domingo, 22 de dezembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Reforma tributária ainda é uma obra em construção

O Globo

Lula deve sancionar regulamentação sem vetos, pois o próprio texto traz mecanismos de ajuste com o tempo

A regulamentação da reforma tributária no Congresso foi um marco na modernização de um sistema de impostos disfuncional, caótico e arcaico. Mas não esgota o assunto. Trata-se, na verdade, de uma obra em construção. O secretário da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, tem razão ao dizer que houve “um avanço muito grande” em comparação com o que existe no país e que, apesar das inúmeras imperfeições nas regras aprovadas pelos parlamentares, elas são um preço necessário a pagar pela evolução.

Para começar, será uma revolução o contribuinte saber com exatidão quanto imposto paga, não precisar recorrer à esfera administrativa ou à judicial contra cobranças indevidas e se preocupar apenas com dois impostos sobre valor adicionado (IVA), sistema adotado há décadas nos países mais desenvolvidos. Apenas no ICMS, imposto estadual, há 27 regulamentações diferentes, para não falar na barafunda de normas e regras municipais. As empresas economizarão tempo e dinheiro no relacionamento com o Fisco.

Regulamentada a reforma, há um longo caminho até a implantação completa das novas regras tributárias, prevista para 2033. É um período suficiente para corrigir as várias distorções criadas ao longo da aprovação. Sem o número expressivo de exceções à alíquota-padrão incluídas na nova legislação pelo Congresso, a reforma teria provavelmente sido inviável politicamente. Como esperado, grupos de interesse agiram para isentar bens e serviços dos novos impostos. Caberá ao Executivo e ao Legislativo, na implementação do novo sistema, corrigir os desvios.

Pelos cálculos iniciais, o inchaço na lista de exceções aponta para uma alíquota-padrão ao redor de 28%, acima dos 26,5% previstos como teto na própria lei. A valer tudo como foi aprovado, o Brasil teria o maior IVA do mundo. Mas a nova legislação foi feliz ao prever um gatilho que impedirá isso de acontecer. Quando os impostos chegarem a 26,5%, o governo terá de enviar projeto ao Congresso com a finalidade de elevar a taxação de bens e serviços beneficiados, para respeitar o teto da alíquota-padrão.

A principal vantagem dos novos impostos é que, ao diminuir a sonegação e a inadimplência, as alíquotas poderão até ser reduzidas sem que haja perda de arrecadação. Técnicos da Fazenda confiam que a cobrança dos tributos por meio de nota fiscal eletrônica e a divisão automática dos recursos entre as fontes arrecadadoras (conhecida tecnicamente como split payment) ajudarão a fechar o cerco contra sonegadores e fraudadores. A depender da redução da sonegação e das fraudes, a alíquota de referência poderá ser reduzida em 2 a 3 pontos percentuais, segundo projeções do governo.

Outro aspecto relevante será o fim da cobrança cumulativa, que também poderá ajudar a aliviar a carga tributária. O novo sistema facilita o aproveitamento de créditos e estimula toda empresa a pedir nota fiscal, de modo que possa abater os impostos pagos às demais daqueles que recolhe ao Fisco.

O importante agora é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionar a regulamentação sem vetos. Não faz sentido o Executivo alterar o texto de uma reforma que necessita de tempo para ser absorvida. Ela teve a sabedoria de prever mecanismos que garantem seus próprios ajustes no futuro. O Brasil deixará definitivamente para trás uma estrutura tributária obsoleta e iníqua.

Projeto de regulação da IA cria regras demais para tecnologia ainda incerta

O Globo

Regular abusos é necessário, mas é preciso cautela para lei não frear inovação nem ficar logo obsoleta

O Congresso deixou de lado, por pressão das plataformas digitais, o Projeto de Lei das Redes Sociais, que já deveria ter sido aprovado. Paradoxalmente, demonstra mais agilidade ao tratar da inteligência artificial. Os senadores aprovaram um Projeto de Lei (PL) regulamentando o desenvolvimento e uso da IA no Brasil. O projeto, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), seguiu para avaliação da Câmara dos Deputados.

O texto determina regras a ser seguidas por empresas que usarem IA e estabelece como se dará a supervisão delas. Tecnologias classificadas como de alto risco, que podem causar danos, deverão ter regulação mais restrita. Entre elas, o PL inclui concessão de serviços públicos, seleção de estudantes, recrutamento de trabalhadores ou veículos autônomos. Quem desenvolver sistemas com tais finalidades será obrigado a realizar testes de avaliação. A preocupação é evitar discriminação e acidentes. Em caso de dúvidas ou problemas, deverá implementar medidas corretivas. A responsabilidade de regular IAs de alto risco será de um novo organismo do governo, o Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial (SIA).

Atendendo à demanda da opinião pública, o PL proíbe o uso de ferramentas de IA para o poder público avaliar ou classificar cidadãos no acesso a bens e serviços. Armas autônomas e avaliação de risco de cometer crime também são banidas pela legislação. O uso da biometria é permitido somente para capturar fugitivos, cumprir mandados de prisão e para flagrantes de crimes com penas de mais de dois anos de prisão.

Questionados se o país deveria garantir a regulamentação de IA, 50% dos brasileiros responderam que sim, de acordo com pesquisa de opinião feita pelo Instituto Ipsos para a Fundação Luminate. Apenas 19% se disseram contrários, enquanto outros 31% afirmaram ser neutros ou não saber. Quanto mais a população se informa sobre IA, mais defende a regulação. As respostas na Argentina, na Colômbia e no México seguem o mesmo padrão.

O interesse da população pela IA é prova de que o potencial transformador da nova tecnologia é avassalador. Estimular seu uso é um dos caminhos da geração de riqueza e do desenvolvimento, e o Brasil não pode ficar fora dessa corrida. O desafio é regular com sabedoria para manter o direito à liberdade dentro dos parâmetros estabelecidos pelos princípios constitucionais.

Embora o texto de Pacheco tente evitar a omissão cometida com as redes sociais, peca no sentido oposto: estabelece restrições demais para uma tecnologia cujos contornos e impactos ainda estão indefinidos. É verdade que a IA oferece riscos e desperta preocupações, mas criar regras e limites exagerados no atual estágio poderá acabar inibindo seu desenvolvimento ou, pior, impor categorias e disciplinas que rapidamente se tornarão obsoletas diante da realidade.

A conta do almoço grátis chega cedo ou tarde

Folha de S. Paulo

Apenas se abandonar gastança Lula terá condições de concluir seu mandato sem pôr em risco a estabilidade macroeconômica

Chegou a fatura da irresponsabilidade orçamentária de Luiz Inácio Lula da Siva (PT). Ela contém tumulto financeiro, câmbio e juros em cavalgada e inflação rumando para níveis preocupantes.

Para pagá-la, há o caminho organizado e o caótico, a depender da escolha do presidente da República.

No primeiro, minimizam-se custos para a sociedade. O segundo é a rota corrente, que produzirá desastres.

Desde que foi eleito, Lula praticou o ideário, derrotado pela história, de que o progresso decorre da expansão ilimitada do Estado, a teoria do almoço grátis.

A opção pela gastança, escancarada na emenda de transição de governo que expandiu a despesa federal em R$ 150 bilhões, sempre tem fôlego curto. Na sequência colhem-se "mais inflação, juros e endividamento", como alertou, sob severa crítica, esta Folha em dezembro de 2022. Ao final, a receita insustentável acabará por impactar negativamente o emprego.

Para a sorte de Lula, os legisladores que aprovaram a autonomia do Banco Central em 2021 não pensavam como ele. A ação firme da autoridade monetária contra-arrestou a incontinência do Planalto e evitou que a inflação saísse do controle por quase dois anos.

A elevação da Selic não justifica regozijo, mas é melhor que a hiperinflação e seus efeitos devastadores sobre a renda, sobretudo da parcela mais pobre dos brasileiros.

A degradação das perspectivas para a dívida pública chegou a tal ponto, porém, que os instrumentos da autoridade monetária mostram-se insuficientes.

O choque recente nos juros básicos, que os projetou para asfixiantes 14,25% ao ano em março, não estancou a sangria. O dólar e os juros da praça dispararam para alturas imprevistas, disseminando estragos e prejuízos ainda mal contabilizados.

economia caminha para um cavalo de pau se não houver freio de arrumação urgente na política fiscal. A velha artimanha de Lula de acusar um complô de operadores financeiros pela situação terá pouca serventia.

A condição de devedor contumaz do Tesouro Nacional foi acentuada. Sem tomar vultosos e frequentes empréstimos, a máquina pública entra em colapso.

Para a virada de perspectivas, o pacote enfraquecido pelo Congresso não será o bastante. A poupança para impedir o descalabro da dívida requer mecanismos bem mais persistentes e valores muito mais significativos, o que é impossível sem redução de despesas.

Lula ainda pode decidir o desfecho da economia, embora a margem para erros esteja se estreitando.

Encapsular-se na teoria do almoço grátis vai conduzi-lo para um fiasco parecido com o de Dilma Rousseff, o que seria uma pena, pois em quase todos os outros setores o governo atual supera o de Jair Bolsonaro (PL).

Se tiver a coragem para mudar de rumos diante de riscos palpáveis de ruína, o presidente terá condições de concluir seu terceiro mandato sem comprometer a estabilidade macroeconômica, a conquista mais cara à sociedade brasileira nos últimos 30 anos.

Crises na Alemanha e na França desafiam projeto europeu

Folha de S. Paulo

Representando 40% do PIB da UE, países enfrentam tensão na governabilidade e ameaça extremista; volta de Trump preocupa

Quando queria atacar seu rival estratégico na primeira metade do século 19, o czar russo Nicolau 1º chamava o Império Otomano de "o homem doente da Europa". O apelido viria a se consagrar, aplicado aqui e ali nas décadas a seguir.

Poucos poderiam prever, no entanto, que o termo pudesse ser empregado nos dias de hoje em referência não só à Alemanha, a maior economia do continente, mas, por motivos diferentes, também à França.

Os dois países, que concentram 34% da população e 40% do PIB da União Europeia (UE), são a fundação sobre a qual se assenta todo o projeto do bloco, atualmente com 27 integrantes.

A ameaça da ascensão do extremismo de direita é um denominador comum. Com o crescente risco de colapso da política tradicional nos esteios do projeto europeu, o futuro parece nebuloso.

Criada em 1993, a UE foi a culminação de uma engenharia iniciada no pós-guerra em 1951 que visava evitar que alemães e franceses se matassem. A oportunidade foi inundada de dinheiro dos Estados Unidos, interessado em se contrapor ao colosso soviético logo ao lado, e prosperou.

Todo esse arcabouço está vulnerável a um empurrão de outro líder russo, Vladimir Putin. O gás barato da Rússia que abastecia Alemanha e outras nações acabou, dadas as sanções decorrentes da invasão da Ucrânia, e Berlim buscou alternativas caras.

Escolhas erradas de sua indústria-símbolo, a automobilística, e o alto custo da energia enfraqueceram o setor ante a concorrência chinesa. A gigante Volkswagen, que emprega 300 mil pessoas, já anunciou que vai fechar fábricas, no que será seguida por congêneres como a Tesla e a Ford.

Com efeito, o frágil governo do social-democrata Olaf Scholz não se sustenta. O primeiro-ministro antecipou o processo eleitoral para fevereiro em busca de apoio, mas hoje as duas principais forças no país são a oposição de direita clássica dos democatas-cristãos e a extremista de direita Alternativa para Alemanha.

A estabilidade associada ao monólito alemão está em xeque, e o fortalecimento dos extremos, inclusive à esquerda, passa pela mesma questão que afeta a política francesa: a imigração.

Na terra de Emmanuel Macron, uma série de medidas arriscadas do presidente francês para tentar bloquear a ultradireitista Reunião Nacional só enxugou gelo. Após convocar eleições e ser derrotado, indicar um premiê que caiu em apenas três meses e ver o governo paralisado, o líder tenta manquitolar até o fim de seu mandato, em 2027.

Enquanto isso, a insatisfação social cresce no país, com a tensão nos bairros de imigrantes se fundindo à reação dos protegidos agricultores a aberturas como o acordo UE-Mercosul.

Crises de governabilidade nos dois pilares da Europa, mais o elemento mercurial da volta de Donald Trump à Presidência dos EUA, só trazem a certeza de tempos turbulentos à frente.

A inconstância universal da ciência humana

Folha de S. Paulo

Cosmos se expande mais rápido do que diz modelo padrão; assim caminha o conhecimento, aos tropeços para resolver enigmas

Quanto mais perscruta os céus, mais a humanidade percebe que pouco sabe sobre o universo. De modo paradoxal, nem mesmo o aumento exponencial de conhecimento propiciado por telescópios espaciais permitiu ainda resolver, entre outros, o enigma da taxa de expansão do cosmos.

Projeto, construção e lançamento desses instrumentos, como Hubble (1990) e James Webb (2021), custaram bilhões de dólares, e 20 anos ou mais separam a concepção do funcionamento.

Sem interferência da atmosfera terrestre e poluição luminosa, eles observam muito melhor as galáxias longínquas e, portanto, mais antigas. Assim, a visão humana se dilata pelo espaço e no tempo, aproximando-se do limiar em que surgiram os primeiros objetos após o Big Bang, há ancestrais 13,8 bilhões de anos.

Milhões de galáxias foram mapeadas dessa maneira. Medindo sua distância da Terra e escrutinando corpos peculiares como estrelas pulsantes, astrofísicos desenvolveram métodos para confirmar previsões sobre a taxa de expansão do universo, chamada de constante de Hubble.

Pelo modelo padrão da cosmologia, esse valor seria da ordem de 67-68 km por segundo por megaparsec. Um megaparsec equivale a 3,26 milhões de anos-luz, unidade de medida espacial que indica a distância percorrida pela luz em um ano (9,5 trilhões de km) —cifras insondáveis para a dimensão humana, admita-se.

Os dados obtidos com o Hubble, porém, apontam uma constante entre 70 e 76 km. A desconfiança de que medições do pioneiro telescópio espacial estivessem erradas foi desfeita pelo Webb, que indicou números similares.

Isso "confirma a descoberta intrigante do telescópio espacial Hubble com a qual temos lutado por uma década. O universo está se expandindo mais rápido do que nossas melhores teorias podem explicar", disse Adam Riess, Nobel de Física de 2011 e líder do estudo publicado neste mês no Astrophysical Journal.

Os cientistas suspeitam que a discrepância decorra de duas entidades misteriosas: a matéria escura e a energia escura, que compõem 96% do cosmos. Sim, só conseguimos ver menos de 5% do que existe no universo, e o restante se conhece somente pelos efeitos que exercem.

Assim procede a ciência, de tropeço em tropeço. Passos gigantescos, como a formulação do modelo padrão da cosmologia, topam com inconsistências reveladas pela observação, que exigem novas teorias para explicá-las —e novos telescópios para alcançar luzes antes insuspeitadas.

O incrível inquérito dos dois mil dias

O Estado de S. Paulo

Não há lugar numa democracia para um inquérito tão longevo e, ademais, coberto por um sigilo inexplicável como o das ‘fake news’, ora prorrogado por seis meses por Alexandre de Moraes

Pela enésima vez, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), prorrogou por seis meses o chamado inquérito das fake news, aberto de ofício em 14 de março de 2019 pelo então presidente do STF, ministro Dias Toffoli, a fim de apurar “fatos e infrações relativas a notícias fraudulentas (fake news) e ameaças veiculadas na internet que têm como alvo a Corte, seus ministros e familiares”.

À época, Dias Toffoli afirmou, com razão, que “não existe Estado Democrático de Direito nem democracia sem um Judiciário independente e sem uma imprensa livre”. De modo que ataques às instituições republicanas e ao jornalismo profissional como os perpetrados pelo chamado “gabinete do ódio” – gangue instalada no seio do governo Jair Bolsonaro para disseminar desinformação, como revelou o Estadão – são ataques contra o próprio regime das liberdades. Porém, transcorridos mais de dois mil dias, é preciso reafirmar que não há lugar no mundo democrático para uma investigação policial tão longeva e, ademais, coberta pelo manto de um sigilo inexplicável.

A justificativa formal apresentada por Moraes para conceder mais essa extensão de prazo à Polícia Federal (PF) é a necessidade de colher o depoimento de mais 20 pessoas, concluir diligências pendentes e analisar informações recebidas pelas autoridades policiais por meio da quebra de sigilos fiscal e bancário dos investigados. Ora, se ao longo de mais de cinco anos essas diligências elementares não foram realizadas, está-se diante, é forçoso dizer, de incompetência dos investigadores, no cenário mais benevolente, ou de manipulação política de uma investigação policial que haveria de ser técnica, no pior.

Até pouco tempo atrás, um suposto incômodo de alguns ministros do STF com o colega Alexandre de Moraes pela longa duração do “inquérito do fim do mundo” – como o ex-ministro Marco Aurélio Mello classificou o inquérito das fake news por seu prolongamento no tempo e falta de objeto claro – era reportado como uma conversa de bastidor na Corte. Mas tal é o absurdo da situação hoje que até o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, já verbalizou que a conclusão do inquérito das fake news “está demorando”, ainda que tenha ponderado que a indefinição sobre o término se dá não pela condução das investigações, mas sim pela “multiplicação” de fatos a serem investigados.

Ora, é evidente que em um inquérito tão aberto como esse tudo haverá de caber, a depender da disposição e da criatividade de quem o conduz. Basta dizer que uma investigação que começou, como foi dito, para apurar a disseminação de notícias falsas contra a Corte e seus ministros já levou à censura de órgãos de imprensa, como a revista Crusoé e o portal O Antagonista, e à instauração de outros inquéritos no âmbito do próprio Supremo, como o que apura a ação das chamadas “milícias digitais”, outra investigação ampla e que parece não ter data para acabar.

Este jornal foi um dos primeiros a reconhecer, no momento apropriado, que o inquérito das fake news, considerado plenamente constitucional pelo plenário do STF, cumpriu um valoroso papel na defesa da instituição e do jornalismo profissional. Graças a essa investigação, o Estado pôde avançar sobre o funcionamento de uma verdadeira organização criminosa operando desde o Palácio do Planalto para apagar a linha divisória entre fatos e mentiras – sem a qual não há debate público racional e, consequentemente, democracia digna do nome.

Mas aqueles tempos excepcionais já passaram, para o bem do País. Já é mais do que hora de encerrar esse inquérito, seja propondo o indiciamento dos indivíduos contra os quais se reuniram indícios de autoria e materialidade delitiva, seja arquivando as investigações contra quem nada se pôde provar. Se, ao fim e ao cabo, o objetivo maior do STF e da PF é salvaguardar o Estado Democrático de Direito no País, é isso o que deve ser feito, não apenas em nome da coerência, mas em respeito à legislação penal e à Constituição, que não admitem que o peso do aparato persecutório estatal paire indefinidamente sobre qualquer cidadão.

Lula faz errado, mas sabe o que faz

O Estado de S. Paulo

A disputa do governo contra o mercado é fruto de cálculo político e diagnóstico equivocado sobre os erros petistas, deixa Haddad sozinho e contrata uma ruína econômica para o futuro

Há uma mistura de insensatez, cálculo político e diagnóstico errado na ruidosa disputa deflagrada pelo governo do presidente Lula da Silva contra o mercado financeiro, o mundo corporativo e quem mais acredita em compromisso fiscal – essa regra ao mesmo tempo elementar, complexa e imprescindível da economia, cujo descumprimento desmorona mandatos e faz o País pagar caro.

A rinha pública promovida pelo Palácio do Planalto produziu uma considerável destruição de riqueza, deixou feridas a serem cicatrizadas na segunda metade do mandato e despertou um debate intrigante sobre a origem e o efeito da resistência lulopetista. Mas hoje parece evidente: Lula sabe o que está fazendo ao dobrar a aposta contra o que ele e seus sabujos do PT definem como “Faria Lima”, hoje o símbolo de uma suposta conspiração das elites para prejudicar seu governo.

Se Lula o faz é porque acredita que isso lhe renderá dividendos políticos e eleitorais. Afinal, como se sabe, para o pensamento petista há algo muito mais importante do que o equilíbrio macroeconômico: votos. E porque tanto ele quanto o PT nada aprenderam com a história e com seus erros do passado – não só porque o lulopetismo ignora o fato de que é o equilíbrio macroeconômico que dá sustentação a qualquer governo no longo prazo, como também até hoje não compreendeu a origem e as consequências dos equívocos produzidos pela ex-presidente Dilma Rousseff.

O espírito da insensata queda de braço com o “mercado” é fruto de um diagnóstico errado daquela época. Até hoje a militância petista tem a mais plena convicção de que o impeachment de Dilma decorreu de uma ardilosa união das elites econômicas e políticas, da mídia e do Judiciário para frear os alegados avanços sociais promovidos pelos governos do PT. Segundo tal lógica, o erro da então presidente foi promover uma guinada na política econômica entre o primeiro e o segundo mandatos, quando, reeleita após uma campanha polarizada na qual acusou os adversários Aécio Neves e Marina Silva de planejarem um ajuste cruel com os pobres, Dilma escalou Joaquim Levy – um reconhecido fiscalista – para a Fazenda. Na visão do PT, era uma concessão indevida ao mercado, que a fragilizou politicamente diante da base do partido e gerou a ruína econômica.

Trata-se de uma evidente inversão de raciocínio. A guinada de fato foi oficializada, mas o PT trabalhou para implodir os planos do ministro, o ajuste fiscal prometido foi feito pela metade e o resultado tornou-se conhecido: a deterioração fiscal crescente que levou a um profundo desequilíbrio macroeconômico, a perda contínua de apoios de diferentes setores do Congresso e da economia, até culminar no caos e no impeachment de 2016. Dilma deixou o governo com uma crise da qual o Brasil levou anos para se recuperar.

A lição foi insuficiente porque o enredo está se repetindo – não com um forasteiro como Levy, mas com um petista de longa data, Fernando Haddad. A intensa artilharia do partido, com a evidente anuência de Lula, contra o que deveria ser a agenda econômica do governo deixou o ministro praticamente sozinho na Esplanada e na inglória tarefa de convencer investidores de que o governo se preocupa com as contas públicas.

À solidão de Haddad se soma outro problema: na cosmologia do partido e de Lula, ter um inimigo a quem culpar é o elemento preferencial para mobilizar militantes e conquistar votos. Inspirado nessa lógica pedestre, o deputado Zeca Dirceu (PT-PR), por exemplo, galvanizou esse espírito ao pedir à Polícia Federal (PF) que investigue e puna a “Faria Lima”. No metaverso do PT, caberia à PF abrir inquérito para identificar responsáveis pela prática de crimes contra o mercado de valores mobiliários, sobretudo por meio da manipulação do câmbio.

Eis o delírio petista: as turbulências que afetaram o mercado nas últimas semanas nada têm a ver com a incapacidade do governo de convencer os investidores de que leva a sério a necessidade de um duro ajuste fiscal. Tampouco com a frustração diante das medidas fiscais anunciadas no início de dezembro. Pois petistas só acreditam num plano fiscal: culpar o mercado. Um método que pode até fazer a festa da militância, mas, para a economia, desabona o presente e arruína o futuro.

O fogo avança no Brasil

O Estado de S. Paulo

Área queimada quase dobra em relação a 2023 e escancara a incompetência para enfrentar incêndios

A área queimada no Brasil chegou a mais de 29 milhões de hectares se contabilizado o período de janeiro a novembro deste ano. É quase o dobro em relação ao mesmo período de 2023 e a maior extensão desde 2019, segundo o Monitor do Fogo, do projeto MapBiomas. Quase 60% da área queimada em 2024 fica na Amazônia, com a liderança indesejável do Estado do Pará – sede da COP-30, no ano que vem – e um patamar inédito de florestas alagáveis afetadas, acima inclusive das áreas de pastagem. No Cerrado, cresceu o volume de queimadas em vegetação nativa. O Pantanal não exibe cenário melhor.

Isso significa não só que o Brasil viu 14 milhões de hectares a mais (o equivalente ao Estado do Amapá) sofrerem o impacto de queimadas, na comparação com o ano passado, como também registrou duas situações igualmente complexas: tornou anual o que parecia ser um ápice sazonal e encerrou a tendência histórica que combinava o nível das queimadas com o ritmo de desmatamento. Até aqui havia um consenso de que a temporada de incêndios florestais se concentrava entre os meses de agosto e outubro, e que os incêndios em geral acompanhavam o ritmo de desmatamento. Os dados deste ano desmontam os dois consensos.

O aumento desproporcional da área queimada, sobretudo a área de floresta, serve de alerta para a necessidade de o País conciliar a redução do desmatamento com o controle do uso de fogo, como sublinhou a coordenadora do MapBiomas, Ane Alencar. Com um problema adicional: o governo do presidente Lula da Silva vem conseguindo reduzir o desmatamento com razoável sucesso nos últimos dois anos, sobretudo quando comparado ao legado de leniência com a destruição deixado pelo antecessor Jair Bolsonaro, mas se mostrou até aqui incapaz de conter o alastramento do fogo nos principais biomas. Dentro dos órgãos ambientais, incapacidade ou deficiência de estrutura; fora deles, letargia e negligência diante dos alertas emitidos.

Fruto da ação humana, intencional ou não, ou das mudanças climáticas, o fato é que o fogo passou a se incorporar terrivelmente à paisagem brasileira. É um dano permanente para o solo, a qualidade dos ecossistemas, a saúde humana e os negócios do País. Não só afeta a vida nas florestas e nas cidades, como danifica plantações e pastagens, ampliando custos de produção, reduzindo a oferta de produtos agrícolas, comprometendo a segurança alimentar e aumentando os preços dos alimentos.

Só isso já seria suficiente para um grande esforço que una governos em todos os níveis e o setor privado para monitoramento contínuo das áreas de risco e resposta rápida a incêndios. O Brasil avançou nesse terreno, mas ainda derrapa nos resultados. Não dá para terceirizar ao bolsonarismo a culpa exclusiva pelo desmonte ambiental nem debitar tudo na conta apenas do crime organizado e das mudanças climáticas. São todos fatores a considerar, incluindo o fato de o Brasil ter enfrentado em 2024 a pior seca da história e o aumento drástico da temperatura. A mão humana, ao mesmo tempo que tem peso considerável no risco de queimadas, é também indispensável para enfrentar igualmente o desmatamento e o controle do fogo.

Paradoxos de um ajuste fiscal

Correio Braziliense

A racionalidade econômica demonstrada pelo Banco Central na última semana contrasta com as contradições que marcaram a semana política em Brasília

A última semana útil em Brasília marcou com clareza a distinção entre política e economia. Enquanto o frágil pacote fiscal do governo federal aprovado pelo Congresso Nacional deixa dúvidas sobre a efetividade no equilíbrio das contas públicas, os dirigentes do Banco Central deram uma diretriz clara de como a autoridade monetária pretende agir nos próximos meses nestes tempos de dólar a R$ 6. 

Na quinta-feira, Gabriel Galípolo e Roberto Campos Neto reforçaram que, em 2025, não hesitarão em fazer o que for necessário para reverter a curva ascendente da inflação. Infelizmente, a medicação será amarga: ao menos duas elevações de mais um ponto percentual na taxa básica de juros, empurrando-a para o 14,25% ao ano. No mercado de juros futuros, já se fala abertamente em uma Selic acima de 15% em 2026.

Juntos em coletiva de imprensa, o atual e o futuro presidente do Banco Central deixaram explícita a mensagem de que a transição na autarquia ocorre em regime de continuidade. As declarações conjuntas dos dirigentes do BC e a unanimidade das últimas decisões do Comitê de Política Monetária reforçam o princípio de que o controle de juros é um processo gradual, com a adoção de critérios técnicos. É isso que se espera de uma política pública: clareza e transparência, de modo a afastar dúvida e desconfiança. 

A racionalidade econômica demonstrada pelo Banco Central contrasta com as contradições que marcaram a semana política em Brasília. Há paradoxos de toda ordem na tumultuada tramitação do ajuste fiscal enviado pelo governo federal ao parlamento. A começar pela própria avaliação dos atores envolvidos no processo. O Congresso reduziu os impactos dos cortes programados pela proposta do governo em diversos pontos, mas integrantes da Esplanada — especialmente o ministro da Fazenda, Fernando Haddad — insistem em afirmar que o pacote não foi desidratado. Outra narrativa que não se sustenta é a de que o país estaria sob um ataque especulativo — tese derrubada por economistas de credibilidade, dentre os quais Gabriel Galípolo e Henrique Meirelles. Diferentemente do que acusam os petistas, o comportamento do dólar traduz primordialmente a percepção do mercado de que o pacote fiscal do governo Lula é insuficiente. Ponto.

Causa estranheza também o vídeo do presidente da República ao lado de Gabriel Galípolo no Palácio da Alvorada. Por lei, o Banco Central é uma instituição com autonomia para adotar as medidas necessárias ao cumprimento das metas de inflação. É questionável, portanto, a presença do representante de um órgão independente em uma agenda claramente do Executivo. Ademais, não convence Lula afirmar ter "confiança" no trabalho do novo presidente do BC, quando já é notório que o futuro chefe da autoridade monetária seguirá linha semelhante à do antecessor, ferozmente criticado pelo chefe do Planalto nos últimos anos. Galípolo, como exposto durante a semana, tentará fazer um trabalho técnico, gostem ou não Lula e o PT. A mensagem do presidente da República sugere muito mais uma suposta proximidade com o chefe do BC — e, portanto, um inconveniente acesso direto — do que qualquer retórica, por sinal já manifestada diversas vezes, de que o governo tem compromisso fiscal. 

Como já registrado nesta página, se há alguma certeza para 2025, é de que o equilíbrio das contas públicas continuará a ser uma tarefa dificílima para o governo Lula. E que essa dificuldade tenderá a aumentar em um cenário de inflação acima da meta, juros escorchantes, disfuncionalidades na relação entre governo e Congresso quanto ao manejo de recursos da União e fatores externos desestabilizadores, como a chegada de Donald Trump à Casa Branca. Tudo que o governo Lula puder fazer para tornar o cenário menos nebuloso será bem-vindo.

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