O Estado de S. Paulo.
Favoritos à reeleição aproveitam-se de erros crassos dos constituintes de 1988 e da ditadura dos partidos
Se as pesquisas de opinião estiverem fazendo previsões minimamente razoáveis, é muito provável que a disputa pela Presidência da República levará ao segundo turno a inevitável reeleição do petista Lula da Silva, condenado por corrupção nas instâncias iniciais do Judiciário, ou de seu inimigo preferencial, o capitão-terrorista Jair Bolsonaro. Ambos são caudatários da crença fanática de seguidores e da composição conveniente dos tribunais superiores, que jogaram no lixo inúmeras evidências da existência de uma prática sistêmica da corrupção das gestões sob comando de um partido soit-disant de trabalhadores. E de prosélitos que desconhecem o sentido dicionarizado da palavra mito (mentira) e não dão a mínima para promessas de campanha nunca realizadas pelo outro, como, por exemplo, o fim da reeleição.
Essa autêntica praga da frágil democracia
praticada no Brasil, a bem da verdade, não decorre da enxundiosa e defeituosa
Carta Magna vigente. Mas da primeira das muitas emendas que lhe foram impostas
para atender a conveniências das duas organizações partidárias que tomaram as
decisões importantes dos últimos anos: a negação do princípio democrático do
rodízio no governo, tão importante quanto os pleitos que escolhem os
mandatários, a duração dos mandatos e a autonomia harmônica dos Poderes da
República. A versão bananeira do mandato executivo de oito anos com um recall
no meio, praticada nos Estados Unidos desde a fundação, tem característica
injustificável de perene permanência no poder: lá o chefe do governo se mantém
no poder uma vez e, depois, se recolhe à necessária aposentadoria. Cá, um
chefão partidário pode se reeleger permanentemente com um quadriênio de
intervalo. Daí a eventualidade de reeleição inexorável no segundo turno da
próxima eleição.
Neste oposto do “país das maravilhas”,
visitado na ficção por Alice, personagem do britânico Lewis Carroll, criouse a
figura, indesejável e extintora da igualdade de oportunidades propiciada pelos
pais fundadores ianques, do presidente perpétuo. O erro, cometido para atender
ao interesse especial de um grupo no poder no segundo mandato pós-constituição
de 1988, condenará a Pátria espoliada ao eterno empobrecimento pela corrupção
consensual, vil e demolidora, que fará desfilar nos palanques de festas cívicas
figuras execráveis de figurões de uma elite bilionária e insensível. Elas se
apropriam de forma criminosa até de conceitos nobres, como a liberdade
individual e de conquistas societárias, denominadas de sociais, na apropriação
até do sentido das palavras, como no domínio do Grande Irmão de George Orwell,
em 1984.
O ano começa sob o signo duplamente absurdo
de um comandante perpétuo, que afasta e, depois, volta a entronizar o sócio,
apontado como adversário. O PT, que pareceu se extinguir nas últimas eleições,
ressuscita pelas mãos do vitorioso do pleito federal de 2018, que, por sua vez,
se mantém no palanque e na perspectiva da subida da rampa do palácio pela
necessidade do falso oposto. Como nos espetáculos de humor macabro, um é a
escada do outro, que, no capítulo seguinte da farsa dolorosa, assumirá o trono
subindo nos ombros que agora o sustentam.
O resultado é desastroso, trágico como a
vingança de Medeia contra Jasão. A polarização forçada, que gera a alternância
dos opostos, produz o empobrecimento democrático (permita o trocadilho irônico
e infame) de toda a Nação, que paga caro demais o preço da ilusão. O sonho de
Bolsonaro e Lula é um mandato futuro, sabe-se lá em qual ano, ou em que
decênio, quiçá em que século, se considerarmos que ambos têm herdeiros, alcançar
o absolutismo, encarnado pela Rainha de Copas, de Alice, que mandava decepar a
cabeça de quem a contrariasse.
A colheita nefasta dessa permanência vai
deixando ruínas por onde passa: os prejuízos da Petrobrás, o desmantelamento da
instrução pública, a negação do excelente serviço de saúde estatal, o
desemprego crônico em níveis insuportáveis, a falência do Estado e das
empresas, a miséria do povo e o empobrecimento da classe média são a falência
visível deste anti-alice no país dos absurdos. O recuo no combate à corrupção,
a negação a tradições que se consolidavam, como os esquemas de imunização do
SUS, abatidos pela crença tétrica do bolsonarismo mortal, a devastação
descarada do meio ambiente, o recrudescimento da violência urbana e rural e
outros efeitos diretos do abandono do estatuto do desarmamento são flagrantes
ocultos na propaganda de charlatães e homicidas militantes.
O Brasil, depois de submetido à dicotomia
da corrupção partidária e ideológica e à demolição negocista miliciana, só
sairá dessa profecia, que nem Cassandra ousaria apregoar, se aproveitar mais
esta chance de evitar a marcha da desabalada correria de um rebanho tresmalhado
de cordeiros rumo ao pélago final. Será um desperdício irreparável adiá-la por
mais um quadriênio. Pode não ser o caso de gritar agora ou nunca, pois nações
não se extinguem, mas os exemplos de Argentina, Venezuela e Haiti não devem ser
desprezados. Quando a doença se manifesta, não é possível prevenir, há que
remediar. E já.
*Jornalista, poeta e escritor
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