Se
previsões se confirmarem, americanos interrompem peça enquanto se pode ir dela
Comédias
têm três atos, ensinam os clássicos da dramaturgia. Tragédias têm cinco. Se as
projeções se confirmarem num país dividido, a comédia Donald Trump terá chegado à
última cena com o esperneio final – e patético – do presidente dos Estados
Unidos.
É
possível delinear os três atos da comédia Trump a partir da leitura de O Povo Contra a Democracia, do
alemão Yascha Mounk.
O livro disseca esse tipo de político que, sem ser propriamente de esquerda ou
de direita, fustiga uma e envergonha a outra: o populista.
O primeiro ato de um populista típico é vender soluções simples – e erradas – para problemas complexos. No mundo globalizado, governar não é trivial. Não é possível, por exemplo, criar empregos por decreto, tampouco evitar que eles migrem para outros países. Nem combater pandemias com poções mágicas. Líderes modernos – como Angela Merkel, Emmanuel Macron ou António Costa, para citar exemplos de vários lados do espectro político – são aqueles que conseguem explicar os limites de um governo a seus eleitores. Tratam-nos como adultos.
Um
populista, por seu turno, infantiliza os que votaram nele. Trump prometeu
tornar os Estados Unidos novamente
grandes – e, ao longo de sua presidência, tratou os cidadãos americanos como
crianças a quem se promete um chocolate para que parem de chorar. Inventou um
muro para evitar que imigrantes mexicanos disputassem postos de trabalho nos
Estados Unidos – e seu governo acabou sendo aquele em que mais americanos
perderam seus empregos desde a Segunda Guerra. Eis o segundo ato da comédia
populista. Os embustes vendidos na campanha eleitoral são esmagados pela
realidade.
No
terceiro ato, o populista diz que a culpa não é dele. Se algo deu errado, é
porque os inimigos não deixaram o governante trabalhar. Por “inimigos”
entendam-se a ONU, o Congresso, os “comunistas”, a imprensa, os chineses, os
mexicanos. Ou, ainda, os cientistas que sugeriam medidas sensatas contra o
coronavírus. Se as projeções se confirmarem, será porque a maioria dos
americanos não engoliu a fake news dos inimigos e escolheu Joe Biden presidente
da República, encerrando o terceiro ato. Fim da comédia. Cai o pano.
Trump
já é, e continuará sendo, um caso de estudo em ciência política. Poucos o
entenderam melhor que Mounk, intelectual que milita contra o populismo. Suas
trincheiras são o site “Persuasion”, uma rede de defesa da democracia, e um
podcast com o nome sugestivo “The Good Fight”, “O Bom Combate”. Nos episódios,
Mounk entrevista expoentes da reflexão política num gradiente amplo de
convicções, de Anne Applebaum a Francis Fukuyama.
O
maior risco de um país governado por um populista é a reeleição. Neste cenário,
o ciclo continua: o governante diz que a culpa não é dele, os eleitores
acreditam e o reconduzem ao cargo. A peça evolui para um quarto ato, em que o
populista dobra a aposta nas soluções simples e erradas. As cenas finais
mostram a corrosão das instituições. Temos aí os cinco atos de uma tragédia. As
cortinas da democracia se fecham.
Se
as projeções se confirmarem, será porque a maior parte dos americanos, cansados
de ser tratados como crianças, decidiram que a América deveria ser, novamente,
gente grande no mundo. Se as projeções se confirmarem, os americanos terão
evitado que a comédia se transformasse em tragédia, ao interromper a peça
enquanto ainda era possível rir dela.
*Jornalista, escritor e professor da Faap e do Insper
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