sábado, 15 de fevereiro de 2025

Ímpeto protecionista - Luiz Gonzaga Belluzzo*

A história dos EUA é marcada pela persistente tradição de acudir a produção interna

Diante da ofensiva de Donald Trump destinada a tornar a “América Grande Novamente”, recorri à releitura de O Vermelho e o Negro, de Henri-Marie Beyle, conhecido como Stendhal. O personagem central do livro é o jovem Julien Sorel. Nascido na pequena Verrières, o jovem sofria as agressões de seu pai, um camponês de maus-bofes. Protegido pelo prefeito Rênal, Julien tornou-se uma celebridade.

Nas primeiras páginas de O Vermelho e o Negro, Stendhal dedica-se a considerar as cicatrizes sociais que definiam o ambiente de Verrières: “…Essas pessoas sensatas exercem aqui o mais aborrecido despotismo; é por causa desse nome feio que a estada nas cidadezinhas é insuportável para quem viveu na grande república chamada Paris. A tirania da opinião, e que opinião!, é tão burra nas cidadezinhas da França quanto nos Estados Unidos da América”.

Os insensatos que hoje estão no comando do Estado norte-americano dedicam seu “aborrecido (e burro) despotismo” para reafirmar a história econômica da América do Norte.

Peço licença para relembrar minhas modestas observações registradas em outras páginas. A história dos Estados Unidos apresenta uma longa e persistente tradição de práticas protecionistas. Os primeiros passos da caminhada protecionista estão recomendados no Relatório Sobre as Manufaturas, de Alexandre Hamilton, publicado em 1791. Hamilton, então secretário do Tesouro dos EUA, fez a crítica das teorias fisiocráticas que postulavam a superioridade da agricultura. Desenvolveu uma brilhante argumentação em defesa da manufatura como fonte da ampliação da divisão do trabalho, ganhos de produtividade e de maior progresso da própria agricultura.

Viperinas considerações sobre o celebrado liberalismo da Inglaterra pedem passagem. Na segunda metade do século XIX, depois de suspender, em 1841, a proibição de exportar máquinas e artesãos, e revogar, nos idos de 1846, a proteção à sua agricultura protegida pela Corn Law, o liberal-mercantilismo da pérfida Albion comandou a expansão do comércio e das finanças internacionais. Já dominado pelos interesses financeiros da City, o liberal-mercantilismo da Inglaterra hegemônica criou as condições para as políticas intencionais, diga-se protecionistas, de industrialização dos retardatários europeus e dos Estados Unidos.

No livro Origens da Democracia e da Ditadura, Barrington Moore Jr. analisa a Guerra Civil Americana a partir das relações contraditórias, mas não opostas, entre o Sul escravagista-livre-cambista e o Norte em processo de industrialização, turbinado com mão de obra assalariada e fortes doses de protecionismo.

Nas primeiras décadas do século XIX havia complementaridade entre o Sul escravagista primário-exportador e a industrialização incipiente. No movimento recíproco de expansão das “duas economias” os requerimentos da indústria, do assalariamento e da ampliação do mercado entraram em descompasso com a economia livre-cambista da mão de obra escrava. A contradição foi encaminhada para as terras do Oeste. Sob o manto protetor da distribuição gratuita de terras do Homestead Act, o desenvolvimento e a consolidação da agricultura familiar no Oeste iriam configurar um novo espaço para a expansão das relações mercantis.

O Oeste tornou-se provedor de alimentos e matérias-primas minerais e, ao mesmo tempo, ampliava o mercado para os produtos industrializados do ­Norte–Nordeste. A febre de ferrovias e canais, também subsidiada pela doação de terras públicas, aplainou o comércio entre as regiões, juntamente com as proezas da alavancagem financeira do free-banking, proezas periodicamente acometidas de crises agudas. Assim foram abertas as fronteiras da expansão interna do capitalismo norte-americano no século XIX. A partir da Guerra Civil foi deflagrada a era do empreendedorismo criativo dos “barões ladrões”.

Paul Bairoch, Douglas North, ­Charles Kindleberger e Carlo Cippola registram a persistência das práticas protecionistas dos EUA ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX, até o fim da Segunda Guerra Mundial. O aumento brutal das tarifas promovido pelo Smoot and Hawley Act, em 1930, inaugurou uma sombria temporada de competição protecionista.

O Relatório Sobre as Manufaturas, de 1791, ensina o caminho das pedras

No movimento de desviar o desemprego para o território do outro, seguiram-se as desvalorizações competitivas. Iniciado com a saída da Inglaterra do padrão-ouro em 1931, o jogo de estrepar o vizinho teve sequência na desvinculação do ouro anunciada por Roosevelt em 1933. Essas reações provocaram a contração brutal dos fluxos de comércio e suscitaram tensões nos mercados financeiros. Tais forças negativas propagavam-se livremente, sem qualquer capacidade de coordenação por parte dos governos. Assim, a economia global mergulhou numa espiral deflacionária que atingiu indistintamente os preços dos bens e dos ativos.

A contração do comércio mundial, provocada pelas desvalorizações competitivas e pelos aumentos de tarifas, deu origem a práticas de comércio bilateral e à adoção de controles cambiais. Na Alemanha nazista, tais métodos de administração cambial incluíam a suspensão dos pagamentos das reparações e dos compromissos em moeda estrangeira, nascidos do ciclo de endividamento que se seguiu à estabilização do marco em 1924.

Na posteridade da Segunda Guerra Mundial, o projeto norte-americano de construção da ordem econômica internacional foi concebido sob inspiração do ideário rooseveltiano. Tinha o propósito de promover a expansão do comércio entre as nações e colocar seu desenvolvimento a salvo de turbulências financeiras e de crises de balanço de pagamentos. A ideia-força dos reformadores de Bretton­ Woods sublinhava a necessidade de criação de regras destinadas a garantir a expansão do comércio e o ajustamento dos balanços de pagamento, mediante o adequado abastecimento de liquidez para a cobertura de déficits, de forma a evitar a propagação das forças deflacionárias e as tentações do protecionismo.

Desde o fim dos anos 1970, a reestruturação do capitalismo envolveu mudanças profundas no modo de operação das empresas, na integração dos mercados e, sobretudo, nas relações entre o poder da finança e a soberania do Estado. O verdadeiro sentido da globalização é o acirramento da rivalidade entre empresas, trabalhadores e nações, disputa feroz inserida em uma estrutura financeira autorreferencial, ocupada em satisfazer seus próprios apetites.

Em suas consequências, a severa recessão que machucou o planeta em 2008 denuncia as fragilidades do arranjo político-econômico da globalização. Não por acaso, ímpetos protecionistas irromperam em todos os cantos da Terra. O gesto de Trump é a repetição como farsa da tragédia encenada pela reforma tarifária imposta pelo Smoot-Hawley Act. 

*Publicado na edição n° 1349 de CartaCapital, em 19 de fevereiro de 2025.

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