Valor Econômico
Discurso chocante de J.D.Vance aumenta sensação de abandono do continente na guerra da Ucrânia
A cena se desenrolou agora em Munique , mas
não faltou quem sentisse os ecos de uma outra cúpula internacional na mesma
cidade, em 29 de setembro de 1938. O discurso do vice-presidente americano
J.D.Vance a treze chefes de Estado ou de governo da Europa essa sexta-feira
deixou claro que o continente não irá mais contar com a proteção dos Estados
Unidos diante de um avanço da Rússia, a não ser que a extrema-direita passe a
ser aceita como parceira de alianças.
A chantagem ganha uma primeira alavanca para se amplificar porque se dá na reta final da campanha eleitoral na Alemanha, em que a extremista AfD pode dar um salto, embalada pela propaganda proporcionada por Elon Musk e pela comoção de um atentado cometido por um imigrante afegão, ocorrido em Munique mesmo, na véspera do discurso de Vance.
O achaque americano torna-se ainda mais grave
pelo que Vance não disse: nenhuma palavra de garantia foi dada a Ucrânia, em
guerra com a Rússia desde fevereiro de 2022. Donald Trump já abriu conversações
diretas com Vladimir Putin, excluindo os ucranianos, para negociar o destino da
Ucrânia. Em linhas gerais foi o que o britânico Neville Chamberlain fez em
1938, cedendo territórios da Tchecoslováquia a Hitler, e voltando triunfal à
Inglaterra, brandindo um papel com os termos do acordo e falando que era chegada
“a paz de nosso tempo”.
Foi este clima de choque generalizado que foi
constatado pelo cientista teuto-brasileiro Oliver Stuenkel, que participa da
Conferência de Segurança de Munique como convidado. A Conferência de Munique é
uma espécie de Davos da geopolítica: reúne especialistas, autoridades na área
da Defesa e estadistas, não apenas da Europa.
Já na quinta-feira integrantes da Conferência
tinham expectativas ruins sobre a fala que Vance faria. Sabiam que viria
interferência na política europeia, mas esperavam alguma salvaguarda em relação
à Ucrânia. A suspeita de que Vance não estava convencido da relevância da
Europa tornou-se certeza.
“A Europa perdeu um tempo valioso depois da
eleição de Trump ao não montar uma proposta. Os governos se iludiram por
completo em achar que podiam mudar a opinião de Trump e agora se culpam por não
ter plano B e pela falta total de liderança”, comentou Stuenkel.
A crise de liderança se dá em Paris e Berlim,
os dois grandes focos da política europeia desde sempre. O presidente francês
Emmanuel Macron está fragilizado e o chanceler alemão Olaf Scholz, de saída. A
primeira-ministra Giorgia Meloni, defensora da Ucrânia e ideologicamente uma
radical de direita, poderia ser uma interlocutora, mas falta à Itália
reconhecimento dos pares para liderar o bloco, comenta Stuenkel. Além disso a
italiana tem péssima relação com Macron e guarda distância da vertigem que
engolfa o continente. Sequer mandou um representante para a cúpula de Munique,
algo que foi feito até pelo minúsculo Principado de Andorra.
A crise de liderança pode se agravar depois
da eleição parlamentar alemã. Uma vitória ampla da CDU, partido da direita
tradicional, pode fazer com que Friedrich Merz forme um governo com uma aliança
restrita a um partido, a principio o SPD de Scholz.
Stuenkel não descarta, contudo, o risco da
AfD despontar como o partido mais votado. “Não é o que as pesquisas indicam,
mas existe a questão do voto envergonhado, da falta de confiança do eleitorado
em pesquisadores, da desinformação nas redes sociais, do efeito de um ataque de
imigrantes na última semana da campanha. É muito difícil saber que efeito isso
vai produzir”. Sem um governo forte da CDU, a Alemanha pode correr o risco da
paralisia. Natural de Dusseldorf, o professor de Relações Internacionais da FGV
não se habilitou a tempo para votar.
A Europa fraca permitirá a Putin sugerir algo
parecido com uma nova Ialta, a conferência em que Estados Unidos, Reino Unido e
União Soviética dividiram o mundo em zonas de influência. A Europa,
evidentemente, ficaria sobre o tacão de Moscou.
O lado bom do medo, de acordo com Stuenkel, é
a sensação de urgência. “Pelo menos agora as pessoas estão começando a ter uma
noção de algo precisa acontecer. Articular um plano em relação ao futuro da
Ucrânia”, disse.
A dimensão do medo da Europa pode ser dada
pela pesquisa do índice de percepção de risco que a Conferência divulga
anualmente. Este índice é apurado a partir de pesquisas de opinião pública
simultâneas em onze países, Brasil incluído. Mede-se o grau de preocupação da
população em relação a 33 riscos, com cinco métricas: qual o risco do tema para
seu país, se este risco crescerá ou não no próximo ano, quão severo podem ser
os danos e quão iminentes eles são. Dessas cinco métricas , medidas por notas
de zero a dez, se extrai um índice. O medo dos Estados Unidos na Alemanha
passou de 28 para 49 pontos em um ano. No Canadá, de 22 para 43. Na França, de
21 para 33 pontos.
A apreensão com a Rússia segue em alta , com
a Alemanha novamente sendo a campeã da preocupação.
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