terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Como intimidar jornalistas – Pedro Doria

O Globo

Neste ano sofri quatro cancelamentos. Um foi puxado pelos bolsonaristas, outro veio do MBL. Mais dois de militantes de esquerda. Cancelamentos fazem parte da vida cotidiana de quem está no debate público em democracias. Para quem cancela, a coisa dura um segundo. É escrever um tuíte, um comentário embaixo duma foto ou vídeo, de repente uma mensagem privada. Para o cancelado, é o sequestro completo de sua vida digital. O e-mail e todas as postagens em todas as redes sociais são dominados. Cada foto no Instagram, cada comentário feito nalgum canto é tomado por uma horda agredindo. Às vezes, foi o caso de meu cancelamento bolsonarista deste ano, a coisa dura um dia ou dois. Noutras, como ocorreu na semana passada pela esquerda anti-Israel, ao longo de uma semana inteira não é possível se manifestar nas redes. O espaço está 100% ocupado pela turba que tem por objetivo calar e intimidar. Se você diz algo, é alimento para mais ataques. Não tem solução que não esperar o tempo correr, deixar assentar. Nesse cancelamento em particular, houve algo de inédito: uma diplomata brasileira da ativa esteve entre os que mobilizaram o ataque a mim e a um grupo de jornalistas em visita a Israel. Diplomatas, ao menos em tese, não participam de ações para intimidar a imprensa.

Cancelamento é a forma moderna de censura. E funciona. Se a afirmação choca a princípio, é porque não tratamos o suficiente desse tema em conversas. Pois deveríamos.

O debate público foi para as redes sociais, mas ali mudou. Raramente, nas redes, vemos ideias originais. O que existe, à esquerda e à direita, é a reafirmação dos mesmos slogans, às vezes das mesmas frases inteiras. Para cada grande tema, os lados já sabem na ponta da língua como devem responder. Parece diálogo, mas é só um repetir das mesmas ideias prontas. Não há reflexão. Por isso mesmo, raramente somos surpreendidos por uma nova interpretação, por algo que balance nossas convicções. Pelo contrário. Nas redes, o objetivo nunca é perturbar convicções. É reafirmá-las. E, a partir daí, transformar o ritual de reafirmar essas mesmas ideias em celebração tribal. Repetir as ideias devidamente aprovadas pelo grupo reforça os laços de camaradagem e identidade comum.

Retroagimos a um mundo pré-iluminista, onde nos reuníamos em volta de identidades fixas que tinham todas as outras como inimigas a derrotar. A celebração do pluralismo — de que observar um mesmo fato por ângulos diferentes é natural — se foi. A compreensão de que um debate que nos desafia intelectualmente fortalece e melhora a sociedade, isso nós perdemos.

Cancelamentos são sempre incitados. Uma ou duas pessoas com influência sobre uma das tribos leva o dedo contra os inimigos e solta as feras. Em geral, os ataques têm algum lustre, tentam se passar por diálogo. Mas o objetivo não é conversar, construir argumentos, provocar o debate. O que desejam é mobilizar seguidores no ritual de ataque. O termo “ritual” não é metáfora. É um ritual tribal em que quem forma o grupo se reúne para repetir as mesmas frases nos espaços digitais do alvo de ataque. Toda foto publicada, todo vídeo, todo texto em todas as redes sociais do alvo é inundado pelas mesmas poucas frases repetidas. É uma grande onda engolindo. Se alguém se manifesta em defesa dele, apanha também. O afeto mobilizado é o ódio. É daqueles ritos mais básicos de celebração da identidade comum, em que todos festejam juntos sua repulsa ao outro, a quem tem “opiniões erradas”, registrados em sociedades primitivas há mais de século por antropólogos.

Os resultados são dois. O primeiro é a censura. Como as redes do acusado são inundadas pelas mensagens de ódio que se repetem às centenas, por vezes aos milhares, é preciso se ausentar por um tempo. Não há saída que não esperar a coisa passar. Cancelamentos calam por um tempo. Impedem conversas. Aí vem o segundo resultado: a intimidação. Nós, jornalistas, sabemos que temas levantarão ondas de ódio pela direita e pela esquerda. E muitos os evitam. Sim: há temas que bons jornalistas, bons analistas, bons colunistas evitam porque aguentar a onda de ataque tira um pedaço. Cancelamentos são censura nos tempos de hoje. É como funcionam.

A crise da democracia tem muitos sintomas. Um deles é este: o ataque em ondas pelas redes sociais. Se chegamos ao ponto em que responsáveis pela diplomacia brasileira acham natural fazer parte da intimidação da imprensa, é porque descemos mais um degrau. A derrota é de todos.

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