• Político estava internado desde 13 de dezembro
Bernardo Tabak | O Globo
LISBOA — Talvez a principal maneira de se conhecer não só o legado de uma pessoa, mas também sua personalidade e caráter, seja apreender o que se disse dela, no que foi mais marcante e quais as palavras mais usadas para defini-la. No caso do português Mário Soares, impressiona a quantidade de vezes em que o citam como um dos principais defensores da democracia em Portugal. Um líder humanista que não hesitou na hora de se tornar um dos maiores combatentes, sem armas, contra a ditadura salazarista. Vigor que permaneceu durante toda a trajetória política, que o levou a ser eleito três vezes como primeiro-ministro e duas como presidente. Vitalidade com a qual, mesmo em idade avançada, quase meio século após triunfar sobre o regime militar, combateu as políticas de austeridade que ameaçavam ruir com o projeto europeu pelo qual lutou. Soares morreu neste sábado, aos 92 anos, no hospital da Cruz Vermelha de Lisboa, onde estava internado desde o dia 13 de dezembro.
O funeral está previsto para durar três dias. Nos dois primeiros, o corpo será exposto no Mosteiro dos Jerónimos, o Panteão Nacional, para onde será levado após sair de sua casa, com uma parada na Câmara Municipal de Lisboa. Como Soares era laico, não será velado em nenhuma capela, nem haverá missa de corpo presente.
No terceiro dia, será realizada uma cerimônia no próprio mosteiro com a presença da família, do presidente da República, do primeiro-ministro e do presidente da Assembleia. De lá, o cortejo segue para o Cemitério dos Prazeres, passando pelo Palácio de Belém, pela Fundação Mário Soares, pela Assembleia da República e pelo Largo do Rato, onde se encontra a sede do Partido Socialista.
Muitos dos que conviveram com Soares ressaltam a coragem e visão do líder português, um dos maiores defensores das políticas de bem-estar social, carinhosamente chamado pelos compatriotas de “Bochecha”. Como em 2014, na ocasião em que ele completou 90 anos e o jornal português “Público” apresentou 15 depoimentos sobre o primeiro premier eleito democraticamente no país após a Revolução dos Cravos, em 1974, e o primeiro presidente civil da então jovem democracia lusitana. Soares foi consenso tanto entre os simpatizantes, quando entre opositores.
— Um democrata indomável. A democracia é sua grande bandeira — afirmou Artur Santos Silva, amigo e presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. — Em relação às convicções do que deve ser a democracia, ninguém consegue domá-lo, condicioná-lo.
Soares completou 92 anos recentemente, em 7 de dezembro. Nascido em Lisboa, em 1924, casou-se jovem, aos 25 anos, em 1949, com Maria Barroso, mulher da vida toda. Formou-se primeiro em Ciências Histórico-Filosóficas, em 1951, e, depois, em Direito, em 1957 — exerceu as duas profissões, professor e advogado. Ainda estudante universitário, fez resistência ativa contra a ditadura portuguesa. Foi defensor de presos políticos e tornou-se um deles, sendo detido por 12 vezes, num total somado de quase três anos na cadeia. Sem julgamento, foi deportado para a Ilha de São Tomé, em 1968. E, em 1970, conseguiu permissão para se exilar na França.
Lutando o bom combate, em 1973, num congresso realizado em BadMünstereifel, na Alemanha, a Ação Socialista Portuguesa, que Soares fundou em 1964, transformou-se em Partido Socialista (PS), do qual foi eleito secretário-geral e sucessivamente reeleito no cargo ao longo de quase 13 anos.
— A palavra que define Mário Soares é coragem. Como no tempo da ditadura, que o levou à prisão e a ser deportado. Ou quando se apercebeu que o PS não podia ser o companheiro de rota do PCP (Partido Comunista Português) e teve coragem de liderar uma retomada do sentido democrático da revolução — enfatizou, ao “Público”, o jornalista Francisco Pinto Balsemão, um dos fundadores do Partido Social Democrata português, de oposição ao PS.
‘Liberdade, Europa e democracia’
Três dias após a Revolução dos Cravos, Mário Soares retornou do exílio na França, em 28 de abril de 74, chegando a Lisboa no chamado “comboio da liberdade” (comboio é como os trens são chamados em Portugal). Participou dos quatro primeiros governos provisórios e levou o PS à vitória na Assembleia Constituinte, em 1975.
— O Partido Socialista está junto do povo para assegurar o prosseguimento de uma política de esquerda, uma política progressista que conduza à construção de uma verdadeira sociedade socialista, e não de um capitalismo de Estado servido por um exército de burocratas e polícias, que denotam um imenso apetite de poder e de dinheiro — discursou, em julho de 75, num comício em Lisboa.
Soares oi nomeado premier do primeiro e segundo governos constitucionais (1976-77 e 78). Entre 1983 e 85, foi eleito novamente primeiro-ministro. Em 1986, tornou-se o primeiro presidente civil da redemocratização. Foi reeleito em 1991, no primeiro turno. Tornou-se um dos maiores defensores da integração europeia, elegendo-se eurodeputado para o mandato 1999-2004. Opôs-se às medidas de austeridade impostas pelo então governo de centro-direita português para equilibrar a economia do país, que recebeu recursos internacionais entre 2011 e 2014.
— É preciso acabar com essas aventuras do neoliberalismo, com essas roubalheiras. Quem efetivamente manda hoje são os mercados, não os Estados — criticou Soares em entrevista ao GLOBO, em 2011.
Após a morte da mulher, em julho de 2015, foi se retirando da vida pública. Visivelmente debilitado, foi homenageado em julho passado pelo atual governo socialista. Sua última aparição pública ocorreu em setembro, durante uma homenagem à sua falecida Maria Barroso.
— Soares se agarrou a três ou quatro ideias, fortíssimas, que são a liberdade, a Europa, a democracia. O melhor tripé de um grande projeto político — concluiu, no depoimento ao diário “Público”, a jornalista Maria João Avillez.
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