terça-feira, 1 de julho de 2025

As aventuras de Daniel na Cova da Democracia - Vagner Gomes*

“Uma das obras mais antigas no cânone do pensamento político, A República, de Platão, escrita por volta do ano 400 a.C., oferece uma avaliação franca da centralidade das mentiras para a política. Platão defendeu o que chamou  de ‘mentira nobre’ para justificar o que, de outra forma, poderia ser considerado injustificável: uma ordem social desigual. Seu argumento era que apenas algumas pessoas são adequadas para governar. (…)”

Simon Tormey, Populismo: uma breve introdução. P. 158.

A literatura brasileira se enriquece com a publicação de Esquema de Jessé Andarilho. Literatura e antropologia política se entrelaçam numa história que impacta por expor como as camadas populares, sob as margens das políticas públicas, exercem uma luta pela sobrevivência na constante recorrência ao “jeitinho brasileiro”. Temos um romance que nos faz reencontrar o clássico Carnavais, Malandros e Heróis (1979) de Roberto DaMatta no personagem Daniel Piloto que de motorista de transporte alternativo ascende ao universo da política sempre por caminhos distantes da honestidade.

A interpretação da ascensão política do voto bolsonarista na Zona Oeste carioca por duas eleições seguidas é um desafio que ainda precisa ser mais bem pesquisado pelos especialistas em comportamento político e eleitoral. Entretanto, nessa ficção, há alguns indícios etnográficos que os investigadores têm condições de mensurar. Assim como Nestor Duarte (1902 – 1970) nos permitiu uma interpretação sobre o vaqueiro no sistema político baiano no romance Gado Humano (1937), Jessé Andarilho deixa indícios de que a mencionada “polarização afetiva” seria um mito carnavalizado num universo em que a variável constante é o conservadorismo da sociedade brasileira.

Essa era uma região marcadamente trabalhista em tempos de Zona Rural da Guanabara (pré-1964) que se transfigurou num oposicionismo emedebista-chaguista nos anos 70. Nos anos 80/90 se encantou pelo “brizolismo” e seus sucessores até aderir ao Lula 1 e Lula 2. Em determinado momento, esse perfil de populismo nas camadas populares transitou para um populismo reacionário, marcado pelas relações com o poder mediadas pelo clientelismo político em suas mais variadas formas, nas quais o serviço de segurança se privatizou sob uma estrutura nem um pouco transparente e o mundo político carioca vive em constante negociação com grupos paramilitares e facções. O populismo se tornou um “mito” para solucionar os problemas de representatividade política nos tempos contemporâneos.

Os bairros do hoje chamado “Extremo-Oeste” carioca (região entre Santa Cruz e Campo Grande com seus arredores) aparecem nesse romance mais que social, pois se trata de uma ficção visionária uma vez que foram escritas pelo olhar de um autor como se fossem os registros de uma pesquisa de campo. A antropologia política presente no romance ensinará a muitos a saírem de suas interpretações simplistas ou marcadamente “americanizadas”. Daniel Piloto é um Macunaíma que ascendeu a política no século XXI enquanto que muitos jovens se veem sem alternativas democráticas para além do “pé de meia” e o mito vermelho do Papai Noel. 

Um livro que nos impacta ao relembrar aos estudiosos dos meios acadêmicos que o universo da chamada “pós-verdade” não seria uma novidade nas camadas populares. O “levar vantagem” por uma causa considerada necessária a sua própria sobrevivência é uma chave constante em Esquema, portanto os desafios de uma comunicação política não devem estar em desfazer narrativas, mas reduzir as mazelas do cidadão comum em sua luta pela sobrevivência. A “ditadura das necessidades” nos dias de precarização do mundo do trabalho ainda eleva as qualidades dessa obra literária em que sua condição ficcional nos faz perceber o quanto o mundo da política real se tornou refém das narrativas sem compromisso com o debate programático.

As vésperas das eleições gerais de 2026, temos uma importante contribuição para aqueles que desejam melhorar o perfil democrático do Congresso Nacional. Não é ficar a repetir um mantra: “Vamos ajudar elegendo democratas e progressistas”. Esquema nos ensina que falta um aprendizado político a ser feito pelas militâncias, porém onde elas estão? Algumas se deixaram seduzir por ficar nos gabinetes à distância das camadas subalternas em busca de “likes” para seus memes. A política não se profissionalizou pelos caminhos democráticos, mas pelas artimanhas de uma oligarquização de núcleos dirigentes. Portanto, aqueles que se sentem à margem da sociedade fazem do voto um “Esquema” financeiro ao invés de um momento “Positivo”.

Livro resenhado: ANDARILHO, Jessé. Esquema. São Paulo: Companhia das Letras, 2025. 168 p.

*Vagner Gomes é doutorando do PPGCP/UNIRIO.

 

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