O Globo
Trata-se de um padrão recorrente de
comportamento: o lucro é tudo, se pessoas sofrerem com isso, danem-se
Em 2021, Frances Haugen, uma executiva de médio escalão da Meta, demitiu-se com uma denúncia. A empresa, dizia ela, tinha plena consciência de que adolescentes vulneráveis eram expostos a conteúdo que os deixava em pior estado, tanto no Instagram quanto no Facebook. Falava de jovens que se automutilavam, em casos extremos eram levados ao suicídio. A companhia tinha noção disso, porém nada fazia. Mudar algo impactaria sua lucratividade. Em 2024, documentos internos vazados mostraram que a Meta tinha conhecimento de assédio sexual contra menores de idade. Cem mil vítimas de assédio. Por dia. Todos os dias. De novo, nada fez. Outra executiva, Sarah Wynn-Williams, afirmou neste ano, perante o Senado americano, que é praxe da Meta identificar quando jovens se sentem mais frágeis para ajudar anunciantes com “oportunidades de venda”. Na semana passada, houve novo vazamento. Desta vez, das diretrizes de “ética” da Meta para inteligência artificial. Ora, pois. Nenhuma surpresa ali.
O documento obtido pela Reuters trata de
padrões de comportamento que a empresa considera aceitáveis para seu bot de
inteligência artificial. Esse robô aparece no Face, no Insta e no WhatsApp,
personificado por um simpático e inofensivo ícone circular num degradê que vai
do rosa ao roxo. Ali, qualquer um pode fazer a pergunta que desejar. Segundo os
padrões da Meta, tudo bem que a IA “engaje uma criança em conversas românticas
ou sensuais” e que os bots não devem descrever crianças com menos de 13 anos
como sexualmente desejáveis. Sim, o corte para este tipo de descrição é 13
anos. O problema não está, evidentemente, apenas com menores. O bot tem
autorização para produzir informações médicas ou jurídicas falsas, desde que
informe que o dado pode estar errado. “Pode”. Permite ajudar racistas a
organizar um argumento de ataque a pessoas pela cor da pele ou religião, desde
que apresentando como hipótese. Todas as diretrizes foram aprovadas pelo setor
jurídico, pelo departamento de políticas públicas e por Chloé Bakalar, a
cientista política que ocupa o cargo de “Chief Ethicist”. C-Level. Altíssimo
escalão, que responde diretamente ao CEO Mark
Zuckerberg e tem por única missão determinar padrões éticos para o
trabalho.
Nem toda empresa do Vale do Silício é assim.
Quem procurar no histórico do Google, da Apple, da Microsoft, da Nvidia, das
companhias que ocupam o top 5 dos negócios com maior valor de mercado no mundo,
não encontrará uma folha corrida como a do outro nome da lista. A Meta. Porque
trata-se de folha corrida. A dona de Facebook, Instagram e WhatsApp não está
nem aí para gente em posição de vulnerabilidade. Se forem menores de idade, não
faz qualquer diferença.
Acidentes acontecem. Empresas muito grandes,
que operam tecnologias muito novas, derrapam toda hora. O caso da Meta é
distinto. Trata-se de um padrão recorrente de comportamento: o lucro é tudo, se
pessoas sofrerem com isso, danem-se.
Inteligência artificial é uma criação humana
incrível, que aumenta nosso potencial de um jeito formidável. É também muito
nova. Uma das características é que estes chats são muito convincentes. Nós,
seres humanos, não somos programados para conversar com algo que parece humano
em tudo — mas é artificial. A capacidade de persuasão emocional é imensa.
Parecem sentir, parecem ter humor, divertem. Mas não são conscientes. Não
pensam, portanto não têm a capacidade de perceber que existem. Que são. Imitam
o pensar, imitam o sentir, mas são calculadoras muito sofisticadas fazendo
conta. E, nessa, enganam quem estiver distraído. Iludem num simulacro de
companhia. O número de gente se apaixonando por IAs não é pequeno. Em janeiro
do ano passado, um menino de 14 anos cometeu suicídio, na Flórida, depois de
fazer um pacto de amor com Daenerys Targaryen, a rainha dos dragões da série
“Game of Thrones”, incorporada por uma IA. Esse caso nada tem a ver com a Meta.
Mas o menino tinha mais do que 13.
Enquanto isso, nos Estados Unidos e no
Brasil, parlamentares trumpistas e bolsonaristas se recusam até a cogitar
regular essas companhias, pois são contra censura. É mentira. É perfeitamente
possível criar regras que não afetem o direito de quem quiser escrever o que
desejar nas redes. Controlar o discurso não é o único jeito de regular.
Zuck, em sua versão agora trumpista, lamenta
a ausência de mais energia masculina no mundo. É o que tem falado. Seja lá o
que queira dizer com isso.
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