terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Mário Mesquita - Dificuldades do ajuste fiscal nos EUA

Valor Econômico

Massiva necessidade de emissão do governo americano deve contribuir para estabelece piso mais elevado para os Treasuries, constituindo ambiente mais desafiador para as economias emergentes

O mercado de títulos da dívida pública americana está no centro do sistema financeiro internacional e suas oscilações têm implicações globais. Diante das dificuldades da política fiscal nos EUA, com déficits elevados e consequentes aumentos das emissões de dívida pública e das dúvidas acerca da política monetária, em meio a crescimento e inflação resilientes, as taxas de juros dos títulos de 10 anos oscilaram de 3,3% ao ano. em abril para pouco mais de 5% a.a. em meados de outubro, e depois de alguns sinais incipientes de melhora sobretudo no quadro inflacionário, começaram a declinar fortemente, para os níveis atuais de cerca de 4% a.a. Esses movimentos, por sua vez tiveram repercussões por todo o mundo, incluindo o Brasil. Entender os desafios da política fiscal americana tornou-se, portanto, algo mais relevante para quem acompanha e investe nos mercados de ativos. E os desafios são, de fato, importantes.

Nos EUA, como em qualquer país, a dinâmica da dívida, como fração do PIB, é determinada pela diferença entre a taxa de juros real incidente sobre a mesma e a taxa de crescimento tendencial da economia. Quanto maior a diferença entre a taxa de juros e a taxa de crescimento, maior será o superávit primário necessário para estabilizar a dívida. É plausível supor, por ora, que essa diferença, no caso dos EUA, seria nula. Isto implica que, ao contrário de economias como a nossa, bastaria aos EUA manter um equilíbrio primário para evitar que a razão dívida-PIB cresça indefinidamente. Ocorre que os EUA estão trabalhando com vultosos déficits primários, na ordem de 3% a 4% do PIB nos últimos anos, e essa é a magnitude do ajuste necessário. Considerando o resultado nominal, que tem influência dominante sobre as necessidades de emissão do Tesouro no curto prazo, os déficits anuais têm oscilado de 7% a 8% do PIB.

A história não gera muito otimismo quanto à perspectiva de um ajuste nessa dimensão. Em primeiro lugar, porque as forças políticas dominantes ou têm indicado pouca preocupação em relação ao tema, ou parecem contar com o impressionante dinamismo da economia americana, com o crescimento, em suma, para resolver o problema.

Ao longo dos anos, o déficit americano esteve muito correlacionado com a taxa de desemprego, diminuindo com a melhora da atividade e aumentando com a piora. No entanto, a partir de 2017, há um descolamento dessa relação, marcando o início mais claro da deterioração da trajetória fiscal americana. A gestão Trump implementou cortes de impostos sem a devida contrapartida do lado da despesa - parte desses cortes, referente à taxação de pessoas físicas, foi introduzida de forma temporária, e a princípio expira em 2025. Note-se que, mesmo antes do corte de impostos, o Congressional Budget Office (CBO) já projetava um crescimento importante do déficit, por conta da expectativa de aumento de gastos com assistência social e médica.

O processo se intensificou na pandemia, como em muitos países, quando o déficit primário saiu de 3% em 2019 para 14,1% em 2020 e 9,4% em 2021 - observe-se que o então válido “teto de gastos” ocasionou um ajuste fiscal bem rápido no Brasil, em 2021, depois do necessário aumento de despesas observado em 2020. Sem uma regra fiscal efetivamente restritiva, e sem contar com o efeito disciplinador do mercado, as gestões Trump e Biden seguiram com posturas fiscais agressivamente expansionistas - o segundo começou com um estímulo em 2021, equivalente a cerca de 9% do PIB, que mesmo proeminentes economistas democratas consideraram exagerado.

Uma segunda rodada seguiu-se em 2022, ainda que com componentes que irão impactar a economia de forma gradual ao longo de vários anos. Em resumo, o norte da política fiscal parece ter sido oferecer estímulos quase que contínuos à atividade econômica, independente do estágio do ciclo e de considerações sobre a sustentabilidade da dívida.

Atualmente, a polarização política, em um Congresso em que os extremos têm ganho influência às expensas do centro, implica certa paralisia na implementação de ajustes fiscais. E o histórico do país não induz a muito otimismo quanto à disposição e habilidade política de se gerar resultados primários importantes. O único período fiscalmente virtuoso das últimas décadas foi o governo Clinton, cujo ajuste fiscal permitiu uma forte redução das taxas de juros e um boom de crescimento, e emprego, liderado pelo setor privado. Os EUA registraram, em média, um superávit primário equivalente a 0,9% do PIB entre 1990 e 2000.

Desde então, voltamos a ter uma sequência de déficits - 2,2% do PIB em média, até 2019, 3% a 4% desde então. Durante muito tempo o crescimento da dívida, mesmo com esses déficits, vinha sendo limitado por uma evolução benigna, para o Tesouro, da diferença entre a taxa de juros e a taxa de crescimento. Mas o quadro mudou nos últimos tempos, dada a necessidade do Fed reagir ao surto inflacionário via aumento de taxas de juros.

Os economistas do Itaú estimam que a piora do resultado primário observada desde meados da década passada foi de cerca de 3,6 pontos percentuais do PIB, sendo 1 ponto do lado das receitas e 2,6 pontos do lado das despesas. Por ora, a melhor chance de ajuste virá da reversão parcial de alguns cortes de impostos da era Trump (podendo gerar receitas de cerca de 0,7% do PIB), mas isso depende muito do resultado da eleição de 2024, que parece bastante incerto.

Apesar de todas essas dificuldades, o dólar, por falta de alternativas, deve seguir como moeda de reserva do mundo, e não devemos ver uma crise financeira de origem fiscal nos EUA. Mas a massiva necessidade de emissão do governo americano, em ambiente de desajuste fiscal, deve contribuir para estabelecer um piso relativamente elevado para as taxas de juros das Treasuries, constituindo um ambiente mais desafiador para as economias emergentes, incluindo a nossa, independente da qualidade da política econômica doméstica. Um ambiente no qual os erros tendem a ter impactos maiores.

*Mário Mesquita é economista-chefe do Itaú Unibanco

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