O Globo
Desafio requer colaboração estreita entre a academia, instituições da sociedade civil, associações setoriais, agências reguladoras e poder público
O aplicativo chinês DeepSeek-R1, lançado em 20 de janeiro, “abalou o mundo” pelos resultados comparáveis, ou até superiores, aos similares americanos mais avançados, aparentemente a um custo consideravelmente menor. Em poucos dias, assumiu a liderança entre os aplicativos mais bem avaliados e mais baixados na App Store, provocando, em 27 de janeiro, uma perda aproximada de US$ 1 trilhão no valor de mercado das grandes empresas de tecnologia americanas. A queda refletiu a expectativa de um futuro da inteligência artificial (IA) mais acessível e econômico.
O modelo chinês, contudo, apresenta várias
vulnerabilidades, incluindo a não conformidade com as leis de proteção de dados
pessoais, o que gerou reações das autoridades mundo afora. A mais contundente
até o momento foi do governo australiano, que baniu o aplicativo de todos os
sistemas e dispositivos governamentais. Nos Estados Unidos,
organizações como Nasa,
Pentágono, Congresso e Marinha bloquearam o acesso ao DeepSeek-R1 e
desaconselharam seu uso devido a preocupações com segurança e privacidade.
No início de janeiro, o anúncio do CEO
da Meta, Mark
Zuckerberg, sobre o fim da checagem independente de fatos em Facebook, Instagram e Threads também
gerou reações intensas. No Brasil, o Ministério
Público Federal (MPF) e a Advocacia-Geral da União (AGU) se
manifestaram de imediato. Reconhecendo que a regulamentação é o principal
instrumento do Estado para proteger a sociedade, a maior parte das
manifestações aponta como solução a aprovação de projetos de lei como o PL
2630/2020 (conhecido como o “PL das Fake News”) e o PL 2338/2023, que trata do
desenvolvimento e uso da IA.
Embora seja evidente a necessidade de
regulamentação, criar leis para lidar com desafios tão complexos não é trivial.
Especialmente implementá-las e fiscalizá-las representa um custo excessivo para
o poder público. O Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR, na sigla em
inglês) na Europa, que entrou em vigor em 2018, ainda sofre com falta de
eficácia na maior parte dos países, e o Brasil enfrenta problemas similares com
a LGPD. No Artificial Intelligence Action Summit, realizado em 10 e 11 de
fevereiro em Paris, em relação à Lei de IA europeia as palavras de ordem das
autoridades foram “simplificar”, “ressincronizar com o resto do mundo” e
“implementar regras favoráveis aos negócios”.
A situação é ainda mais complexa pelo fato de
as grandes empresas de tecnologia americanas, as big techs, se configurarem
como principais “adversárias” do Estado nas iniciativas regulatórias. Elas
dominam a infraestrutura digital e oferecem serviços essenciais tanto para a
sociedade quanto para o próprio Estado. AWS (Amazon), Azure (Microsoft)
e Google Cloud
controlam quase 67% da computação em nuvem. Android (Google) e iOS (Apple) dominam o
mercado de sistemas operacionais para smartphones, enquanto o Chrome (Google)
detém 68% do mercado mundial de navegadores e o Safari (Apple), 17%. Além
disso, no primeiro semestre de 2024, a Meta captou 64% dos gastos globais com
anúncios em redes sociais. O domínio das big techs lhes confere o conhecimento
prévio das tendências e o poder para dirigi-las conforme seus interesses.
A natureza multifuncional das tecnologia
digitais, especialmente a IA, e a concentração de mercado sem precedentes
exigem abordagem criativa por parte do poder público e da sociedade. É
essencial combinar capital humano qualificado e diversificado com regulamentação
flexível e estruturas de governança eficazes. Além disso, o desafio requer
colaboração estreita entre a academia, instituições da sociedade civil,
associações setoriais, agências reguladoras e poder público em todos os níveis.
Igualmente importante são campanhas de letramento em IA, que abordem tanto o
funcionamento dessas tecnologias quanto seus potenciais danos.
O que se requer, acima de tudo, são
estratégias de Estado, e não apenas de governo.
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