Folha de S. Paulo / The New York Times
Há uma inversão total em relação a 25 anos
atrás, quando chineses precisavam de transferência de tecnologia americana
Quando olho para a enxurrada
de decretos e tarifas que o presidente Donald Trump emitiu
desde que assumiu a Presidência dos Estados
Unidos, tenho medo de estar assistindo à versão da vida real daquele
comercial do Conselho de Planejadores Financeiros Certificados que tenta
mostrar por que a especialização é realmente importante.
No comercial, um cirurgião entra em um quarto
de hospital e conhece sua paciente. Primeiro, o médico a chama de Brenda e ela
responde: "É Carol". Em seguida, o médico pergunta: "Então, em
que perna estamos operando?" E ela responde: "Você quer dizer
braço". O médico, então, tenta afastar sua preocupação dizendo: "Está
tudo conectado".
Agora totalmente aterrorizada, a paciente finalmente pergunta ao cirurgião: "Tem certeza de que é um ortopedista?" O médico responde: "Na verdade, sou de Sagitário".
Perdoe meu ceticismo, mas tenho sérias dúvidas sobre o grau em que Trump e sua equipe de cirurgiões orçamentários realmente estudaram não apenas como implementar todos os cortes, tarifas, congelamentos e demissões que eles se apressaram em fazer, mas também os efeitos de longo prazo que eles terão sobre a governança, o comércio e os investimentos americanos como um todo.
De quem é o trabalho que estamos observando
aqui? O de um cirurgião ou o de um sagitariano? Estamos vendo o desdobramento
de um plano que foi testado e modelado durante meses, com todas as implicações
totalmente compreendidas?
Ou o desdobramento de um guardanapo
de papel do bar de Mar-a-Lago, com algumas ideias mal elaboradas esboçadas
e, em seguida, uma discussão caótica entre Trump, seus assessores e
lobistas sobre
quais setores serão atingidos e quais serão poupados?
Vou optar pelo guardanapo. É difícil para mim
dizer isso de uma maneira melhor do que um editorial do Wall Street Journal,
normalmente pró-Trump, intitulado "A Guerra Comercial Mais Estúpida da
História", que diz que "Trump imporá tarifas de 25% sobre o Canadá e
o México sem nenhuma boa razão".
Mas as tarifas impulsivas de Trump —que ele
parece anunciar e suspender por capricho— são sintomáticas de um desafio mais
profundo para os fabricantes americanos sobre o qual quero escrever hoje: como
as empresas americanas acompanham o ritmo da China nos setores do futuro,
como inteligência artificial (IA), chips avançados, veículos elétricos,
tecnologia limpa e carros autônomos,
quando essas empresas estão constantemente sendo sacudidas por presidentes
democratas e republicanos em um mundo em
que precisam fazer apostas multibilionárias com cinco anos de antecedência.
E elas precisam fazer essas apostas enquanto competem com a China, cujo
regime acorda todos os dias e pergunta aos fabricantes "como posso
ajudá-los?", além de "vamos ter uma visão de longo prazo juntos sobre
como podemos vencer globalmente".
Para entender isso melhor, visitei a sede da
Ford Motor em Dearborn, Michigan, na semana passada, para ver como a
empresa está
competindo com o rolo compressor de veículos elétricos da China. Quase
metade das vendas de carros novos na China é de veículos elétricos a bateria ou
híbridos elétricos plug-in, e suas empresas controlam
cerca de 60% do mercado global desses modelos.
Isso se deve, em grande parte, ao fato de que
Pequim fabrica as melhores baterias para carros do mundo, e qualquer montadora
dos EUA que queira ser competitiva no setor de veículos elétricos hoje precisa
da transferência de tecnologia de baterias chinesas.
Vou repetir um pouco mais devagar: para serem
competitivas globalmente nos carros do futuro, as montadoras dos
EUA precisam de transferência de tecnologia de baterias da China.
Estamos falando de uma inversão
total em relação a 25 anos atrás, quando a China precisava de transferência
de tecnologia da General Motors e da Ford para construir carros competitivos
internacionalmente.
Esta é a história em poucas palavras.
Atualmente, o setor automobilístico é totalmente global. Uma empresa como a
Ford precisa equilibrar o desejo de seus clientes por motores de combustão
tradicionais, híbridos plug-in ou veículos totalmente elétricos com recursos
cada vez maiores de direção autônoma.
Mas ela precisa fazer isso em um mundo no
qual a China
fez uma grande aposta em veículos elétricos e está perfeitamente satisfeita em
ignorar o mercado dos EUA por enquanto e vencer a Ford e outros fabricantes
americanos no Brasil, na Indonésia,
na Europa e
na África.
Portanto, se a Ford ignorar totalmente o
negócio de veículos elétricos, ela entregará o resto do mundo para a China —e
corre o risco de acordar um dia, daqui a cinco anos, e descobrir que a maior
parte do mundo está usando os veículos elétricos do país asiático—
e ficará apenas com os EUA.
Para evitar esse desastre, a Ford, assim como
outras montadoras americanas, aproveitou os incentivos oferecidos pelo
governo Joe
Biden para construir grandes fábricas de veículos elétricos e baterias
em solo americano.
A Ford está quase concluindo o BlueOval
Battery Park, de 1,7 milhão km2, em Marshall, Michigan, que deve iniciar a
produção de baterias de fosfato de ferro e lítio (LFP) em 2026 para os seus
veículos elétricos.
A instalação é de propriedade integral da
montadora —um investimento de aproximadamente US$ 2 bilhões—, mas as baterias
que ela produzirá para seus veículos elétricos são baseadas na tecnologia LFP
licenciada da gigante chinesa de baterias CATL. Espera-se que sejam criados
cerca de 1.700 empregos. Teria sido mais, mas houve uma desaceleração nas
vendas de veículos elétricos nos EUA devido à falta de estações de recarga.
A fábrica Marshall foi originalmente
planejada para ser construída no México, mas devido aos incentivos de Biden, a
Ford a transferiu para o Michigan —exatamente como o sistema deveria
funcionar: Dar
às nossas empresas automotivas créditos fiscais para produção e
consumo até que o setor ganhe escala e possa sobreviver por conta própria.
Exatamente o que a China faz.
Mas a Ford precisava de um parceiro chinês
para as baterias. Atualmente, nenhum fabricante americano de baterias pode se
equiparar às baterias CATL, que carregam mais rápido e vão mais longe.
"Atualmente, os carros estão se tornando
dispositivos de transporte digital", disse o CEO da Ford, Jim Farley. E a
China está dez anos à frente na fabricação das baterias para esses carros e na
criação dessa experiência de direção digital completa, disse ele.
"Portanto, a maneira de competirmos com
eles é obter
acesso à sua propriedade intelectual da mesma forma que eles
precisavam da nossa há 20 anos e, em seguida, usar nosso ecossistema inovador,
a engenhosidade americana, nossa grande escala e nossa intimidade com o cliente
para vencê-los globalmente. Esta será uma das corridas mais importantes para
salvar nossa economia industrial."
Para isso, a Ford também está se preparando
para começar a contratar funcionários para a fábrica BlueOval City que, ao
preço de US$ 5,6 bilhões, com 14,6 km2, ela está concluindo na cidade de
Stanton, no oeste do Tennessee.
O local inclui uma nova instalação de
fabricação de veículos elétricos e baterias e um parque de fornecedores, e
também oferecerá programas educacionais para "treinamento técnico,
educação para trabalhadores já formados e programas de ensino fundamental e
médio, incluindo experiências de aprendizagem baseadas no trabalho, com ênfase
em Stem [sigla para ciência, tecnologia,
engenharia e matemática em
inglês]" para "preparar
a próxima geração para construir o futuro do veículo elétrico nos
EUA".
Parece um plano muito bom. Mas então Trump
substituiu Biden no poder.
Pouco depois de tomar posse —e sem nenhuma
consulta prévia à Ford ou, aparentemente, a qualquer outra montadora dos EUA—
Trump revogou
o decreto de Biden de 2021 que buscava garantir que metade de todos os veículos novos
vendidos nos EUA até 2030 fossem elétricos.
O novo presidente também ordenou que a
distribuição de fundos governamentais não utilizados para estações de recarga
de veículos de um fundo de US$ 5 bilhões fossem suspensas e disse que estava
considerando eliminar os créditos fiscais para veículos elétricos —justamente o
que fez a Ford apostar maciçamente nessas duas novas fábricas.
Este é exatamente o tipo de pensamento míope
de parar e começar que nos colocou nessa confusão em primeiro lugar. Meus
compatriotas americanos, vocês sabem por que estamos tão atrasados em relação à
China em relação às baterias para veículos elétricos? Por dois motivos.
Primeiro, a China
forma muito mais engenheiros elétricos e de automóveis do que nós. Em
segundo lugar, os inovadores dos EUA inventaram a tecnologia revolucionária de
baterias LFP da CATL para veículos elétricos, mas a cederam à China.
O jeito americano é: inventar, ignorar, dar
um salto para frente com uma administração e depois dar um salto para trás com
a próxima. É uma loucura total. Assim como as adjacências de aço, carvão,
motores de combustão e trabalho manual criaram um efeito multiplicador no
século 20, o ecossistema
de veículos elétricos, IA, robótica, baterias avançadas, tecnologia limpa,
sistemas de direção autônoma e trabalho mental digitalizado fará o mesmo no
século 21. Se os EUA se ausentarem de qualquer parte desse ecossistema, serão
deixados para trás.
As tarifas só fazem com que um país ganhe
tempo para que suas empresas possam fazer as mudanças necessárias para competir
sem muros. A estratégia de Trump é prejudicar
as exportações de nossas montadoras com um muro de tarifas e, em
seguida, atirar nas costas delas por trás do muro.
Se Trump tivesse bom senso, ele se diria a
favor de todos os itens acima —carros a gasolina, híbridos plug-in, EVs
totalmente elétricos e carros autônomos. Tudo o que deveria importar para ele é
que os americanos comprassem produtos americanos.
Além disso, para garantir que os grandes
fabricantes americanos de veículos elétricos pudessem ganhar escala, ele
deveria usar o dinheiro das tarifas para fazer o que os "idiotas
democratas progressistas" se recusaram a fazer: aprovar um projeto de lei
para construir
uma rede nacional de transmissão e uma rede de estações de
carregamento rápido, para que qualquer pessoa que compre um veículo
elétrico nunca
precise se preocupar com viagens de longa distância.
É assim que se faz a grandeza dos EUA.
Qualquer coisa menor do que isso é fingimento.
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