segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Como Trump está transformando os EUA na China dos anos 2000 - Thomas L. Friedman

Folha de S. Paulo / The New York Times

Há uma inversão total em relação a 25 anos atrás, quando chineses precisavam de transferência de tecnologia americana

Quando olho para a enxurrada de decretos e tarifas que o presidente Donald Trump emitiu desde que assumiu a Presidência dos Estados Unidos, tenho medo de estar assistindo à versão da vida real daquele comercial do Conselho de Planejadores Financeiros Certificados que tenta mostrar por que a especialização é realmente importante.

No comercial, um cirurgião entra em um quarto de hospital e conhece sua paciente. Primeiro, o médico a chama de Brenda e ela responde: "É Carol". Em seguida, o médico pergunta: "Então, em que perna estamos operando?" E ela responde: "Você quer dizer braço". O médico, então, tenta afastar sua preocupação dizendo: "Está tudo conectado".

Agora totalmente aterrorizada, a paciente finalmente pergunta ao cirurgião: "Tem certeza de que é um ortopedista?" O médico responde: "Na verdade, sou de Sagitário".

Perdoe meu ceticismo, mas tenho sérias dúvidas sobre o grau em que Trump e sua equipe de cirurgiões orçamentários realmente estudaram não apenas como implementar todos os cortes, tarifas, congelamentos e demissões que eles se apressaram em fazer, mas também os efeitos de longo prazo que eles terão sobre a governança, o comércio e os investimentos americanos como um todo.

De quem é o trabalho que estamos observando aqui? O de um cirurgião ou o de um sagitariano? Estamos vendo o desdobramento de um plano que foi testado e modelado durante meses, com todas as implicações totalmente compreendidas?

Ou o desdobramento de um guardanapo de papel do bar de Mar-a-Lago, com algumas ideias mal elaboradas esboçadas e, em seguida, uma discussão caótica entre Trump, seus assessores e lobistas sobre quais setores serão atingidos e quais serão poupados?

Vou optar pelo guardanapo. É difícil para mim dizer isso de uma maneira melhor do que um editorial do Wall Street Journal, normalmente pró-Trump, intitulado "A Guerra Comercial Mais Estúpida da História", que diz que "Trump imporá tarifas de 25% sobre o Canadá e o México sem nenhuma boa razão".

Mas as tarifas impulsivas de Trump —que ele parece anunciar e suspender por capricho— são sintomáticas de um desafio mais profundo para os fabricantes americanos sobre o qual quero escrever hoje: como as empresas americanas acompanham o ritmo da China nos setores do futuro, como inteligência artificial (IA), chips avançados, veículos elétricos, tecnologia limpa e carros autônomos, quando essas empresas estão constantemente sendo sacudidas por presidentes democratas e republicanos em um mundo em que precisam fazer apostas multibilionárias com cinco anos de antecedência. E elas precisam fazer essas apostas enquanto competem com a China, cujo regime acorda todos os dias e pergunta aos fabricantes "como posso ajudá-los?", além de "vamos ter uma visão de longo prazo juntos sobre como podemos vencer globalmente".

Para entender isso melhor, visitei a sede da Ford Motor em Dearborn, Michigan, na semana passada, para ver como a empresa está competindo com o rolo compressor de veículos elétricos da China. Quase metade das vendas de carros novos na China é de veículos elétricos a bateria ou híbridos elétricos plug-in, e suas empresas controlam cerca de 60% do mercado global desses modelos.

Isso se deve, em grande parte, ao fato de que Pequim fabrica as melhores baterias para carros do mundo, e qualquer montadora dos EUA que queira ser competitiva no setor de veículos elétricos hoje precisa da transferência de tecnologia de baterias chinesas.

Vou repetir um pouco mais devagar: para serem competitivas globalmente nos carros do futuro, as montadoras dos EUA precisam de transferência de tecnologia de baterias da China.

Estamos falando de uma inversão total em relação a 25 anos atrás, quando a China precisava de transferência de tecnologia da General Motors e da Ford para construir carros competitivos internacionalmente.

Esta é a história em poucas palavras. Atualmente, o setor automobilístico é totalmente global. Uma empresa como a Ford precisa equilibrar o desejo de seus clientes por motores de combustão tradicionais, híbridos plug-in ou veículos totalmente elétricos com recursos cada vez maiores de direção autônoma.

Mas ela precisa fazer isso em um mundo no qual a China fez uma grande aposta em veículos elétricos e está perfeitamente satisfeita em ignorar o mercado dos EUA por enquanto e vencer a Ford e outros fabricantes americanos no Brasil, na Indonésia, na Europa e na África.

Portanto, se a Ford ignorar totalmente o negócio de veículos elétricos, ela entregará o resto do mundo para a China —e corre o risco de acordar um dia, daqui a cinco anos, e descobrir que a maior parte do mundo está usando os veículos elétricos do país asiático— e ficará apenas com os EUA.

Para evitar esse desastre, a Ford, assim como outras montadoras americanas, aproveitou os incentivos oferecidos pelo governo Joe Biden para construir grandes fábricas de veículos elétricos e baterias em solo americano.

A Ford está quase concluindo o BlueOval Battery Park, de 1,7 milhão km2, em Marshall, Michigan, que deve iniciar a produção de baterias de fosfato de ferro e lítio (LFP) em 2026 para os seus veículos elétricos.

A instalação é de propriedade integral da montadora —um investimento de aproximadamente US$ 2 bilhões—, mas as baterias que ela produzirá para seus veículos elétricos são baseadas na tecnologia LFP licenciada da gigante chinesa de baterias CATL. Espera-se que sejam criados cerca de 1.700 empregos. Teria sido mais, mas houve uma desaceleração nas vendas de veículos elétricos nos EUA devido à falta de estações de recarga.

A fábrica Marshall foi originalmente planejada para ser construída no México, mas devido aos incentivos de Biden, a Ford a transferiu para o Michigan —exatamente como o sistema deveria funcionar: Dar às nossas empresas automotivas créditos fiscais para produção e consumo até que o setor ganhe escala e possa sobreviver por conta própria. Exatamente o que a China faz.

Mas a Ford precisava de um parceiro chinês para as baterias. Atualmente, nenhum fabricante americano de baterias pode se equiparar às baterias CATL, que carregam mais rápido e vão mais longe.

"Atualmente, os carros estão se tornando dispositivos de transporte digital", disse o CEO da Ford, Jim Farley. E a China está dez anos à frente na fabricação das baterias para esses carros e na criação dessa experiência de direção digital completa, disse ele.

"Portanto, a maneira de competirmos com eles é obter acesso à sua propriedade intelectual da mesma forma que eles precisavam da nossa há 20 anos e, em seguida, usar nosso ecossistema inovador, a engenhosidade americana, nossa grande escala e nossa intimidade com o cliente para vencê-los globalmente. Esta será uma das corridas mais importantes para salvar nossa economia industrial."

Para isso, a Ford também está se preparando para começar a contratar funcionários para a fábrica BlueOval City que, ao preço de US$ 5,6 bilhões, com 14,6 km2, ela está concluindo na cidade de Stanton, no oeste do Tennessee.

O local inclui uma nova instalação de fabricação de veículos elétricos e baterias e um parque de fornecedores, e também oferecerá programas educacionais para "treinamento técnico, educação para trabalhadores já formados e programas de ensino fundamental e médio, incluindo experiências de aprendizagem baseadas no trabalho, com ênfase em Stem [sigla para ciênciatecnologia, engenharia e matemática em inglês]" para "preparar a próxima geração para construir o futuro do veículo elétrico nos EUA".

Parece um plano muito bom. Mas então Trump substituiu Biden no poder.

Pouco depois de tomar posse —e sem nenhuma consulta prévia à Ford ou, aparentemente, a qualquer outra montadora dos EUA— Trump revogou o decreto de Biden de 2021 que buscava garantir que metade de todos os veículos novos vendidos nos EUA até 2030 fossem elétricos.

O novo presidente também ordenou que a distribuição de fundos governamentais não utilizados para estações de recarga de veículos de um fundo de US$ 5 bilhões fossem suspensas e disse que estava considerando eliminar os créditos fiscais para veículos elétricos —justamente o que fez a Ford apostar maciçamente nessas duas novas fábricas.

Este é exatamente o tipo de pensamento míope de parar e começar que nos colocou nessa confusão em primeiro lugar. Meus compatriotas americanos, vocês sabem por que estamos tão atrasados em relação à China em relação às baterias para veículos elétricos? Por dois motivos. Primeiro, a China forma muito mais engenheiros elétricos e de automóveis do que nós. Em segundo lugar, os inovadores dos EUA inventaram a tecnologia revolucionária de baterias LFP da CATL para veículos elétricos, mas a cederam à China.

O jeito americano é: inventar, ignorar, dar um salto para frente com uma administração e depois dar um salto para trás com a próxima. É uma loucura total. Assim como as adjacências de aço, carvão, motores de combustão e trabalho manual criaram um efeito multiplicador no século 20, o ecossistema de veículos elétricos, IA, robótica, baterias avançadas, tecnologia limpa, sistemas de direção autônoma e trabalho mental digitalizado fará o mesmo no século 21. Se os EUA se ausentarem de qualquer parte desse ecossistema, serão deixados para trás.

As tarifas só fazem com que um país ganhe tempo para que suas empresas possam fazer as mudanças necessárias para competir sem muros. A estratégia de Trump é prejudicar as exportações de nossas montadoras com um muro de tarifas e, em seguida, atirar nas costas delas por trás do muro.

Se Trump tivesse bom senso, ele se diria a favor de todos os itens acima —carros a gasolina, híbridos plug-in, EVs totalmente elétricos e carros autônomos. Tudo o que deveria importar para ele é que os americanos comprassem produtos americanos.

Além disso, para garantir que os grandes fabricantes americanos de veículos elétricos pudessem ganhar escala, ele deveria usar o dinheiro das tarifas para fazer o que os "idiotas democratas progressistas" se recusaram a fazer: aprovar um projeto de lei para construir uma rede nacional de transmissão e uma rede de estações de carregamento rápido, para que qualquer pessoa que compre um veículo elétrico nunca precise se preocupar com viagens de longa distância.

É assim que se faz a grandeza dos EUA. Qualquer coisa menor do que isso é fingimento.

 

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