a qualquer governo
no longo prazo, como também até hoje não compreendeu a origem e as
consequências dos equívocos produzidos pela ex-presidente Dilma Rousseff.
O espírito da insensata queda de braço com o
“mercado” é fruto de um diagnóstico errado daquela época. Até hoje a militância
petista tem a mais plena convicção de que o impeachment de Dilma decorreu de
uma ardilosa união das elites econômicas e políticas, da mídia e do Judiciário
para frear os alegados avanços sociais promovidos pelos governos do PT. Segundo
tal lógica, o erro da então presidente foi promover uma guinada na política
econômica entre o primeiro e o segundo mandatos, quando, reeleita após uma campanha
polarizada na qual acusou os adversários Aécio Neves e Marina Silva de
planejarem um ajuste cruel com os pobres, Dilma escalou Joaquim Levy – um
reconhecido fiscalista – para a Fazenda. Na visão do PT, era uma concessão
indevida ao mercado, que a fragilizou politicamente diante da base do partido e
gerou a ruína econômica.
Trata-se de uma evidente inversão de
raciocínio. A guinada de fato foi oficializada, mas o PT trabalhou para
implodir os planos do ministro, o ajuste fiscal prometido foi feito pela metade
e o resultado tornou-se conhecido: a deterioração fiscal crescente que levou a
um profundo desequilíbrio macroeconômico, a perda contínua de apoios de
diferentes setores do Congresso e da economia, até culminar no caos e no
impeachment de 2016. Dilma deixou o governo com uma crise da qual o Brasil
levou anos para se recuperar.
A lição foi insuficiente porque o enredo está
se repetindo – não com um forasteiro como Levy, mas com um petista de longa
data, Fernando Haddad. A intensa artilharia do partido, com a evidente anuência
de Lula, contra o que deveria ser a agenda econômica do governo deixou o
ministro praticamente sozinho na Esplanada e na inglória tarefa de convencer
investidores de que o governo se preocupa com as contas públicas.
À solidão de Haddad se soma outro problema:
na cosmologia do partido e de Lula, ter um inimigo a quem culpar é o elemento
preferencial para mobilizar militantes e conquistar votos. Inspirado nessa
lógica pedestre, o deputado Zeca Dirceu (PT-PR), por exemplo, galvanizou esse
espírito ao pedir à Polícia Federal (PF) que investigue e puna a “Faria Lima”.
No metaverso do PT, caberia à PF abrir inquérito para identificar responsáveis
pela prática de crimes contra o mercado de valores mobiliários, sobretudo por meio
da manipulação do câmbio.
Eis o delírio petista: as turbulências que
afetaram o mercado nas últimas semanas nada têm a ver com a incapacidade do
governo de convencer os investidores de que leva a sério a necessidade de um
duro ajuste fiscal. Tampouco com a frustração diante das medidas fiscais
anunciadas no início de dezembro. Pois petistas só acreditam num plano fiscal:
culpar o mercado. Um método que pode até fazer a festa da militância, mas, para
a economia, desabona o presente e arruína o futuro.
O fogo avança no Brasil
O Estado de S. Paulo
Área queimada quase dobra em relação a 2023 e
escancara a incompetência para enfrentar incêndios
A área queimada no Brasil chegou a mais de 29
milhões de hectares se contabilizado o período de janeiro a novembro deste ano.
É quase o dobro em relação ao mesmo período de 2023 e a maior extensão desde
2019, segundo o Monitor do Fogo, do projeto MapBiomas. Quase 60% da área
queimada em 2024 fica na Amazônia, com a liderança indesejável do Estado do
Pará – sede da COP-30, no ano que vem – e um patamar inédito de florestas
alagáveis afetadas, acima inclusive das áreas de pastagem. No Cerrado, cresceu
o volume de queimadas em vegetação nativa. O Pantanal não exibe cenário melhor.
Isso significa não só que o Brasil viu 14
milhões de hectares a mais (o equivalente ao Estado do Amapá) sofrerem o
impacto de queimadas, na comparação com o ano passado, como também registrou
duas situações igualmente complexas: tornou anual o que parecia ser um ápice
sazonal e encerrou a tendência histórica que combinava o nível das queimadas
com o ritmo de desmatamento. Até aqui havia um consenso de que a temporada de
incêndios florestais se concentrava entre os meses de agosto e outubro, e que
os incêndios em geral acompanhavam o ritmo de desmatamento. Os dados deste ano
desmontam os dois consensos.
O aumento desproporcional da área queimada,
sobretudo a área de floresta, serve de alerta para a necessidade de o País
conciliar a redução do desmatamento com o controle do uso de fogo, como
sublinhou a coordenadora do MapBiomas, Ane Alencar. Com um problema adicional:
o governo do presidente Lula da Silva vem conseguindo reduzir o desmatamento
com razoável sucesso nos últimos dois anos, sobretudo quando comparado ao
legado de leniência com a destruição deixado pelo antecessor Jair Bolsonaro,
mas se mostrou até aqui incapaz de conter o alastramento do fogo nos principais
biomas. Dentro dos órgãos ambientais, incapacidade ou deficiência de estrutura;
fora deles, letargia e negligência diante dos alertas emitidos.
Fruto da ação humana, intencional ou não, ou
das mudanças climáticas, o fato é que o fogo passou a se incorporar
terrivelmente à paisagem brasileira. É um dano permanente para o solo, a
qualidade dos ecossistemas, a saúde humana e os negócios do País. Não só afeta
a vida nas florestas e nas cidades, como danifica plantações e pastagens,
ampliando custos de produção, reduzindo a oferta de produtos agrícolas,
comprometendo a segurança alimentar e aumentando os preços dos alimentos.
Só isso já seria suficiente para um grande esforço que una governos em todos os níveis e o setor privado para monitoramento contínuo das áreas de risco e resposta rápida a incêndios. O Brasil avançou nesse terreno, mas ainda derrapa nos resultados. Não dá para terceirizar ao bolsonarismo a culpa exclusiva pelo desmonte ambiental nem debitar tudo na conta apenas do crime organizado e das mudanças climáticas. São todos fatores a considerar, incluindo o fato de o Brasil ter enfrentado em 2024 a pior seca da história e o aumento drástico da temperatura. A mão humana, ao mesmo tempo que tem peso considerável no risco de queimadas, é também indispensável para enfrentar igualmente o desmatamento e o controle do fogo.
Paradoxos de um ajuste fiscal
Correio Braziliense
A racionalidade econômica demonstrada pelo
Banco Central na última semana contrasta com as contradições que marcaram a
semana política em Brasília
A última semana útil em Brasília marcou com
clareza a distinção entre política e economia. Enquanto o frágil pacote fiscal
do governo federal aprovado pelo Congresso Nacional deixa dúvidas sobre a
efetividade no equilíbrio das contas públicas, os dirigentes do Banco Central
deram uma diretriz clara de como a autoridade monetária pretende agir nos
próximos meses nestes tempos de dólar a R$ 6.
Na quinta-feira, Gabriel Galípolo e Roberto
Campos Neto reforçaram que, em 2025, não hesitarão em fazer o que for
necessário para reverter a curva ascendente da inflação. Infelizmente, a
medicação será amarga: ao menos duas elevações de mais um ponto percentual na
taxa básica de juros, empurrando-a para o 14,25% ao ano. No mercado de juros
futuros, já se fala abertamente em uma Selic acima de 15% em 2026.
Juntos em coletiva de imprensa, o atual e o
futuro presidente do Banco Central deixaram explícita a mensagem de que a
transição na autarquia ocorre em regime de continuidade. As declarações
conjuntas dos dirigentes do BC e a unanimidade das últimas decisões do Comitê
de Política Monetária reforçam o princípio de que o controle de juros é um
processo gradual, com a adoção de critérios técnicos. É isso que se espera de
uma política pública: clareza e transparência, de modo a afastar dúvida e
desconfiança.
A racionalidade econômica demonstrada pelo
Banco Central contrasta com as contradições que marcaram a semana política em
Brasília. Há paradoxos de toda ordem na tumultuada tramitação do ajuste fiscal
enviado pelo governo federal ao parlamento. A começar pela própria avaliação
dos atores envolvidos no processo. O Congresso reduziu os impactos dos cortes
programados pela proposta do governo em diversos pontos, mas integrantes da
Esplanada — especialmente o ministro da Fazenda, Fernando Haddad — insistem em
afirmar que o pacote não foi desidratado. Outra narrativa que não se sustenta é
a de que o país estaria sob um ataque especulativo — tese derrubada por
economistas de credibilidade, dentre os quais Gabriel Galípolo e Henrique
Meirelles. Diferentemente do que acusam os petistas, o comportamento do dólar
traduz primordialmente a percepção do mercado de que o pacote fiscal do governo
Lula é insuficiente. Ponto.
Causa estranheza também o vídeo do presidente
da República ao lado de Gabriel Galípolo no Palácio da Alvorada. Por lei, o
Banco Central é uma instituição com autonomia para adotar as medidas
necessárias ao cumprimento das metas de inflação. É questionável, portanto, a
presença do representante de um órgão independente em uma agenda claramente do
Executivo. Ademais, não convence Lula afirmar ter "confiança" no
trabalho do novo presidente do BC, quando já é notório que o futuro chefe da
autoridade monetária seguirá linha semelhante à do antecessor, ferozmente
criticado pelo chefe do Planalto nos últimos anos. Galípolo, como exposto
durante a semana, tentará fazer um trabalho técnico, gostem ou não Lula e o PT.
A mensagem do presidente da República sugere muito mais uma suposta proximidade
com o chefe do BC — e, portanto, um inconveniente acesso direto — do que
qualquer retórica, por sinal já manifestada diversas vezes, de que o governo
tem compromisso fiscal.
Como já registrado nesta página, se há alguma certeza para 2025, é de que o equilíbrio das contas públicas continuará a ser uma tarefa dificílima para o governo Lula. E que essa dificuldade tenderá a aumentar em um cenário de inflação acima da meta, juros escorchantes, disfuncionalidades na relação entre governo e Congresso quanto ao manejo de recursos da União e fatores externos desestabilizadores, como a chegada de Donald Trump à Casa Branca. Tudo que o governo Lula puder fazer para tornar o cenário menos nebuloso será bem-vindo.
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