Massacres como os ocorridos em Manaus (AM) no primeiro dia do ano e, mais recentemente, na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (Pamc), em Boa Vista (RR) – desdobramento da guerra entre quadrilhas pelo controle do tráfico de drogas no Brasil –, embora não sejam surpreendentes pela ocorrência, são capazes de provocar reações de choque nos cidadãos pelo barbarismo dos métodos empregados na carnificina. Tudo ganha dimensão ainda mais dramática em tempos de compartilhamento de informações quase instantaneamente por intermédio de aplicativos para telefones celulares. O horror, outrora fruto da narrativa descritiva, hoje é amplificado pela crueza das imagens.
À perplexidade inicial, sucede a indignação pela absoluta sensação de abandono pelo Estado de uma das mais prementes questões a figurar no vasto rol de aflições do povo brasileiro: a segurança pública. Diante do descalabro que se observa na gestão do tema, é natural que a sociedade brasileira – exausta de tanto desamparo, medo e insegurança nas ruas – exija respostas à altura das afrontas à paz social e ao Estado Democrático de Direito. Mais do que isso, espera de todas as esferas de governo a apresentação de medidas concretas que possam pôr fim a uma sucessão de barbáries que, de tão persistentes, poderiam passar a integrar o calendário nacional.
A resposta oferecida de imediato pelas autoridades é insuficiente. O Plano Nacional de Segurança (PNS), tal como apresentado pelo governo federal em resposta aos anseios da sociedade, não passa de um enunciado de boas intenções. E mais do que isso não haveria de ser.
A Constituição da República consagra o federalismo como princípio, conferindo à União, aos Estados e aos municípios um conjunto de responsabilidades que, embora não dê às entidades federadas autonomia absoluta, a elas atribui um conjunto de responsabilidades específicas. A gestão da segurança pública é uma atribuição dos Estados. O governo federal, como representação da União, pode, no máximo – como diz o tal plano –, atuar como coordenador de um pacto federativo em torno de ações que visam à implementação de medidas conjuntas por todas as 27 unidades da Federação, entre elas a redução dos homicídios dolosos e crimes contra as mulheres, o combate integrado à criminalidade – envolvendo, inclusive, a parceria com outras Nações vizinhas – e a racionalização e modernização do sistema penitenciário. A coordenação das medidas, no entanto, não representa uma garantia de sua implementação e tampouco de sua eficácia. Por exemplo, basta os cidadãos de um município oporem-se – por meio de seus representantes eleitos – à construção de um presídio federal na cidade para que ali a unidade prisional não seja construída. Basta, também, que qualquer polícia local não dê às diretrizes do coordenador do plano a atenção devida para que o conjunto da obra fique comprometido.
No momento mesmo em que a criminalidade adquire uma dimensão transnacional, a ordem constitucional brasileira confere à vontade local o poder de travar toda e qualquer iniciativa que lhe aprouver no tocante à segurança pública. Neste sentido, um “plano nacional” de segurança é uma impossibilidade jurídica e fática. Para que se viabilize como tal, seria necessária uma profunda reforma constitucional que conferisse à União o poder de adotar as medidas nessa matéria. Essa é uma mudança que ao Congresso Nacional cabe discutir com seriedade. Se a União detém os recursos para viabilizar as ações de segurança nos Estados, a atribuição de implementá-las não pode ser prerrogativa exclusiva destes.
O arcabouço constitucional, neste e em outros aspectos, já não parece atender à realidade social, tanto do País como aquela decorrente de suas inserções no mundo integrado. Qualquer discussão mais profunda a respeito de segurança pública passa, necessariamente, pela reformulação do ordenamento jurídico de maneira a modernizar o sistema e dar ao Estado os meios de enfrentamento à altura dos desafios que a criminalidade moderna se lhe impõe. Isso é mais do que aumentar ou reduzir penas para aplacar o clamor público. É repensar, com seriedade e profundidade, a estrutura constitucional do Brasil.
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