Folha de S. Paulo
Aprendizado com vozes surgidas da revolução
tecnológica é enorme, mas há riscos aos valores do Estado de Direito
Em princípio, não há nada de mal em se
defender uma ideia, por pior que seja. E a sociedade ganha com a divergência. O
problema é que palavras podem levar a ações. E se essas ações levarem a
resultados desastrosos (golpe de Estado, mortes
na pandemia), há um bom motivo para cercear as palavras que incitam a elas,
especialmente se o fazem com mentiras.
Não existe o direito de gritar “bomba!” num
avião lotado, e quem o fizer lidará com as consequências. A discussão sobre o
que é a “verdade” permite voos filosóficos infinitos, mas um Estado funcional
precisa ter critérios práticos que o permitam fazer a distinção no dia a dia,
inclusive para enquadrar algum discurso
como mentiroso e perigoso.
Há sempre o risco de alargar demais essa categoria, mas nem por isso o Estado pode abrir mão de cercear alguns tipos de uso da linguagem, como, aliás, todos —inclusive os mais liberais— fazem. Assim, me parece um exagero declarar a morte da liberdade de expressão face às recentes decisões de STF e TSE.
Outro nível desse debate se dá na imprensa:
a quem deve ser dado espaço para falar? Essa discussão surgiu com tudo na Folha com a volta
de Leandro Narloch para o time de colunistas.
Considero irresponsável alimentar
o ceticismo ambiental hoje em dia, haja vista os danos que mudanças
climáticas já causam ao Brasil e que tendem a piorar. Contudo, é inegável que
esse tipo de pensamento é forte no Brasil —talvez venha ganhando força.
Além disso, esse discurso não irá embora
mesmo se for limado da impresa. Isso valia antes da internet. Na incapacidade
de chegar ao público, o autor banido da mídia procuraria algo melhor a fazer. O
sonho de asfixiar a opinião discordante por falta de público sempre teve um quê
de autoritarismo, mas era, em tese, possível. Hoje não é mais.
Considerem o exemplo paradigmático de Olavo
de Carvalho. Ao longo dos anos 1990 e 2000, ele foi desligado (ou se
desligou) de cada publicação que o tinha como colunista: Época, O Globo, etc.
Ficou só na internet e logo criou seus perfis nas redes sociais. Nem no Brasil
morava. Sua influência na cultura brasileira foi menor por conta disso?
Pelo contrário: longe do debate público
formal, o alcance de Olavo cresceu, sua imagem de outsider foi trabalhada e ele
“formou” centenas de milhares de pessoas, que por sua vez influenciaram
milhões. Talvez ele tenha até radicalizado ainda mais do que faria sob o olhar
crítico da imprensa.
A imprensa não tem mais o poder de pautar o
debate nacional. Ela participa dele, pode influenciá-lo, mas não define quem
irá falar. Isso significa que não há escapatória: os dissidentes (que podem ser
bons ou maus) encontrarão espaço para crescer.
Pensando assim, é bom ter as vozes mais
inteligentes e que dialogam com os campos mais distantes engajados na conversa.
Narloch traz argumentos baseados em dados. Não opera num mundo paralelo de
negação dura da ciência e de teorias da conspiração. Por fim, até mesmo a
dissidência equivocada por vezes corrige e aprimora a tese dominante, que hoje
precisa persuadir e não mais apenas se afirmar.
Em ambos os casos que citei aqui —pessoas
processadas pelo uso da palavra e formadores de opinião dissidentes tendo seu
espaço questionado— o mesmo pano de fundo está dado: os limites da liberdade de
expressão se transformam à luz de uma revolução tecnológica que mudou a maneira
como nos comunicamos, dando um poder inédito a todo cidadão munido de um
celular. O aprendizado com as novas vozes que podem surgir daí é enorme, mas os
riscos à estabilidade e aos valores comuns necessários a um Estado democrático
de Direito também.
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