Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Muita coisa vem quebrando em consequência
de ações do governo para fragilizar nossa democracia e viabilizar uma ditadura
pessoal e violadora dos direitos políticos dos brasileiros
Não só a viola de conhecido cantor
sertanejo quebrou nestes últimos dias em consequência de bravatas
antidemocráticas e de ameaças explícitas contra as instituições. Faz novo
sentido a bela composição de Ary Kerner e do modernista Mário de Andrade “Viola
Quebrada”. Um clássico da música brasileira, que nasceu num momento em que a
música caipira era usurpada e transformada em música sertaneja, separada de
suas raízes sociais e históricas. Como agora, em que o país vem sendo separado
de si mesmo, de suas origens brasileiras e de suas possibilidades históricas.
Muita coisa vem quebrando em consequência de deliberadas ações no âmbito do governo e fora dele para fragilizar nossa democracia e viabilizar uma ditadura pessoal e violadora dos direitos políticos dos cidadãos brasileiros. Uma usurpação do que não pertence nem aos conspiradores nem aos seus bajuladores.
O que aconteceu com o fazendeiro e cantor
de música sertaneja é simbólico e significativo. Revela o poder das
contradições sociais e dos desacertos pessoais. O cantor, ao conclamar uma ação
violenta contra o STF, sofreu o que Edgar Morin define como efeito bumerangue
de ações envolvendo a massa. É inútil chorar arrependimento agora. O
bolsonarismo, e o presidente em particular, abocanha personalidades
disponíveis, civis e militares, mastiga-as e depois as cospe, como nessa
cuspida.
As revelações desse caso são as da história
oculta da hoje chamada música sertaneja que não é de fato música de raiz. É uma
história de larga usurpação da cultura dos desvalidos, que são as principais
personagens da história do Brasil. Começou lá atrás como uma história de pilhagens
culturais. Transformou-se, mas, na origem, é música identitária do homem
simples, o homem do trabalho. À medida que dela se apossaram os que são homens
do trabalho alheio, foi deixando de ser o que historicamente era.
A música caipira foi criação dos padres
jesuítas de São Paulo e difundida nos aldeamentos indígenas, já no século XVI,
situados nos arredores da vila de Piratininga. Mistura concepções culturais dos
índios do tronco linguístico tupi com o catolicismo europeu.
Um documento desse consórcio é a dança de
Santa Cruz, criação jesuítica, ainda há poucos anos cantada e dançada na Aldeia
de Carapicuíba. Dela há uma bela gravação cantada pelo Coral da USP e pela
cantora Carmem Costa. É a conversão da dança indígena do cururu (sapo, em tupi;
cruz em sotaque nheengatu) em dança da Santa Cruz. O que o antropólogo
Bronislaw Malinowski define como “fator comum na mudança cultural”: introdução
na cultura do dominado da cultura do dominador.
No século XIX já era música de escravos
mulatos fugidos, que, nos anúncios de jornais, eram identificados como
violeiros, um defeito de caráter. Ainda, portanto, música dos desvalidos de uma
sociedade escravista.
Quando, no fim do escravismo e começo da
República, se pôs o problema de uma identidade nacional brasileira alternativa
para a identidade de uma república sem povo e sem história própria, como seria
a nossa, resultante do golpe militar de 15 de novembro de 1889 (até a primeira
bandeira era cópia verde-amarela da bandeira americana), a música caipira
emergiu como símbolo de nossa identidade.
Em 1887, um violeiro fluminense, Pedro Vaz,
homem simples, primo do poeta Fagundes Varela, é apresentado, pelo também poeta
Ezequiel Freire, no palco de um teatro da cidade de São Paulo. Ele tocava
modinhas, lundus e cateretês, estes de dança indígena ritual. A viola e a
música caipira eram reinterpretadas como instrumento e expressão de uma
identidade brasileira, popular, rústica, mestiça.
Nos anos 1920, Cornélio Pires, inspirado na
musicalidade caipira, inventou a música sertaneja. Sua “Moda do Bonde Camarão”,
de 1929, alusiva aos bondes comprados nos EUA, usados, recolhe da cultura
caipira a ironia desconstrutiva, a crítica conservadora à modernidade postiça
de um capitalismo de alguns, imposto à maioria.
Com a ditadura militar de 1964 e a expansão
da fronteira econômica, à base de incentivos fiscais à ocupação expropriadora,
violenta e rentista, de amplos territórios de indígenas e de camponeses, surge
uma classe social de arrivistas ricos em busca de uma cultura de afirmação identitária
autoindulgente de donos do Brasil.
A usurpação cultural da música sertaneja é
o último episódio de uma ampla expropriação das populações pobres do campo e
sua redução a excluídos completos de sem-pátria.
A queda recente do cantor sertanejo que se
tornou personagem dos episódios que no último meio século mostraram que a
voracidade de terra, de capital, é também voracidade de poder. Mas a queda
indica-lhe os limites da política: o que quer derrubar cai antes.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “No Limiar da Noite” (Ateliê, 2021).
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