O Globo
O “Projeto de nação, o Brasil em 2035” — do
Instituto General Villas Bôas — prevê o pagamento pelo uso do SUS a partir de
2025. Seu coordenador é o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, ex-presidente da
ONG Terrorismo Nunca Mais, criada pelo coronel Brilhante Ustra. O objetivo
seria entregar um país melhor para a posteridade, porém mandando a conta da
saúde para os mais pobres.
Na ditadura, os militares reforçaram um
modelo de atenção à saúde excludente. A estrutura do Ministério da Saúde era
baseada em “campanhas” de combate às endemias: febre amarela, malária, Chagas
etc. A assistência médica era prestada aos trabalhadores urbanos por intermédio
da Previdência Social; aos não empregados ou sem carteira de trabalho, pela
filantropia (as Santas Casas). O serviço de emergência era às vezes oferecido
por hospitais estaduais e municipais. Em meados dos anos 1970, o Instituto
Nacional de Previdência Social (INPS) passou por sucessivas reformas, tendo
sido criado o Inamps para a assistência médica dos segurados da Previdência.
No início dos anos 1980, a maior parte da população brasileira, 119 milhões, não tinha direito à assistência médica, e os que tinham acesso, via Previdência, eram atendidos por clínicas privadas contratadas sem qualquer controle. Em 1976, 96% das verbas para a saúde dos brasileiros foram para o setor privado.
A Previdência entrou em crise no início da
década de 1980, e o governo militar, que já estava colapsando, se viu compelido
a criar um plano de transformação. Surgiu então o Conselho Consultivo de
Administração de Saúde Previdenciária (Conasp), um órgão colegiado que envolveu
a participação de diversas entidades: órgãos do governo, sindicatos,
associações médicas etc., com vista a elaborar um plano dirigido a reorganizar
a assistência e conter as perdas. Com tanto dinheiro circulando no setor
privado, o tema saúde vivia nas páginas policiais. O próprio SNI apontou num
informe casos de corrupção na Superintendência do Rio de Janeiro.
Internações e atendimentos-fantasmas eram
comuns. O setor privado abusava do comércio de sangue humano. Um negócio que
envolvia moradores de rua, médicos inescrupulosos, políticos e multinacionais.
Os bancos de sangue eram os maiores agentes de contaminação de aids no país.
As farmácias brasileiras comercializavam
mais de 20 mil remédios baseados em 2.100 princípios ativos. Antes da Anvisa,
apenas oito funcionários de uma repartição do Ministério da Saúde controlavam o
setor. A criação da Central de Medicamentos foi importante para o
desenvolvimento de laboratórios públicos. Mas esse modelo esbarrava em fortes
interesses do setor privado. Logo as pressões políticas foram corroendo os
objetivos da Central, que acabou não conseguindo cumprir sua missão.
O embrião do SUS nasceu da crise do Inamps
dos anos 1980, quando começaram a ser financiadas experiências bem-sucedidas em
diversos municípios brasileiros: Campinas, Florianópolis, Niterói etc. Aos
poucos, muitos brasileiros começaram a ter assistência básica. O sucesso desse
modelo foi responsável pelo surgimento de um amplo movimento, em que diferentes
segmentos profissionais foram abraçando a ideia do direito à saúde. Essa onda
era reforçada pelo retorno da democracia.
Uma demonstração do engajamento da
sociedade pelos seus direitos foi o surpreendente fluxo de participantes da 8ª
Conferência de Saúde, em 1986, o berço institucional do SUS.
Hoje, com todos os problemas, qualquer
cidadão pode conseguir um transplante de órgão, uma complexa operação
neurológica ou receber um atendimento básico. Mas o SUS corre o risco de
colapsar, pois, ao longo da pandemia, muitos procedimentos não foram
realizados. As previsões para 2023 não são boas, mas a ideia de que deva
existir uma medicina pobre para os pobres ficou lá atrás.
*Pesquisador associado da Fiocruz, foi diretor do Instituto Nacional de Câncer
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