sábado, 11 de dezembro de 2021

Carlos Alberto Sardenberg - Garantia de impunidade

O Globo

Não foi apenas a Lava-Jato de Curitiba que colocou e manteve em ação o combate à corrupção. Havia um ambiente de intolerância com a roubalheira do dinheiro público, ao mesmo tempo causa e consequência do mensalão e do petrolão. Esse ambiente envolveu a sociedade e, daí, diversos níveis do Judiciário e da política.

Foi nesse clima que tramitaram no Congresso três propostas de emenda constitucional (PECs) cujo objetivo era criar instrumentos legais mais adequados ao combate à corrupção. Mas deram no contrário.

A PEC da Improbidade Administrativa — que definia crimes e punições para o mau uso do dinheiro público — tornou-se conhecida, apropriadamente, como a PEC da Impunidade. Dificultou ao máximo a responsabilização dos agentes públicos.

Outras duas PECs dormem nas gavetas congressuais: uma coloca na Constituição a prisão para condenados em sentença de segunda instância; outra limita o foro privilegiado de milhares de políticos e servidores públicos.

No Judiciário, promotores e juízes, inclusive das instâncias superiores, aplicavam, corretamente, o rigor necessário aos casos de corrupção. Hoje, especialmente nos tribunais lá de cima, o movimento é o contrário: livrar todos, não por serem inocentes, mas por argumentos processuais.

O caso mais recente beneficiou o ex-deputado Eduardo Cunha, que havia sido condenado pela 10ª Vara Federal de Brasília a 24 anos de prisão por corrupção. Havia provas abundantes, como o rastreamento de pagamentos feitos no exterior. Nada disso foi levado em consideração.

A Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região entendeu o seguinte: como a denúncia também tratava de crimes eleitorais, o caso deveria ter tramitado na Justiça Eleitoral. Solução: anula-se tudo e manda-se para um tribunal eleitoral recomeçar tudo — estando claro que simplesmente vai parar ou prescrever.

Em setembro, Cunha havia sido beneficiado pela Segunda Turma do STF no mesmo procedimento. Não se consideraram provas, mas que o caso tramitara no tribunal errado. Tudo anulado e a caminho da prescrição.

Como no caso do triplex do Guarujá. As sentenças que condenaram Lula em primeira, segunda e terceira instâncias foram anuladas porque, depois de quatro anos, a Segunda Turma do STF, sempre liderada por Gilmar Mendes, entendeu que o processo deveria ter começado em Brasília, não em Curitiba.

Mas nem recomeçou em Brasília. O Ministério Público Federal reconheceu a prescrição dos crimes atribuídos a Lula, por causa de sua idade, 76 anos.

Várias sentenças proferidas pelo juiz Marcelo Bretas, da Justiça Federal do Rio, inclusive as envolvendo o ex-governador Sérgio Cabral, também foram anuladas por argumentos processuais só “percebidos” depois de anos de tramitação.

Foi a Segunda Turma do STF que deu início a essa mudança de, digamos, “entendimento processual”. Políticos e seus advogados criminalistas, que acumulavam seguidas derrotas nos tribunais, dizem que agora se respeita o devido processo legal.

Quando se argumenta que Cortes superiores levaram tanto tempo num entendimento e, de repente, parece que, do nada, mudaram, dizem apenas: antes tarde...

O ministro aposentado do STF Marco Aurélio, que nunca foi um “punitivista”, disse ao GLOBO que tais revisões provocam perplexidade e insegurança jurídica.

A Presidência de Bolsonaro tem tudo a ver com essas mudanças. Ele foi eleito na onda anticorrupção. Tanto que colocou no Ministério da Justiça o principal juiz da Lava-Jato, Sergio Moro, que ainda recebeu plenos poderes e instrumentos para avançar no combate à corrupção.

E simplesmente foi destruído pelo próprio Bolsonaro, quando ele se viu apanhado em denúncias que envolviam também sua família e correligionários. Tudo que havia sido dito na campanha era fake.

Do mesmo modo, não estamos voltando ao “devido processo legal”. Trata-se, ao contrário, da volta das velhas garantias de impunidade.

 

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