Dedicado a Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna (1943 – 2024) in memorian.
Nos idos dos finais dos anos 70 o
saudoso Luiz Werneck Vianna debatia sobre os caminhos da oposição a Ditadura
Militar no Teatro Casa Grande (RJ) numa mesa ocupada pelo atual presidente da
República. Lá pelas tantas, houve uma grata polêmica entre ambos, pois Lula de
forma a tentar denunciar a modernização conservadora brasileira coroada em
Vargas afirmou que o “AI 5 do trabalhador era a CLT”. Werneck Vianna, que já
tinha lançado a primeira edição do clássico Liberalismo
e Sindicato no Brasil (1976), rebateu
ao ser firme em afirmar que o AI 5 do trabalhador era o AI 5.
Essa lembrança histórica sobre as origens do debate com o sindicalismo de resultados pautado pelos interesses sociais que emergia nos anos 70 em muitas frentes sociais recoloca a necessidade de uma moderação da “Grande Política” ao se debater temas relativos a República e a Democracia. Muito se deve perceber sobre os processos de transição em oposição a revolução que poderíamos classificar como a origem da “Revolução das Batalhas Identitárias”.
A gestação desse cenário nas entranhas
da Ditadura Militar (1964 – 1985) nos faz persistir no questionamento da
leitura de interpretações que se “rebelam” com os temas universais como se
fosse estar a ceder espaço para os valores burgueses. Relembremos também de
Werneck Vianna que
“Trata-se de dirigir a
institucionalidade do político, redefinindo-se sua forma de articulação na
formação econômico-social, e de um modo tal que as forças sociais e políticas
emergentes com a transição encontrem canais legítimos de participação e de regulação
de seus conflitos. Transição que depende da natureza do processo objetivo que a
informa – sempre variável –, condições de fortuna
sobre as quais vai incidir a virtú do
sujeito na transição, de cuja ação inteligente se tem ou não o resultado
esperado: a transição política que, nessa vertente, deve continuar com uma
institucionalização liberal-democrática.” (VIANNA, p. 25)
Os ensinamentos de Tocqueville sobre a
dicotomia entre o mundo da liberdade e o mundo da igualdade no contexto daquilo
que podemos compreender como “americanização da sociedade” se fez sentir no
país na interpretação dos intelectuais sobre o Brasil. Uma sequência de
interpretações negativas sobre o problema da formação do Estado burguês em
nosso país se tem verificado em muitos segmentos da academia e entram em
“choque” com a raiz do individualismo ultraliberal em suas sedimentações
passivas do passado.
Alguns interpretes da história de nossa
formação nacional fazem uma leitura da filosofia política distante de Maquiavel
ou Hegel como se fosse uma postura de redenção de nossa origem marcada pelo
colonialismo. Desconhecer ou repudiar que a formação das instituições antecedeu
a sociedade. Não se atentam que a
consideração de Caio Prado Júnior nos insere numa universalidade do debate
sobre a modernidade; pois, na verdade, estariam a dialogar ou com um viés do
“populismo russo” ou num fortuito “desenvolvimento desigual combinado”.
Todavia, nos dizeres do pioneiro do pensamento periférico no Brasil
“Realmente a colonização portuguesa na América não é um fato isolado, a aventura sem precedente e sem seguimento de uma determinada nação empreendedora; ou mesmo uma ordem de acontecimentos, paralela a outras semelhantes, mas independente delas. É apenas a parte de um todo, incompleto sem a visão deste todo. Incompleto que se disfarça muitas vezes sob noções que damos como claras e que dispensam explicações; mas que não resultam na verdade senão de hábitos viciados de pensamento. Estamos tão acostumados em nos ocupar com o fato da colonização brasileira, que a iniciativa dela, os motivos que a inspiraram e determinaram, os rumos que tomou em virtude daqueles impulsos iniciais, se perdem de vista. (...)” (PRADO JÚNIOR, pp. 14-15. Grifos nossos.)
Consequentemente, no filme Ainda estou aqui (2024) nos permite um
reencontro com o mundo ao fazer uma abordagem sobre a Democracia em tempos de
questionamento das instituições. Esse questionamento das instituições ganha uma
variedade de roupagens em uma sequência de críticas negativas ao filme. Em
primeiro lugar, há um “mal estar” não declarado que Walter Salles Junior
conquistou o público brasileiro de diversas gerações e até posicionamentos
políticos porque não se deixou cair na “amardilha” da polarização política que
observamos em Marighella (2019).As armas da resistência e da reparação
se fazem com o sorriso como nos fez recordar o sucesso das linhas de Henfil que
ilustrou a camiseta da Anistia na luta institucional contra a Ditadura. Negam o
acerto de uma solução negociada para a democratização ao mencionar a ausência
do encarceramento dos torturadores e suas mandantes no processo de transição
uma vez que se veem dentro de “bolhas interpretativas”. Não reconhecem que o
impacto do filme entre os jovens, que tiveram o ensino de História fraturado
nas últimas décadas, é um fator positivo uma vez que a gravidade é reconhecer
que uma geração nada sabia sobre Rubens e Eunice Paiva em 39 anos de “Nova
República”. Nos campi universitários muitos jovens mencionam Fanon sem saber
quem foi Nilse da Silveira.
Não há uma vida sem a dialética, ou
seja, as contradições nos fazem mover em sociedade. O filme não fugiu desses
temas que lhe conferem grande dramaticidade. A partir desse viés interpretativo
a “luta de classes” doméstica está presente no vigoroso roteiro adaptado do
filme que tem como foco uma personagem mulher que vivia as preocupações comuns
da classe média da época. Foi essa mulher estudar e se destacou como defensora
dos povos originários de nosso país. Está no filme e não mencionar esse ponto é
um deslize de algumas “críticas ácidas” que se incomodam com a origem familiar
do diretor. Imagine o que escreveriam sobre os livros de Friedrich Engels que
tinha um hobby de caçar raposas.
Seria interessante perceber que muitas
contradições fazem parte do universo da dramaturgia para que os leitores e
espectadores façam sua reflexão. Lembremo-nos dos diálogos entre o pai grevista
e o filho “fura greve” em Eles não usam
Black-tie, mas na adaptação cinematográfica nos ficou a memória da Romana
(Fernanda Montenegro) separando os melhores grãos para cozinhar o feijão. Esse
foi o incômodo do espectador do filme de 1981 numa cena silenciosa em
semelhança com a cena final do filme de 2024.
Na literatura nacional a morte da
cachorra Baleia em Vidas Secas de
Graciliano Ramos nos ajuda em muito a pensar a cena do atropelamento de Pimpão
no filme Ainda estou aqui. Os anos 70
eram tempos de migração política, pois a Democracia era a nossa sede. O
escritor alagoano, que diziam ser muito introspectivo, deve ter visto o sorriso
sobre outra dimensão no tempo de estadia com o Barão de Itararé no presídio da
Ilha Grande nos tempos do Estado Novo. O tímido teve que aprender a sorrir para
resistir. Mas lembremos da cena de Prestes no filme Olga (2004) no comício de apoio a unidade nacional a Vargas em que
recebe a notícia da morte de sua primeira esposa. Silêncio por alguns instantes
e seguimos a linha ziguezagueante de nossa história política.
Fazer uma política de Frente
Democrática é um gesto de cozinhar o feijão para os moradores das periferias do
mundo. Aqueles que se revestem de uma linha sectária interpretativa podem ficar
a mencionar os desvios em uma “patrulha ideológica”. Mas, são as forças do
mundo da igualdade que desejam impor uma soberania que quebre os caminhos
institucionais da política. Entretanto, o legado da transição está ainda aqui
que é a Carta de 1988 (promulgada no centenário da grande revolução passiva brasileira
que foi a Abolição da Escravidão). Os setores que criticam o dia 13 de maio de
1888 pela ausência de uma pureza social devem ser os mesmos que não reconhecem
a força do compromisso histórico que está no filme estrelado por Selton Mello e
Fernanda Torres.
*Doutorando
em Ciência Política no PPGCP-UNIRIO e graduado em História na Universidade
Federal Fluminense (UFF). Leciona na rede pública de ensino do Rio de Janeiro
no bairro de Campo Grande (RJ).
Referências bibliográficas:
PRADO
JÚNIOR, Caio – Formação do Brasil
Contemporâneo: colônia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1961 (6ª Edição).
VIANNA,
Luiz Werneck – Travessia: Da abertura à
Constituinte. Rio de Janeiro: Livraria Taurus Editora, 1986.
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