A história mostra que deixar uma ditadura para trás é um processo lento, mas com desfecho acelerado. A massa nas ruas do Egito ruma para a abertura. O que ainda falta para chegar lá
José Antonio Lima Com Eliseu Barreira Junior,Juliano Machado e Mariana Sanches
O mais instável dos regimes políticos do mundo é a ditadura. Pode até durar décadas por conta da imposição da força, mas carece de um fundamento básico: a boa vontade dos que são governados por ela. O que o mundo vê agora no Egito é uma prova de que, cedo ou tarde, o povo se cansa dos autocratas. Não que seja fácil aposentar um ditador. Na semana passada, a imagem da massa que superlotava a Praça Tahrir – “liberdade”, em árabe –, no centro do Cairo, dava a impressão de que Hosni Mubarak, há 30 anos no poder, anunciaria o fim do regime em questão de horas. Até o fechamento desta edição, Mubarak continuava cambaleante, mas agarrado ao poder.
Em resposta, grupos pró-Mubarak invadiram a praça e investiram contra os manifestantes. Por quase seis horas, pedras, bombas incendiárias e disparos de armas de fogo vinham dos dois lados. Homens montados em cavalos e camelos, com chicotes e pedaços de pau, atacaram os manifestantes anti-Mubarak. Em poucos minutos, foram derrubados de suas montarias e espancados. As imagens lem-bravam outros levantes brutalmente sufocados, como os protestos por abertura política na Praça da Paz Celestial, em Pequim, ou as manifestações contra a reeleição fraudada de Mahmoud Ahmadinejad no Irã, em 2009. Nesses dois casos, a repressão sobressaiu – e os regimes autoritários persistem. Ainda não está claro que caminho o Egito seguirá, mas parece claro que pelo menos a ditadura de Mubarak está perto do fim.
O nascimento de uma democracia varia de acordo com cada país ou região. De certo modo, o fim das ditaduras costuma seguir um ritmo parecido com a bancarrota do célebre personagem do escritor americano Ernest Hemingway: “Gradualmente – e então de repente”. A democracia começa de forma lenta, latente, à medida que um regime autoritário se desgasta. E geralmente acelera nos momentos finais. As últimas grandes ondas de democratização do século XX, da América Latina ao Leste Europeu, tiveram essa característica.
O caso mais marcante foi a derrubada das ditaduras comunistas, na virada dos anos 80 para os 90. Por quatro décadas, os soviéticos sufocaram a soberania dessas nações ao impor seu modelo político-econômico. As revoltas eram debeladas, mas a insatisfação só aumentava. A União Soviética agonizou até o Muro de Berlim cair, em outubro de 1989. A partir daí, as ditaduras foram caindo como um castelo de cartas. Na Romênia, a velocidade e as circunstâncias da queda foram assustadoras. O ditador Nicolae Ceaucescu, com 24 anos de governo, enfureceu a população ao convocar um comício em Bucareste, em que os romenos seriam obrigados a clamar palavras de apoio ao tirano. O resultado foi uma mobilização ensandecida contra Ceausescu. Quatro dias depois, ele estava fuzilado, e seu regime extinto.
A Romênia foi um caso extremo, mas os princípios que regeram o fim do comunismo no Leste Europeu estão presentes nos levantes do Egito. Dos 22 países que formam a Liga Árabe, só três têm sistemas cujos elementos permitem falar numa democracia, ainda que imperfeita – Líbano, Kwait e Iraque. No restante, predominam autocratas que já passaram dos 70 anos de idade, com 20 a 30 no poder. Some a isso pobreza, desemprego e falta de liberdades fundamentais – e eis o caldo de fermentação para um futuro regime aberto.
O “Muro de Berlim” dos árabes foi o levante da Tunísia, no mês passado. Pela primeira vez na história da região, a força do povo nas ruas derrubou um ditador – Zine el-Abidine Ben Ali comandava o país desde 1987. As demais populações viram que poderiam fazer o mesmo. O Egito, foco do momento, pode ser o próximo a seguir o caminho tunisiano e há sinais de mudança em outros países da região. Uma onda democrática árabe pode estar a caminho. Mas o exemplo do Egito mostra que sair de uma ditadura para uma democracia não requer só vontade popular.
Embora frequentemente inspiradas pelos ideais de democracia e de participação popular, as transformações políticas implementadas na América Latina, no Leste Europeu e, agora, no Egito e no resto do mundo árabe nem sempre resultam numa democracia. Não bastam eleições para tornar um regime democrático. Uma democracia pressupõe poderes Executivo, Legislativo e Judiciário independentes, conceito que começou a ser traçado no século XVIII pelo filósofo francês Charles de Montesquieu. Somem-se à democracia representativa a necessidade de garantias das liberdades individuais amplas, de acesso a fontes de informação diversificadas e a não interferência da religião nas decisões do Estado.
Os regimes dos países têm sido classificados de acordo com critérios como a competitividade das eleições, a liberdade da imprensa e o clima de respeito às liberdades individuais. De acordo com a organização americana Freedom House, uma referência no monitoramento da democracia pelo mundo, 45% dos países entraram em 2011 na condição de livres. Somos quase 3 bilhões vivendo em Estados abertos. Entre eles, Brasil e Argentina, parte da onda de democratização da América Latina na década de 80, ou Estônia e Lituânia, ex-repúblicas soviéticas. Outros 31% dos países, com 1,5 bilhão de habitantes, são classificados como parcialmente livres. Nesse grupo estão países como a Venezuela, de Hugo Chávez, ou a Bolívia, cuja ditadura terminou em 1982, mas não foi substituída por um regime 100% democrático. Ou ainda países do Leste Europeu que, embora engolfados pela redemocratização, ainda não completaram sua transição, como a Ucrânia.
Antes que o Egito possa ser considerado um motor para uma onda de democracia no mundo árabe, ele terá de atravessar os percalços daquele que promete ser um conturbado período de transição. Há três décadas, Mubarak é sustentado por dois pilares poderosos, com fortes interesses na manutenção da estabilidade no Egito – os militares e as potências estrangeiras. Aos 82 anos, Mubarak é um homem teimoso, orgulhoso e indiferente aos anseios da população. Na única entrevista que concedeu na semana passada, à rede de TV americana ABC News, afirmou que “não liga” para o que falam dele. Mubarak parece disposto a fazer de tudo para evitar a humilhação de ser obrigado a renunciar. Por isso, mantinha até o fim da semana passada a decisão de ficar até setembro, quando estão previstas as eleições presidenciais. Ainda assim, seu futuro é incerto, uma vez que os pilares que o sustentam foram abalados pelos protestos. Alguns militares chegaram a tomar parte nos protestos populares. E o presidente Barack Obama, que comanda a principal potência estrangeira que sempre o apoiou, declarou que gostaria de vê-lo fora do poder imediatamente.
O Egito ainda não chegou, porém, ao “ponto de virada” de uma ditadura para uma democracia. Algumas vezes ele é súbito (como na Romênia); noutras, mais gradual (como no Brasil, onde se passaram cinco anos das grandes manifestações em defesa das eleições diretas até o primeiro pleito presidencial). Mubarak tem dançado um curioso balé na tentativa de se manter agarrado ao poder. Por enquanto, o que mais escandalizou a comunidade internacional foi a perseguição contra a imprensa estrangeira. As agressões a repórteres tiveram grande repercussão – dois jornalistas brasileiros foram detidos, interrogados e mandados de volta para o Brasil.
Os Estados Unidos e a União Europeia se manifestaram veementemente, na semana passada, em favor de reformas imediatas na política egípcia. O governo Obama parece disposto a enfrentar um dilema de que todos os ocupantes anteriores da Casa Branca se esquivaram – a dicotomia entre democracia e estabilidade no Egito. Washington fazia pressão para que Mubarak deixasse o cargo e desse espaço a um governo de transição, com participação dos oposicionistas. A figura-chave no processo seria Omar Suleiman, indicado por Mubarak como seu vice-presidente.
Suleiman é visto como o homem que poderia, ao mesmo tempo, negociar com a oposição e manter intactos os interesses dos militares e das potências estrangeiras no Egito. Ele é um ex-general, foi chefe do temido (pelos próprios egípcios) Serviço de Inteligência Nacional desde o primeiro dia do mandato de Mubarak e salvou a vida do ditador num atentado na Etiópia, em 1995. É seu principal aliado. Era considerado a “solução militar” para a sucessão de Mubarak, caso o ditador não conseguisse indicar seu filho, Gamal. Suleiman poderia aplacar os ânimos do governo de Israel. Como chefe da Inteligência do Egito, foi responsável por todas as negociações do governo em relação aos territórios palestinos, especialmente a Faixa de Gaza, comandada pelos radicais do grupo islâmico Hamas. “Ele seria a melhor opção para um governo interino. Para Israel, seria um grande alívio se Suleiman permanecesse no poder”, afirma Elie Podeh, especialista em relações árabes-israelenses da Universidade Hebraica de Jerusalém.
Outra função de Suleiman seria garantir os privilégios dos militares. A categoria é a principal beneficiada pelo acordo de ajuda militar com os Estados Unidos, que destinam cerca de US$ 1,5 bilhão por ano para o Egito. Esse dinheiro vai para a compra de armas e equipamentos (muitos americanos), mas também para o bolso dos militares, segundo apurou ÉPOCA. Cada um dos seis oficiais generais que atuam como ministros-assistentes do Ministério do Interior – a pasta que coordena as forças de segurança do Egito, incluindo a temida polícia – recebe US$ 50 mil por mês. Os militares são bem-vistos pela população egípcia. Seus membros mais graduados desfrutam uma vida nababesca num país em que 23% da população vive abaixo da linha da pobreza.
A oposição recebeu bem algumas concessões de Mubarak, mas não abre mão de sua renúncia
Ao mesmo tempo que respondeu de forma truculenta aos protestos populares, o regime egípcio fez uma série de concessões aos partidos oposicionistas. A primeira foi a própria nomeação de Omar Suleiman para a Vice-Presidência. Apesar de ligado a Mubarak, ele é o primeiro vice-presidente do Egito em 30 anos. Na semana passada, Suleiman chamou toda a oposição ao diálogo, inclusive a Irmandade Muçulmana, o antigo movimento islâmico que tem um passado de violência e foi o berço de grupos radicais, como a Al-Qaeda. O presidente do Parlamento (entidade controlada por Mubarak), Fatih Sorour, reconheceu que as últimas eleições foram fraudulentas, como a oposição já denunciara há meses. E o primeiro-ministro, Ahmed Shafiq (ex-colega de turma de Mubarak na Força Aérea e próximo do ditador), pediu desculpas pela violência na Praça Tahrir. Foram tentativas de reduzir a tensão e de apagar a imagem de que as forças de segurança do próprio governo estariam por trás dos crimes.
A oposição vê com bons olhos essas concessões, mas não abre mão da renúncia de Mubarak. “É preciso haver, com a saída de Mubarak, um sinal de que uma nova era vai começar, senão o caos no Egito não vai acabar”, disse a ÉPOCA Hassan Nafaa, professor de ciência política da Universidade do Cairo e um dos principais coordenadores da Associação Nacional para a Mudança. A associação é comandada por Mohamed El-Baradei, ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica, da ONU, e prêmio Nobel da Paz em 2005. Em tese, engloba todo o espectro de opositores, mas há claras divergências internas (leia o quadro). Um dos temores do bloco é que, uma vez que um acordo seja firmado entre governo e oposição, as massas de jovens nas ruas se sintam traídas. Outra preocupação, mais importante, é que, uma vez aceita a permanência de Mubarak, a pressão sobre o regime diminua e as reformas não sejam realizadas.
A palavra do regime não é encarada com seriedade pela oposição por um motivo simples: não é confiável. Na quinta-feira, a TV estatal egípcia anunciava que o proeminente oposicionista Ayman Nour, ex-candidato à Presidência em 2005 e preso pelo regime por quatro anos, negociava com o governo. Naquele momento, ele se encontrava sentado na sala de estar de sua casa, no Cairo, onde concedia entrevista a ÉPOCA. Na conversa, Nour admitiu que há divergências dentro da oposição, mas tentou minimizá-las. Confirmou que será candidato nas próximas eleições, o que prenuncia um confronto interno entre membros da Associação Nacional para a Mudança, como El-Baradei, considerado um candidato natural. Se isso ocorresse agora, provavelmente o grupo perderia força. Se ocorrer em um ambiente político em processo de democratização, pode ser saudável, pois aumentará o pluralismo da sociedade egípcia.
A maior dúvida a respeito do futuro da democracia no Egito e em todo o mundo árabe continua sendo o papel do islã e dos grupos radicais no país. Líderes seculares como Nour e El-Baradei têm defendido o diálogo com a Irmandade Muçulmana, argumentando que ela é uma força política que não pode ser desprezada, ainda que esteja na ilegalidade há décadas. Os acenos de Suleiman a uma aproximação com o grupo são uma mudança. “Os Estados ditatoriais árabes, com Mubarak à frente, alegavam que os Estados policiais que criaram eram a única barreira no caminho do extremismo islâmico”, diz Rashid Khalidi, professor de estudos árabes do Departamento de História da Universidade Colúmbia, nos Es-tados Unidos. Ao abrir as portas para a Irmandade Muçulmana, o regime egípcio tenta evitar excluir os partidos religiosos. Uma das características cardeais da democracia é aceitar a participação de todas as correntes de pensamento – desde que elas também aceitem a democracia como sistema político. Não é esse o caso dos grupos islâmicos em países como o Irã ou o Líbano. Apesar de hoje se declarar favorável ao regime democrático, o histórico da Irmandade Muçulmana oferece motivos legítimos para preocupação. O maior temor é que ela tente tornar o país uma teocracia como a iraniana. O líder espiritual do Irã, Ali Khamenei, disse enxergar no Egito o mesmo caminho que seu país trilhou, a partir da derrubada do xá, em 1979. “O despertar do povo islâmico egípcio é um movimento de liberação islâmico, e eu, em nome do governo iraniano, saúdo o povo egípcio e o povo tunisiano”, afirmou na sexta-feira.
O futuro de uma democracia egípcia passa pelo papel que o islã terá no novo regime
A rebelião popular no Egito, porém, não foi motivada nem comandada por religiosos. O motivo central dos protestos, iniciados há duas semanas, está claro: desde sua existência como Estado independente, em 1952, o país nunca soube o que é democracia. Teve só três presidentes – além de Mubarak, Anwar al-Sadat e Gamal Abdel Nasser, que derrubou a monarquia do rei Farouk. Após tantos anos de autoritarismo, o país quer ter o direito de escolher seus governantes pelo voto direto, livremente.
O Egito parece reunir as três condições básicas para se tornar protagonista do primeiro processo de democratização genuíno do mundo árabe, capaz de modificar de forma duradoura a história da região. Primeira: as potências estrangeiras estão pressionando por reformas. Segunda: as forças internas democráticas são ativas e estruturadas. Terceira: e a religião, em vez de ter sido excluída, está envolvida no debate. É preciso lembrar, claro, o Irã de 1979, em que uma ditadura deu lugar a uma teocracia ainda mais autoritária. Para evitar um destino semelhante ao de “revoluções” como a iraniana, o Egito e a comunidade internacional precisam, daqui para a frente, seja quem for o comandante da transição política, persistir nesse caminho. Só assim o movimento que começou com a obsolescência dos ditadores árabes e está agora nas ruas do Egito pode dar origem à primeira grande onda democrática do século XXI.
José Antonio Lima Com Eliseu Barreira Junior,Juliano Machado e Mariana Sanches
O mais instável dos regimes políticos do mundo é a ditadura. Pode até durar décadas por conta da imposição da força, mas carece de um fundamento básico: a boa vontade dos que são governados por ela. O que o mundo vê agora no Egito é uma prova de que, cedo ou tarde, o povo se cansa dos autocratas. Não que seja fácil aposentar um ditador. Na semana passada, a imagem da massa que superlotava a Praça Tahrir – “liberdade”, em árabe –, no centro do Cairo, dava a impressão de que Hosni Mubarak, há 30 anos no poder, anunciaria o fim do regime em questão de horas. Até o fechamento desta edição, Mubarak continuava cambaleante, mas agarrado ao poder.
Em resposta, grupos pró-Mubarak invadiram a praça e investiram contra os manifestantes. Por quase seis horas, pedras, bombas incendiárias e disparos de armas de fogo vinham dos dois lados. Homens montados em cavalos e camelos, com chicotes e pedaços de pau, atacaram os manifestantes anti-Mubarak. Em poucos minutos, foram derrubados de suas montarias e espancados. As imagens lem-bravam outros levantes brutalmente sufocados, como os protestos por abertura política na Praça da Paz Celestial, em Pequim, ou as manifestações contra a reeleição fraudada de Mahmoud Ahmadinejad no Irã, em 2009. Nesses dois casos, a repressão sobressaiu – e os regimes autoritários persistem. Ainda não está claro que caminho o Egito seguirá, mas parece claro que pelo menos a ditadura de Mubarak está perto do fim.
O nascimento de uma democracia varia de acordo com cada país ou região. De certo modo, o fim das ditaduras costuma seguir um ritmo parecido com a bancarrota do célebre personagem do escritor americano Ernest Hemingway: “Gradualmente – e então de repente”. A democracia começa de forma lenta, latente, à medida que um regime autoritário se desgasta. E geralmente acelera nos momentos finais. As últimas grandes ondas de democratização do século XX, da América Latina ao Leste Europeu, tiveram essa característica.
O caso mais marcante foi a derrubada das ditaduras comunistas, na virada dos anos 80 para os 90. Por quatro décadas, os soviéticos sufocaram a soberania dessas nações ao impor seu modelo político-econômico. As revoltas eram debeladas, mas a insatisfação só aumentava. A União Soviética agonizou até o Muro de Berlim cair, em outubro de 1989. A partir daí, as ditaduras foram caindo como um castelo de cartas. Na Romênia, a velocidade e as circunstâncias da queda foram assustadoras. O ditador Nicolae Ceaucescu, com 24 anos de governo, enfureceu a população ao convocar um comício em Bucareste, em que os romenos seriam obrigados a clamar palavras de apoio ao tirano. O resultado foi uma mobilização ensandecida contra Ceausescu. Quatro dias depois, ele estava fuzilado, e seu regime extinto.
A Romênia foi um caso extremo, mas os princípios que regeram o fim do comunismo no Leste Europeu estão presentes nos levantes do Egito. Dos 22 países que formam a Liga Árabe, só três têm sistemas cujos elementos permitem falar numa democracia, ainda que imperfeita – Líbano, Kwait e Iraque. No restante, predominam autocratas que já passaram dos 70 anos de idade, com 20 a 30 no poder. Some a isso pobreza, desemprego e falta de liberdades fundamentais – e eis o caldo de fermentação para um futuro regime aberto.
O “Muro de Berlim” dos árabes foi o levante da Tunísia, no mês passado. Pela primeira vez na história da região, a força do povo nas ruas derrubou um ditador – Zine el-Abidine Ben Ali comandava o país desde 1987. As demais populações viram que poderiam fazer o mesmo. O Egito, foco do momento, pode ser o próximo a seguir o caminho tunisiano e há sinais de mudança em outros países da região. Uma onda democrática árabe pode estar a caminho. Mas o exemplo do Egito mostra que sair de uma ditadura para uma democracia não requer só vontade popular.
Embora frequentemente inspiradas pelos ideais de democracia e de participação popular, as transformações políticas implementadas na América Latina, no Leste Europeu e, agora, no Egito e no resto do mundo árabe nem sempre resultam numa democracia. Não bastam eleições para tornar um regime democrático. Uma democracia pressupõe poderes Executivo, Legislativo e Judiciário independentes, conceito que começou a ser traçado no século XVIII pelo filósofo francês Charles de Montesquieu. Somem-se à democracia representativa a necessidade de garantias das liberdades individuais amplas, de acesso a fontes de informação diversificadas e a não interferência da religião nas decisões do Estado.
Os regimes dos países têm sido classificados de acordo com critérios como a competitividade das eleições, a liberdade da imprensa e o clima de respeito às liberdades individuais. De acordo com a organização americana Freedom House, uma referência no monitoramento da democracia pelo mundo, 45% dos países entraram em 2011 na condição de livres. Somos quase 3 bilhões vivendo em Estados abertos. Entre eles, Brasil e Argentina, parte da onda de democratização da América Latina na década de 80, ou Estônia e Lituânia, ex-repúblicas soviéticas. Outros 31% dos países, com 1,5 bilhão de habitantes, são classificados como parcialmente livres. Nesse grupo estão países como a Venezuela, de Hugo Chávez, ou a Bolívia, cuja ditadura terminou em 1982, mas não foi substituída por um regime 100% democrático. Ou ainda países do Leste Europeu que, embora engolfados pela redemocratização, ainda não completaram sua transição, como a Ucrânia.
Antes que o Egito possa ser considerado um motor para uma onda de democracia no mundo árabe, ele terá de atravessar os percalços daquele que promete ser um conturbado período de transição. Há três décadas, Mubarak é sustentado por dois pilares poderosos, com fortes interesses na manutenção da estabilidade no Egito – os militares e as potências estrangeiras. Aos 82 anos, Mubarak é um homem teimoso, orgulhoso e indiferente aos anseios da população. Na única entrevista que concedeu na semana passada, à rede de TV americana ABC News, afirmou que “não liga” para o que falam dele. Mubarak parece disposto a fazer de tudo para evitar a humilhação de ser obrigado a renunciar. Por isso, mantinha até o fim da semana passada a decisão de ficar até setembro, quando estão previstas as eleições presidenciais. Ainda assim, seu futuro é incerto, uma vez que os pilares que o sustentam foram abalados pelos protestos. Alguns militares chegaram a tomar parte nos protestos populares. E o presidente Barack Obama, que comanda a principal potência estrangeira que sempre o apoiou, declarou que gostaria de vê-lo fora do poder imediatamente.
O Egito ainda não chegou, porém, ao “ponto de virada” de uma ditadura para uma democracia. Algumas vezes ele é súbito (como na Romênia); noutras, mais gradual (como no Brasil, onde se passaram cinco anos das grandes manifestações em defesa das eleições diretas até o primeiro pleito presidencial). Mubarak tem dançado um curioso balé na tentativa de se manter agarrado ao poder. Por enquanto, o que mais escandalizou a comunidade internacional foi a perseguição contra a imprensa estrangeira. As agressões a repórteres tiveram grande repercussão – dois jornalistas brasileiros foram detidos, interrogados e mandados de volta para o Brasil.
Os Estados Unidos e a União Europeia se manifestaram veementemente, na semana passada, em favor de reformas imediatas na política egípcia. O governo Obama parece disposto a enfrentar um dilema de que todos os ocupantes anteriores da Casa Branca se esquivaram – a dicotomia entre democracia e estabilidade no Egito. Washington fazia pressão para que Mubarak deixasse o cargo e desse espaço a um governo de transição, com participação dos oposicionistas. A figura-chave no processo seria Omar Suleiman, indicado por Mubarak como seu vice-presidente.
Suleiman é visto como o homem que poderia, ao mesmo tempo, negociar com a oposição e manter intactos os interesses dos militares e das potências estrangeiras no Egito. Ele é um ex-general, foi chefe do temido (pelos próprios egípcios) Serviço de Inteligência Nacional desde o primeiro dia do mandato de Mubarak e salvou a vida do ditador num atentado na Etiópia, em 1995. É seu principal aliado. Era considerado a “solução militar” para a sucessão de Mubarak, caso o ditador não conseguisse indicar seu filho, Gamal. Suleiman poderia aplacar os ânimos do governo de Israel. Como chefe da Inteligência do Egito, foi responsável por todas as negociações do governo em relação aos territórios palestinos, especialmente a Faixa de Gaza, comandada pelos radicais do grupo islâmico Hamas. “Ele seria a melhor opção para um governo interino. Para Israel, seria um grande alívio se Suleiman permanecesse no poder”, afirma Elie Podeh, especialista em relações árabes-israelenses da Universidade Hebraica de Jerusalém.
Outra função de Suleiman seria garantir os privilégios dos militares. A categoria é a principal beneficiada pelo acordo de ajuda militar com os Estados Unidos, que destinam cerca de US$ 1,5 bilhão por ano para o Egito. Esse dinheiro vai para a compra de armas e equipamentos (muitos americanos), mas também para o bolso dos militares, segundo apurou ÉPOCA. Cada um dos seis oficiais generais que atuam como ministros-assistentes do Ministério do Interior – a pasta que coordena as forças de segurança do Egito, incluindo a temida polícia – recebe US$ 50 mil por mês. Os militares são bem-vistos pela população egípcia. Seus membros mais graduados desfrutam uma vida nababesca num país em que 23% da população vive abaixo da linha da pobreza.
A oposição recebeu bem algumas concessões de Mubarak, mas não abre mão de sua renúncia
Ao mesmo tempo que respondeu de forma truculenta aos protestos populares, o regime egípcio fez uma série de concessões aos partidos oposicionistas. A primeira foi a própria nomeação de Omar Suleiman para a Vice-Presidência. Apesar de ligado a Mubarak, ele é o primeiro vice-presidente do Egito em 30 anos. Na semana passada, Suleiman chamou toda a oposição ao diálogo, inclusive a Irmandade Muçulmana, o antigo movimento islâmico que tem um passado de violência e foi o berço de grupos radicais, como a Al-Qaeda. O presidente do Parlamento (entidade controlada por Mubarak), Fatih Sorour, reconheceu que as últimas eleições foram fraudulentas, como a oposição já denunciara há meses. E o primeiro-ministro, Ahmed Shafiq (ex-colega de turma de Mubarak na Força Aérea e próximo do ditador), pediu desculpas pela violência na Praça Tahrir. Foram tentativas de reduzir a tensão e de apagar a imagem de que as forças de segurança do próprio governo estariam por trás dos crimes.
A oposição vê com bons olhos essas concessões, mas não abre mão da renúncia de Mubarak. “É preciso haver, com a saída de Mubarak, um sinal de que uma nova era vai começar, senão o caos no Egito não vai acabar”, disse a ÉPOCA Hassan Nafaa, professor de ciência política da Universidade do Cairo e um dos principais coordenadores da Associação Nacional para a Mudança. A associação é comandada por Mohamed El-Baradei, ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica, da ONU, e prêmio Nobel da Paz em 2005. Em tese, engloba todo o espectro de opositores, mas há claras divergências internas (leia o quadro). Um dos temores do bloco é que, uma vez que um acordo seja firmado entre governo e oposição, as massas de jovens nas ruas se sintam traídas. Outra preocupação, mais importante, é que, uma vez aceita a permanência de Mubarak, a pressão sobre o regime diminua e as reformas não sejam realizadas.
A palavra do regime não é encarada com seriedade pela oposição por um motivo simples: não é confiável. Na quinta-feira, a TV estatal egípcia anunciava que o proeminente oposicionista Ayman Nour, ex-candidato à Presidência em 2005 e preso pelo regime por quatro anos, negociava com o governo. Naquele momento, ele se encontrava sentado na sala de estar de sua casa, no Cairo, onde concedia entrevista a ÉPOCA. Na conversa, Nour admitiu que há divergências dentro da oposição, mas tentou minimizá-las. Confirmou que será candidato nas próximas eleições, o que prenuncia um confronto interno entre membros da Associação Nacional para a Mudança, como El-Baradei, considerado um candidato natural. Se isso ocorresse agora, provavelmente o grupo perderia força. Se ocorrer em um ambiente político em processo de democratização, pode ser saudável, pois aumentará o pluralismo da sociedade egípcia.
A maior dúvida a respeito do futuro da democracia no Egito e em todo o mundo árabe continua sendo o papel do islã e dos grupos radicais no país. Líderes seculares como Nour e El-Baradei têm defendido o diálogo com a Irmandade Muçulmana, argumentando que ela é uma força política que não pode ser desprezada, ainda que esteja na ilegalidade há décadas. Os acenos de Suleiman a uma aproximação com o grupo são uma mudança. “Os Estados ditatoriais árabes, com Mubarak à frente, alegavam que os Estados policiais que criaram eram a única barreira no caminho do extremismo islâmico”, diz Rashid Khalidi, professor de estudos árabes do Departamento de História da Universidade Colúmbia, nos Es-tados Unidos. Ao abrir as portas para a Irmandade Muçulmana, o regime egípcio tenta evitar excluir os partidos religiosos. Uma das características cardeais da democracia é aceitar a participação de todas as correntes de pensamento – desde que elas também aceitem a democracia como sistema político. Não é esse o caso dos grupos islâmicos em países como o Irã ou o Líbano. Apesar de hoje se declarar favorável ao regime democrático, o histórico da Irmandade Muçulmana oferece motivos legítimos para preocupação. O maior temor é que ela tente tornar o país uma teocracia como a iraniana. O líder espiritual do Irã, Ali Khamenei, disse enxergar no Egito o mesmo caminho que seu país trilhou, a partir da derrubada do xá, em 1979. “O despertar do povo islâmico egípcio é um movimento de liberação islâmico, e eu, em nome do governo iraniano, saúdo o povo egípcio e o povo tunisiano”, afirmou na sexta-feira.
O futuro de uma democracia egípcia passa pelo papel que o islã terá no novo regime
A rebelião popular no Egito, porém, não foi motivada nem comandada por religiosos. O motivo central dos protestos, iniciados há duas semanas, está claro: desde sua existência como Estado independente, em 1952, o país nunca soube o que é democracia. Teve só três presidentes – além de Mubarak, Anwar al-Sadat e Gamal Abdel Nasser, que derrubou a monarquia do rei Farouk. Após tantos anos de autoritarismo, o país quer ter o direito de escolher seus governantes pelo voto direto, livremente.
O Egito parece reunir as três condições básicas para se tornar protagonista do primeiro processo de democratização genuíno do mundo árabe, capaz de modificar de forma duradoura a história da região. Primeira: as potências estrangeiras estão pressionando por reformas. Segunda: as forças internas democráticas são ativas e estruturadas. Terceira: e a religião, em vez de ter sido excluída, está envolvida no debate. É preciso lembrar, claro, o Irã de 1979, em que uma ditadura deu lugar a uma teocracia ainda mais autoritária. Para evitar um destino semelhante ao de “revoluções” como a iraniana, o Egito e a comunidade internacional precisam, daqui para a frente, seja quem for o comandante da transição política, persistir nesse caminho. Só assim o movimento que começou com a obsolescência dos ditadores árabes e está agora nas ruas do Egito pode dar origem à primeira grande onda democrática do século XXI.
FONTE: ÉPOCA
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