O Estado de S. Paulo
O militarismo é o mais nocivo e cruel dos regimes, demonstram as experiências conhecidas
O título é tomado de empréstimo do livro
escrito pelo brasilianista Alfred Stepan, cuja leitura é necessária para quem
deseja começar a entender o papel desempenhado pelas Forças Armadas em nossa
História (Artenova, SP, 1975). O Brasil não tem inimigos externos. Inexiste o
perigo de sermos atacados e invadidos por algum vizinho, interessado em nos
submeter pelas armas.
Por outro lado, o imperialismo colonialista
das grandes potências arrefeceu, vencido por problemas internos, ou cedeu
espaço a políticas de dominação de mercados secundários com pacíficos produtos
industrializados. Nesse aspecto devemos temer a China, o Japão, a Coreia do
Sul, Cingapura e Tailândia, que avançam sobre o Brasil, tirando vantagem do
nosso atraso, fruto da corrupção, da incompetência e da indolência, que nos
impedem de progredir nas esferas da educação, das pesquisas e do
desenvolvimento.
Dentro desse cenário, qual o papel reservado pela Constituição federal às Forças Armadas? Excluídas malogradas tentativas de invasão pelos franceses e holandeses à época do Brasil colônia, uma única guerra travamos contra o pequeno Paraguai (18641870), cujos resultados são conhecidos. A campanha da Força Expedicionário Brasileira (FEB) na Itália, nos derradeiros meses da 2.ª Guerra Mundial (1939-1945), cobriu-se de heroísmo, mas revelou a deficiência de treinamento, de armamento e de preparo psicológico da reduzida força sob o comando do general Mascarenhas de Morais. Quem quiser saber mais, consultará A Verdade sobre a FEB, livro escrito pelo marechal Floriano de Lima Brayner, chefe do EstadoMaior no teatro italiano de operações (Civilização Brasileira, RJ, 1968).
O governo do presidente Jair Bolsonaro
ressuscitou o fenômeno do militarismo, que se esperava superado após a
promulgação da Constituição de 1988. A partir da posse de Sua Excelência no
Palácio do Planalto, milhares de militares da ativa e da reserva foram
convocados para ocupar cargos reservados aos civis. Os ventos parecem avisar
que o capitão paraquedista planeja implantar regime militarista.
Na lição de Gianfranco Pasquino, entende-se
por militarismo “vasto conjunto de hábitos, ações e pensamentos associados com
o uso de armas e com a guerra, mas que transcende os objetivos puramente
militares. (...) Ele visa objetivos ilimitados; objetiva penetrar em toda a
sociedade, impregnar a indústria e a arte, conferir às forças armadas
superioridade sobre o Governo; rejeita a forma científica e racional de efetuar
a tomada de decisões e ostenta atitudes de casta, de culto, de autoridade e de
fé” (Dicionário de Política, Norberto Bobbio, Nicola Matteucci, Gianfranco
Pasquino – UNB, Brasília, DF, 5.ª edição, 1993, volume 2, página 748).
O militarismo é o mais nocivo e cruel dos
regimes. As experiências conhecidas assim o demonstram. Um dos mais criminosos
regimes militaristas fez de vítima o povo argentino. Teve início com o golpe de
1976, deflagrado por Junta Militar que indicou o general Jorge Rafael Videla
para governar, após derrubar a presidente Isabelita Perón. Seguiram-se, na
Presidência, os generais Roberto Viola, Leopoldo Galtieri e Reynaldo Bignone. O
terrorismo do estado teria executado cerca de 30 mil oposicionistas e criado
centenas de campos de concentração. Foi em abril de 1982, durante o governo
Galtieri, que a Argentina invadiu as Ilhas Malvinas, para ser derrotada em 40
dias pela Inglaterra.
“A participação das Forças Armadas na vida
política dos países da América Latina, África e Ásia se constituiu numa rotina.
Quase diariamente abrimos os jornais para ler o mesmo tipo de notícias,
variando somente os lugares de onde provêm. Já se chegou ao exagero de dizer
que a história das nações subdesenvolvidas será a história das revoltas
militares.” A frase é de Vicente Barreto, no artigo A Presença Militarista
(Cadernos Brasileiros, Os Militares, Rio de Janeiro, novembro/dezembro de
1966).
A restauração democrática em 1985 prometia
longo período de liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e
justiça, como está escrito no preâmbulo da Constituição. Infelizmente, as
coisas não se passaram assim. Após dois presidentes da República cassados e um
condenado em segundo grau de jurisdição, o presidente Jair Bolsonaro, obcecado
pela reeleição, em vez de desenvolvimento, paz e tranquilidade, nos proporciona
dias marcados por graves preocupações.
O ministro da Defesa, Braga Netto, e os
comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica devem se conservar em
respeitoso silêncio perante a Constituição. Cometem crime contra a segurança
nacional quando ameaçam impedir as eleições de 2022. As armas de que dispõem,
adquiridas com recursos do Tesouro Nacional, não se podem voltar contra o povo
pacífico e indefeso.
A propósito da tragédia que vitimou a
vizinha nação argentina, assinalo que, com o fim do militarismo, os generais
Videla, Viola, Galtieri, Bignone, foram processados e condenados por crimes
contra a humanidade. Videla e Bignone, à prisão perpétua.
*Advogado, foi ministro do Trabalho e
presidente do Tribunal Superior do Trabalho
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