segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

A ilusão de que regulamentar resolve tudo - Dora Kaufman

O Globo

Desafio requer colaboração estreita entre a academia, instituições da sociedade civil, associações setoriais, agências reguladoras e poder público

O aplicativo chinês DeepSeek-R1, lançado em 20 de janeiro, “abalou o mundo” pelos resultados comparáveis, ou até superiores, aos similares americanos mais avançados, aparentemente a um custo consideravelmente menor. Em poucos dias, assumiu a liderança entre os aplicativos mais bem avaliados e mais baixados na App Store, provocando, em 27 de janeiro, uma perda aproximada de US$ 1 trilhão no valor de mercado das grandes empresas de tecnologia americanas. A queda refletiu a expectativa de um futuro da inteligência artificial (IA) mais acessível e econômico.

O modelo chinês, contudo, apresenta várias vulnerabilidades, incluindo a não conformidade com as leis de proteção de dados pessoais, o que gerou reações das autoridades mundo afora. A mais contundente até o momento foi do governo australiano, que baniu o aplicativo de todos os sistemas e dispositivos governamentais. Nos Estados Unidos, organizações como Nasa, Pentágono, Congresso e Marinha bloquearam o acesso ao DeepSeek-R1 e desaconselharam seu uso devido a preocupações com segurança e privacidade.

No início de janeiro, o anúncio do CEO da MetaMark Zuckerberg, sobre o fim da checagem independente de fatos em FacebookInstagram e Threads também gerou reações intensas. No Brasil, o Ministério Público Federal (MPF) e a Advocacia-Geral da União (AGU) se manifestaram de imediato. Reconhecendo que a regulamentação é o principal instrumento do Estado para proteger a sociedade, a maior parte das manifestações aponta como solução a aprovação de projetos de lei como o PL 2630/2020 (conhecido como o “PL das Fake News”) e o PL 2338/2023, que trata do desenvolvimento e uso da IA.

Embora seja evidente a necessidade de regulamentação, criar leis para lidar com desafios tão complexos não é trivial. Especialmente implementá-las e fiscalizá-las representa um custo excessivo para o poder público. O Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR, na sigla em inglês) na Europa, que entrou em vigor em 2018, ainda sofre com falta de eficácia na maior parte dos países, e o Brasil enfrenta problemas similares com a LGPD. No Artificial Intelligence Action Summit, realizado em 10 e 11 de fevereiro em Paris, em relação à Lei de IA europeia as palavras de ordem das autoridades foram “simplificar”, “ressincronizar com o resto do mundo” e “implementar regras favoráveis aos negócios”.

A situação é ainda mais complexa pelo fato de as grandes empresas de tecnologia americanas, as big techs, se configurarem como principais “adversárias” do Estado nas iniciativas regulatórias. Elas dominam a infraestrutura digital e oferecem serviços essenciais tanto para a sociedade quanto para o próprio Estado. AWS (Amazon), Azure (Microsoft) e Google Cloud controlam quase 67% da computação em nuvem. Android (Google) e iOS (Apple) dominam o mercado de sistemas operacionais para smartphones, enquanto o Chrome (Google) detém 68% do mercado mundial de navegadores e o Safari (Apple), 17%. Além disso, no primeiro semestre de 2024, a Meta captou 64% dos gastos globais com anúncios em redes sociais. O domínio das big techs lhes confere o conhecimento prévio das tendências e o poder para dirigi-las conforme seus interesses.

A natureza multifuncional das tecnologia digitais, especialmente a IA, e a concentração de mercado sem precedentes exigem abordagem criativa por parte do poder público e da sociedade. É essencial combinar capital humano qualificado e diversificado com regulamentação flexível e estruturas de governança eficazes. Além disso, o desafio requer colaboração estreita entre a academia, instituições da sociedade civil, associações setoriais, agências reguladoras e poder público em todos os níveis. Igualmente importante são campanhas de letramento em IA, que abordem tanto o funcionamento dessas tecnologias quanto seus potenciais danos.

O que se requer, acima de tudo, são estratégias de Estado, e não apenas de governo.

 

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