Adotar a fórmula clássica exigiria uma refundação tão radical quanto a experimentada na esteira da Guerra Civil
Caos.
Na noite fatídica, 3N, apurações congelaram à espera da contagem de votos
enviados por correio em estados decisivos, enquanto Trump
declarava vitória na guerra ainda incerta. República de bananas: o
presidente contestava a apuração de milhões dessas cédulas, sugerindo a
declaração de um vencedor antes da contagem de todos os votos.
Aritmética
ocultista. Calculava-se, alta madrugada, as probabilidades de empate,
dependentes da repartição dos delegados nos dissidentes Maine e em Nebraska,
que fogem à regra do “vencedor leva tudo”. Mais uma vez, como há 20 anos, o
sufrágio desviava-se rumo à tortuosa estrada vicinal dos tribunais. E,
novamente, como em 2000 e 2016,
erguia-se o espectro da cisão
entre o voto popular e o Colégio Eleitoral.
Um
eleitor, um voto. A regra de ouro das democracias é estranha à democracia
americana. No seu lugar, inventou-se a regra do sufrágio estadual ponderado
pelo sistema do Colégio Eleitoral. O republicano George W. Bush triunfou, em
2000, por 271 a 266, mesmo perdendo por meio milhão de votos. Trump venceu, em
2016, por 304 a 227, perdendo por quase três milhões de votos.
História.
Os EUA nasceram, em 1776, como uma confederação das antigas colônias
britânicas, transformando-se na atual federação com a Constituição de 1787. Os
federalistas articularam um pacto entre as elites estaduais que assegurava a
cada uma delas as autonomias de tributar, impor taxas alfandegárias e conservar
o trabalho escravo. O artigo 2º da Constituição estabeleceu o Colégio
Eleitoral, concedendo às assembleias estaduais a prerrogativa de escolher os
delegados que elegem o presidente.
Nas
décadas seguintes, universalizou-se a prática de selecionar os delegados pelo
voto popular estadual e, em 1836, generalizou-se a regra do “vencedor leva
tudo”.
Filosofia.
A democracia é a vontade da maioria? Mais ou menos: democracia é a vontade
majoritária temperada por instituições que protegem valores perenes e os
direitos da minoria. O Colégio
Eleitoral foi justificado como vacina contra o populismo, a tirania
da maioria. O argumento corre paralelo ao outro, anacrônico e cada vez menos
invocado, da preservação da autonomia estadual e das liberdades dos estados
menos populosos. Há, porém, democracia quando o voto nacional majoritário pode
ser ignorado seguidamente?
Reforma.
Há duas décadas, desde o trauma da Flórida, crescem os clamores pela eliminação
do Colégio Eleitoral. Um eleitor, um voto —a fórmula clássica exigiria uma
refundação constitucional dos EUA tão radical quanto a experimentada na esteira
da Guerra Civil, entre 1865 e 1869, com as três emendas que aboliram a escravatura,
definiram a cidadania e proclamaram o direito universal de voto. Um caminho
alternativo, proposto por diversos estados, é a reforma do próprio Colégio
Eleitoral pelo estabelecimento da distribuição proporcional de delegados. A via
reformista seria uma ruptura com a tradição, mas cabe na moldura da
Constituição.
Reforma
impossível. A substituição da regra do “vencedor leva tudo” pela
proporcionalidade converteria o Colégio Eleitoral num espelho levemente
distorcido do voto popular. As mudanças demográficas dos EUA impulsionadas pela
expansão das grandes cidades e pelo crescimento relativo da minoria
latina tendem a inclinar fortemente o voto popular para o lado dos
democratas. Nesse cenário, é difícil imaginar a possibilidade de triunfos
republicanos num hipotético Colégio Eleitoral proporcional. Os estados
republicanos não renunciarão à tradição de quase dois séculos.
Guerra
civil. Os EUA têm apenas dois partidos que contam. O voto popular direto ou um
simulacro dele, pelo Colégio Eleitoral proporcional, significariam a virtual
eliminação da perspectiva de poder de um deles. Partido único? A nação desceria
o abismo de uma nova guerra civil antes disso.
*Demétrio
Magnoli, sociólogo,
autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em
geografia humana pela USP.
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