sábado, 15 de fevereiro de 2025

Cacá Diegues, cinemanovista até o fim - Lilia Lustosa*

Correio Braziliense

Mestre, ídolo e nosso grande cineasta e pensador, vá em paz e leve seu brado de liberdade para onde você for.

É uma sensação muito estranha a de perceber que os personagens que nos acompanharam por tantos anos vão aos poucos desaparecendo de nossas vidas. Hoje, o grande mestre do cinema Cacá Diegues nos deixou. Ficou um vazio no cinema brasileiro, ficou um vazio em mim.

Ele, que não só foi o responsável por colocar no mundo filmes extraordinários, como Xica da Silva, Dias melhores virão, Orfeu e tantos outros, mas que acabou se tornando peça importantíssima na minha vida, uma vez que foi um dos protagonistas da minha tese de doutorado. Nela, tentei explicar (e acho que consegui) como se deu o surgimento do Cinema Novo, maior movimento cinematográfico da história do nosso cinema, a partir de um viés intelectual e político. E para abrir meu longo texto, escolhi uma frase escrita justamente por Cacá Diegues, que me pareceu a mais precisa, criativa e divertida: "Não ocorre a ninguém pensar que, certa noite, Leonardo, Rafael e Michelangelo tenham se encontrado numa taverna da Toscana e decidido lançar um movimento artístico, a que alguém de passagem sugeriu chamar de Renascimento. Mas foi assim que nasceu o Cinema Novo".

Essa frase foi extraída de um de meus companheiros constantes de tese, o livro Vida de cinema — antes, durante e depois do Cinema Novo, publicado por Cacá em 2014. No entanto, como uma típica doutoranda, não me contentei só com o livro e escrevi para o mestre para perguntar-lhe sobre o filme Arraial do Cabo (1959), de Mário Carneiro e Paulo César Saraceni, que era um dos meus objetos de estudo. Qual não foi minha surpresa, quando recebo uma resposta com uma foto da sua primeira crítica cinematográfica generosamente anexada. 

O artigo tinha o título O cinema do Arraial do Cabo e foi publicado na revista Arquitetura em outubro de 1961. Lá, o jovem Carlos Diegues analisava o curta-metragem carioca e exaltava a nova fase do cinema brasileiro. Além do artigo, ele me garantiu que eles, os cinemanovistas, sabiam àquela época que Arraial seria uma das primeiras bandeiras do Cinema Novo. Colocou-se à disposição para o que fosse necessário. Eu, claro, aproveitei! Descobri, então, por ele, que o outro filme sobre o qual eu pesquisava, Aruanda (1960), de Linduarte Noronha, era figurinha fácil e obrigatória no circuito dos cineclubes. Fiquei encantada por tanta generosidade.

Cacá Diegues começou sua vida participando do cineclube da PUC-RJ e logo se envolveu com os movimentos estudantis, ingressando no Centro Popular de Cultura (CPC), ligado à União Metropolitana dos Estudantes (UME). Realizou seu primeiro filme em 1961, junto com seu amigo cinemanovista David Neves. O curta se chamava Domingo e foi filmado em 16mm, financiado pelo Departamento de Produção da GEC — UME. Naquela época, do alto dos seus 21 anos, Cacá — que ainda assinava Carlos — já era um crítico cativo do jornal O Metropolitano, derramando, por ali, sua visão renovada e esperançosa.

O primeiro filme profissional foi parido ali mesmo no seio do CPC, em 1962, Escola de samba Alegria de Viver. Um curta-metragem que fazia parte do longa Cinco vezes favela, filme emblemático dos primeiros tempos do Cinema Novo. Em 1964, o já não tão inexperiente cineasta cruzou o oceano, e foi apresentar seu belíssimo Ganga Zumba no Festival de Cannes, junto com Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos e Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Que ano foi aquele! Golpe de Estado acontecendo aqui e a legitimação do Cinema Novo acontecendo lá com a exibição de três filmes brasileiros em um dos mais festivais de maior prestígio no mundo.

Aos poucos, Cacá foi amadurecendo como crítico e cineasta, tornando-se um dos expoentes não apenas do Cinema Novo, mas do cinema brasileiro "tout court". Em 1978, porém, devidamente legitimado e respeitado no universo cinematográfico,  viu-se muito cerceado em suas criações e criticado por não seguir à risca a doutrina da esquerda. Cunhou então o termo "patrulha ideológica" para designar o exagero — quase censura — que alguns jornalistas ligados ao PCB (até então clandestino naquele momento) estavam exercendo em várias áreas da cultura. A missão desses formadores de opinião era, para ele, a de desqualificar qualquer produto cultural que não estivesse alinhado politicamente aos seus pensamentos. O que, para ele, era um descalabro, uma vez que sempre batalhou pela liberdade e pela democracia, como todo cinemanovista que se preza.

Cacá Diegues, mestre, ídolo e nosso grande cineasta e pensador, vá em paz e leve seu brado de liberdade para onde você for.

*Historiadora e crítica de cinema. Doutora em história e estética do cinema pela Universidade de Lausanne, Suíça

  

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