sábado, 4 de janeiro de 2025

A Frente Democrática ainda está aqui - Vagner Gomes de Souza*

Dedicado a Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna (1943 – 2024) in memorian.

Nos idos dos finais dos anos 70 o saudoso Luiz Werneck Vianna debatia sobre os caminhos da oposição a Ditadura Militar no Teatro Casa Grande (RJ) numa mesa ocupada pelo atual presidente da República. Lá pelas tantas, houve uma grata polêmica entre ambos, pois Lula de forma a tentar denunciar a modernização conservadora brasileira coroada em Vargas afirmou que o “AI 5 do trabalhador era a CLT”. Werneck Vianna, que já tinha lançado a primeira edição do clássico Liberalismo e Sindicato no Brasil (1976), rebateu ao ser firme em afirmar que o AI 5 do trabalhador era o AI 5.

Essa lembrança histórica sobre as origens do debate com o sindicalismo de resultados pautado pelos interesses sociais que emergia nos anos 70 em muitas frentes sociais recoloca a necessidade de uma moderação da “Grande Política” ao se debater temas relativos a República e a Democracia. Muito se deve perceber sobre os processos de transição em oposição a revolução que poderíamos classificar como a origem da “Revolução das Batalhas Identitárias”.

A gestação desse cenário nas entranhas da Ditadura Militar (1964 – 1985) nos faz persistir no questionamento da leitura de interpretações que se “rebelam” com os temas universais como se fosse estar a ceder espaço para os valores burgueses. Relembremos também de Werneck Vianna que

“Trata-se de dirigir a institucionalidade do político, redefinindo-se sua forma de articulação na formação econômico-social, e de um modo tal que as forças sociais e políticas emergentes com a transição encontrem canais legítimos de participação e de regulação de seus conflitos. Transição que depende da natureza do processo objetivo que a informa – sempre variável –, condições de fortuna sobre as quais vai incidir a virtú do sujeito na transição, de cuja ação inteligente se tem ou não o resultado esperado: a transição política que, nessa vertente, deve continuar com uma institucionalização liberal-democrática.” (VIANNA, p. 25)

Os ensinamentos de Tocqueville sobre a dicotomia entre o mundo da liberdade e o mundo da igualdade no contexto daquilo que podemos compreender como “americanização da sociedade” se fez sentir no país na interpretação dos intelectuais sobre o Brasil. Uma sequência de interpretações negativas sobre o problema da formação do Estado burguês em nosso país se tem verificado em muitos segmentos da academia e entram em “choque” com a raiz do individualismo ultraliberal em suas sedimentações passivas do passado.

Alguns interpretes da história de nossa formação nacional fazem uma leitura da filosofia política distante de Maquiavel ou Hegel como se fosse uma postura de redenção de nossa origem marcada pelo colonialismo. Desconhecer ou repudiar que a formação das instituições antecedeu a sociedade.  Não se atentam que a consideração de Caio Prado Júnior nos insere numa universalidade do debate sobre a modernidade; pois, na verdade, estariam a dialogar ou com um viés do “populismo russo” ou num fortuito “desenvolvimento desigual combinado”.

Todavia, nos dizeres do pioneiro do pensamento periférico no Brasil

“Realmente a colonização portuguesa na América não é um fato isolado, a aventura sem precedente e sem seguimento de uma determinada nação empreendedora; ou mesmo uma ordem de acontecimentos, paralela a outras semelhantes, mas independente delas. É apenas a parte de um todo, incompleto sem a visão deste todo. Incompleto que se disfarça muitas vezes sob noções que damos como claras e que dispensam explicações; mas que não resultam na verdade senão de hábitos viciados de pensamento. Estamos tão acostumados em nos ocupar com o fato da colonização brasileira, que a iniciativa dela, os motivos que a inspiraram e determinaram, os rumos que tomou em virtude daqueles impulsos iniciais, se perdem de vista. (...)” (PRADO JÚNIOR, pp. 14-15. Grifos nossos.)


Consequentemente, no filme Ainda estou aqui (2024) nos permite um reencontro com o mundo ao fazer uma abordagem sobre a Democracia em tempos de questionamento das instituições. Esse questionamento das instituições ganha uma variedade de roupagens em uma sequência de críticas negativas ao filme. Em primeiro lugar, há um “mal estar” não declarado que Walter Salles Junior conquistou o público brasileiro de diversas gerações e até posicionamentos políticos porque não se deixou cair na “amardilha” da polarização política que observamos em Marighella (2019).As armas da resistência e da reparação se fazem com o sorriso como nos fez recordar o sucesso das linhas de Henfil que ilustrou a camiseta da Anistia na luta institucional contra a Ditadura. Negam o acerto de uma solução negociada para a democratização ao mencionar a ausência do encarceramento dos torturadores e suas mandantes no processo de transição uma vez que se veem dentro de “bolhas interpretativas”. Não reconhecem que o impacto do filme entre os jovens, que tiveram o ensino de História fraturado nas últimas décadas, é um fator positivo uma vez que a gravidade é reconhecer que uma geração nada sabia sobre Rubens e Eunice Paiva em 39 anos de “Nova República”. Nos campi universitários muitos jovens mencionam Fanon sem saber quem foi Nilse da Silveira.

Não há uma vida sem a dialética, ou seja, as contradições nos fazem mover em sociedade. O filme não fugiu desses temas que lhe conferem grande dramaticidade. A partir desse viés interpretativo a “luta de classes” doméstica está presente no vigoroso roteiro adaptado do filme que tem como foco uma personagem mulher que vivia as preocupações comuns da classe média da época. Foi essa mulher estudar e se destacou como defensora dos povos originários de nosso país. Está no filme e não mencionar esse ponto é um deslize de algumas “críticas ácidas” que se incomodam com a origem familiar do diretor. Imagine o que escreveriam sobre os livros de Friedrich Engels que tinha um hobby de caçar raposas.

Seria interessante perceber que muitas contradições fazem parte do universo da dramaturgia para que os leitores e espectadores façam sua reflexão. Lembremo-nos dos diálogos entre o pai grevista e o filho “fura greve” em Eles não usam Black-tie, mas na adaptação cinematográfica nos ficou a memória da Romana (Fernanda Montenegro) separando os melhores grãos para cozinhar o feijão. Esse foi o incômodo do espectador do filme de 1981 numa cena silenciosa em semelhança com a cena final do filme de 2024.

Na literatura nacional a morte da cachorra Baleia em Vidas Secas de Graciliano Ramos nos ajuda em muito a pensar a cena do atropelamento de Pimpão no filme Ainda estou aqui. Os anos 70 eram tempos de migração política, pois a Democracia era a nossa sede. O escritor alagoano, que diziam ser muito introspectivo, deve ter visto o sorriso sobre outra dimensão no tempo de estadia com o Barão de Itararé no presídio da Ilha Grande nos tempos do Estado Novo. O tímido teve que aprender a sorrir para resistir. Mas lembremos da cena de Prestes no filme Olga (2004) no comício de apoio a unidade nacional a Vargas em que recebe a notícia da morte de sua primeira esposa. Silêncio por alguns instantes e seguimos a linha ziguezagueante de nossa história política.

Fazer uma política de Frente Democrática é um gesto de cozinhar o feijão para os moradores das periferias do mundo. Aqueles que se revestem de uma linha sectária interpretativa podem ficar a mencionar os desvios em uma “patrulha ideológica”. Mas, são as forças do mundo da igualdade que desejam impor uma soberania que quebre os caminhos institucionais da política. Entretanto, o legado da transição está ainda aqui que é a Carta de 1988 (promulgada no centenário da grande revolução passiva brasileira que foi a Abolição da Escravidão). Os setores que criticam o dia 13 de maio de 1888 pela ausência de uma pureza social devem ser os mesmos que não reconhecem a força do compromisso histórico que está no filme estrelado por Selton Mello e Fernanda Torres.

*Doutorando em Ciência Política no PPGCP-UNIRIO e graduado em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). Leciona na rede pública de ensino do Rio de Janeiro no bairro de Campo Grande (RJ).

Referências bibliográficas:

PRADO JÚNIOR, Caio – Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1961 (6ª Edição).

VIANNA, Luiz Werneck – Travessia: Da abertura à Constituinte. Rio de Janeiro: Livraria Taurus Editora, 1986.

 

Nenhum comentário: