Valor Econômico
Massiva necessidade de emissão do governo
americano deve contribuir para estabelece piso mais elevado para os Treasuries,
constituindo ambiente mais desafiador para as economias emergentes
O mercado de títulos da dívida pública americana está no centro do sistema financeiro internacional e suas oscilações têm implicações globais. Diante das dificuldades da política fiscal nos EUA, com déficits elevados e consequentes aumentos das emissões de dívida pública e das dúvidas acerca da política monetária, em meio a crescimento e inflação resilientes, as taxas de juros dos títulos de 10 anos oscilaram de 3,3% ao ano. em abril para pouco mais de 5% a.a. em meados de outubro, e depois de alguns sinais incipientes de melhora sobretudo no quadro inflacionário, começaram a declinar fortemente, para os níveis atuais de cerca de 4% a.a. Esses movimentos, por sua vez tiveram repercussões por todo o mundo, incluindo o Brasil. Entender os desafios da política fiscal americana tornou-se, portanto, algo mais relevante para quem acompanha e investe nos mercados de ativos. E os desafios são, de fato, importantes.
Nos EUA, como em qualquer país, a dinâmica da
dívida, como fração do PIB, é determinada pela diferença entre a taxa de juros
real incidente sobre a mesma e a taxa de crescimento tendencial da economia.
Quanto maior a diferença entre a taxa de juros e a taxa de crescimento, maior
será o superávit primário necessário para estabilizar a dívida. É plausível
supor, por ora, que essa diferença, no caso dos EUA, seria nula. Isto implica
que, ao contrário de economias como a nossa, bastaria aos EUA manter um equilíbrio
primário para evitar que a razão dívida-PIB cresça indefinidamente. Ocorre que
os EUA estão trabalhando com vultosos déficits primários, na ordem de 3% a 4%
do PIB nos últimos anos, e essa é a magnitude do ajuste necessário.
Considerando o resultado nominal, que tem influência dominante sobre as
necessidades de emissão do Tesouro no curto prazo, os déficits anuais têm
oscilado de 7% a 8% do PIB.
A história não gera muito otimismo quanto à
perspectiva de um ajuste nessa dimensão. Em primeiro lugar, porque as forças
políticas dominantes ou têm indicado pouca preocupação em relação ao tema, ou
parecem contar com o impressionante dinamismo da economia americana, com o
crescimento, em suma, para resolver o problema.
Ao longo dos anos, o déficit americano esteve
muito correlacionado com a taxa de desemprego, diminuindo com a melhora da
atividade e aumentando com a piora. No entanto, a partir de 2017, há um
descolamento dessa relação, marcando o início mais claro da deterioração da
trajetória fiscal americana. A gestão Trump implementou cortes de impostos sem
a devida contrapartida do lado da despesa - parte desses cortes, referente à
taxação de pessoas físicas, foi introduzida de forma temporária, e a princípio
expira em 2025. Note-se que, mesmo antes do corte de impostos, o Congressional
Budget Office (CBO) já projetava um crescimento importante do déficit, por
conta da expectativa de aumento de gastos com assistência social e médica.
O processo se intensificou na pandemia, como em muitos países, quando o déficit primário saiu de 3% em 2019 para 14,1% em 2020 e 9,4% em 2021 - observe-se que o então válido “teto de gastos” ocasionou um ajuste fiscal bem rápido no Brasil, em 2021, depois do necessário aumento de despesas observado em 2020. Sem uma regra fiscal efetivamente restritiva, e sem contar com o efeito disciplinador do mercado, as gestões Trump e Biden seguiram com posturas fiscais agressivamente expansionistas - o segundo começou com um estímulo em 2021, equivalente a cerca de 9% do PIB, que mesmo proeminentes economistas democratas consideraram exagerado.
Uma segunda rodada seguiu-se em 2022, ainda
que com componentes que irão impactar a economia de forma gradual ao longo de
vários anos. Em resumo, o norte da política fiscal parece ter sido oferecer
estímulos quase que contínuos à atividade econômica, independente do estágio do
ciclo e de considerações sobre a sustentabilidade da dívida.
Atualmente, a polarização política, em um
Congresso em que os extremos têm ganho influência às expensas do centro,
implica certa paralisia na implementação de ajustes fiscais. E o histórico do
país não induz a muito otimismo quanto à disposição e habilidade política de se
gerar resultados primários importantes. O único período fiscalmente virtuoso
das últimas décadas foi o governo Clinton, cujo ajuste fiscal permitiu uma
forte redução das taxas de juros e um boom de crescimento, e emprego, liderado
pelo setor privado. Os EUA registraram, em média, um superávit primário
equivalente a 0,9% do PIB entre 1990 e 2000.
Desde então, voltamos a ter uma sequência de
déficits - 2,2% do PIB em média, até 2019, 3% a 4% desde então. Durante muito
tempo o crescimento da dívida, mesmo com esses déficits, vinha sendo limitado
por uma evolução benigna, para o Tesouro, da diferença entre a taxa de juros e
a taxa de crescimento. Mas o quadro mudou nos últimos tempos, dada a
necessidade do Fed reagir ao surto inflacionário via aumento de taxas de juros.
Os economistas do Itaú estimam que a piora do
resultado primário observada desde meados da década passada foi de cerca de 3,6
pontos percentuais do PIB, sendo 1 ponto do lado das receitas e 2,6 pontos do
lado das despesas. Por ora, a melhor chance de ajuste virá da reversão parcial
de alguns cortes de impostos da era Trump (podendo gerar receitas de cerca de
0,7% do PIB), mas isso depende muito do resultado da eleição de 2024, que
parece bastante incerto.
Apesar de todas essas dificuldades, o dólar,
por falta de alternativas, deve seguir como moeda de reserva do mundo, e não
devemos ver uma crise financeira de origem fiscal nos EUA. Mas a massiva
necessidade de emissão do governo americano, em ambiente de desajuste fiscal,
deve contribuir para estabelecer um piso relativamente elevado para as taxas de
juros das Treasuries, constituindo um ambiente mais desafiador para as
economias emergentes, incluindo a nossa, independente da qualidade da política
econômica doméstica. Um ambiente no qual os erros tendem a ter impactos
maiores.
*Mário Mesquita é economista-chefe do Itaú Unibanco
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