A história dos EUA é marcada pela persistente tradição de acudir a produção interna
Diante da ofensiva de Donald Trump destinada
a tornar a “América Grande Novamente”, recorri à releitura de O Vermelho e o
Negro, de Henri-Marie Beyle, conhecido como Stendhal. O personagem central do
livro é o jovem Julien Sorel. Nascido na pequena Verrières, o jovem sofria as
agressões de seu pai, um camponês de maus-bofes. Protegido pelo prefeito Rênal,
Julien tornou-se uma celebridade.
Nas primeiras páginas de O Vermelho e o
Negro, Stendhal dedica-se a considerar as cicatrizes sociais que definiam o
ambiente de Verrières: “…Essas pessoas sensatas exercem aqui o mais aborrecido
despotismo; é por causa desse nome feio que a estada nas cidadezinhas é
insuportável para quem viveu na grande república chamada Paris. A tirania da
opinião, e que opinião!, é tão burra nas cidadezinhas da França quanto nos
Estados Unidos da América”.
Os insensatos que hoje estão no comando do Estado norte-americano dedicam seu “aborrecido (e burro) despotismo” para reafirmar a história econômica da América do Norte.
Peço licença para relembrar minhas modestas
observações registradas em outras páginas. A história dos Estados Unidos
apresenta uma longa e persistente tradição de práticas protecionistas. Os
primeiros passos da caminhada protecionista estão recomendados no Relatório
Sobre as Manufaturas, de Alexandre Hamilton, publicado em 1791. Hamilton, então
secretário do Tesouro dos EUA, fez a crítica das teorias fisiocráticas que
postulavam a superioridade da agricultura. Desenvolveu uma brilhante
argumentação em defesa da manufatura como fonte da ampliação da divisão do
trabalho, ganhos de produtividade e de maior progresso da própria agricultura.
Viperinas considerações sobre o celebrado
liberalismo da Inglaterra pedem passagem. Na segunda metade do século XIX,
depois de suspender, em 1841, a proibição de exportar máquinas e artesãos, e
revogar, nos idos de 1846, a proteção à sua agricultura protegida pela Corn
Law, o liberal-mercantilismo da pérfida Albion comandou a expansão do comércio
e das finanças internacionais. Já dominado pelos interesses financeiros da
City, o liberal-mercantilismo da Inglaterra hegemônica criou as condições para
as políticas intencionais, diga-se protecionistas, de industrialização dos
retardatários europeus e dos Estados Unidos.
No livro Origens da Democracia e da Ditadura,
Barrington Moore Jr. analisa a Guerra Civil Americana a partir das relações
contraditórias, mas não opostas, entre o Sul escravagista-livre-cambista e o
Norte em processo de industrialização, turbinado com mão de obra assalariada e
fortes doses de protecionismo.
Nas primeiras décadas do século XIX havia
complementaridade entre o Sul escravagista primário-exportador e a
industrialização incipiente. No movimento recíproco de expansão das “duas
economias” os requerimentos da indústria, do assalariamento e da ampliação do
mercado entraram em descompasso com a economia livre-cambista da mão de obra
escrava. A contradição foi encaminhada para as terras do Oeste. Sob o manto
protetor da distribuição gratuita de terras do Homestead Act, o desenvolvimento
e a consolidação da agricultura familiar no Oeste iriam configurar um novo
espaço para a expansão das relações mercantis.
O Oeste tornou-se provedor de alimentos e
matérias-primas minerais e, ao mesmo tempo, ampliava o mercado para os produtos
industrializados do Norte–Nordeste. A febre de ferrovias e canais, também
subsidiada pela doação de terras públicas, aplainou o comércio entre as
regiões, juntamente com as proezas da alavancagem financeira do free-banking,
proezas periodicamente acometidas de crises agudas. Assim foram abertas as
fronteiras da expansão interna do capitalismo norte-americano no século XIX. A
partir da Guerra Civil foi deflagrada a era do empreendedorismo criativo dos
“barões ladrões”.
Paul Bairoch, Douglas North, Charles
Kindleberger e Carlo Cippola registram a persistência das práticas
protecionistas dos EUA ao longo do século XIX e da primeira metade do século
XX, até o fim da Segunda Guerra Mundial. O aumento brutal das tarifas promovido
pelo Smoot and Hawley Act, em 1930, inaugurou uma sombria temporada de
competição protecionista.
O Relatório Sobre as Manufaturas, de 1791,
ensina o caminho das pedras
No movimento de desviar o desemprego para o
território do outro, seguiram-se as desvalorizações competitivas. Iniciado com
a saída da Inglaterra do padrão-ouro em 1931, o jogo de estrepar o vizinho teve
sequência na desvinculação do ouro anunciada por Roosevelt em 1933. Essas
reações provocaram a contração brutal dos fluxos de comércio e suscitaram
tensões nos mercados financeiros. Tais forças negativas propagavam-se
livremente, sem qualquer capacidade de coordenação por parte dos governos.
Assim, a economia global mergulhou numa espiral deflacionária que atingiu
indistintamente os preços dos bens e dos ativos.
A contração do comércio mundial, provocada
pelas desvalorizações competitivas e pelos aumentos de tarifas, deu origem a
práticas de comércio bilateral e à adoção de controles cambiais. Na Alemanha
nazista, tais métodos de administração cambial incluíam a suspensão dos
pagamentos das reparações e dos compromissos em moeda estrangeira, nascidos do
ciclo de endividamento que se seguiu à estabilização do marco em 1924.
Na posteridade da Segunda Guerra Mundial, o
projeto norte-americano de construção da ordem econômica internacional foi
concebido sob inspiração do ideário rooseveltiano. Tinha o propósito de
promover a expansão do comércio entre as nações e colocar seu desenvolvimento a
salvo de turbulências financeiras e de crises de balanço de pagamentos. A
ideia-força dos reformadores de Bretton Woods sublinhava a necessidade de
criação de regras destinadas a garantir a expansão do comércio e o ajustamento
dos balanços de pagamento, mediante o adequado abastecimento de liquidez para a
cobertura de déficits, de forma a evitar a propagação das forças deflacionárias
e as tentações do protecionismo.
Desde o fim dos anos 1970, a reestruturação
do capitalismo envolveu mudanças profundas no modo de operação das
empresas, na integração dos mercados e, sobretudo, nas relações entre o poder
da finança e a soberania do Estado. O verdadeiro sentido da globalização é o
acirramento da rivalidade entre empresas, trabalhadores e nações, disputa feroz
inserida em uma estrutura financeira autorreferencial, ocupada em satisfazer
seus próprios apetites.
Em suas consequências, a severa recessão que machucou o planeta em 2008 denuncia as fragilidades do arranjo político-econômico da globalização. Não por acaso, ímpetos protecionistas irromperam em todos os cantos da Terra. O gesto de Trump é a repetição como farsa da tragédia encenada pela reforma tarifária imposta pelo Smoot-Hawley Act.
*Publicado na edição n° 1349 de CartaCapital,
em 19 de fevereiro de 2025.
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