Valor Econômico
Poucos foram os dirigentes na história que
tiveram de arcar com um encargo moral mais pesado do que os dirigentes de hoje
As relações entre os EUA e a China
provavelmente determinarão o destino da humanidade no século XXI. Determinarão
se haverá paz, prosperidade e proteção do meio ambiente do planeta ou se haverá
o oposto. Se for esse último, os historiadores futuros (se de fato existir
algum) certamente ficarão surpresos com a incapacidade da espécie humana de se
proteger de sua própria estupidez. Mas hoje, felizmente, ainda estamos em
condições de agir para evitar a catástrofe. Isso se confirma em muitas esferas.
Entre elas está a econômica. Qual será então a melhor maneira de administrar as
relações econômicas no futuro cada vez mais difícil com o qual nos defrontamos?
Janet Yellen, secretária do Tesouro dos EUA, e Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, fizeram recentemente declarações criteriosas sobre essa questão. Mas será que elas delineiam um futuro factível? Quanto a isso, infelizmente, tenho minhas dúvidas.
Yellen especifica um plano para o que ela
qualifica de “compromisso construtivo”. Tem três elementos: primeiro, “garantir
nossos interesses de segurança nacional e os dos nossos aliados e parceiros,
e... proteger os direitos humanos”; segundo, “buscar uma relação econômica saudável”,
baseada na competição “leal”; e, terceiro, “buscar a cooperação em torno dos
desafios globais urgentes do nosso tempo”.
Ao discorrer sobre o primeiro ponto, ela
sustenta que “as medidas de segurança nacional [dos EUA] não visam garantir que
ganhemos uma vantagem econômica competitiva ou que sufoquemos a modernização
econômica e tecnológica da China”. Mas a dificuldade é que isso está longe de
refletir o modo de pensar dominante na China, como constatei durante minha
breve estada recente em Pequim.
A fala de Yellen sobre o elemento essencial
de segurança enfatiza o quanto ele é problemático. Ela destaca, por exemplo, a
preocupação dos EUA com a parceria “sem limites” e o apoio à Rússia por parte
da China, e alerta o país asiático contra prover apoio material à Rússia ou
ajudá-la a fugir às sanções. Ela enfatiza também as preocupações dos EUA no
campo dos direitos humanos, entre os quais as que os chineses encaram como
questões puramente internas.
Apesar dessas preocupações, ela afirma que
“não procuramos ‘descolar’ nossa economia da China”. Pelo contrário, uma “China
em crescimento, que respeita as regras do jogo, pode ser benéfica para os EUA”.
Afinal, nos recorda ela, os EUA têm maior comércio com a China do que com
qualquer outro país, com exceção de Canadá e México.
No entanto, acrescenta, os EUA se opõem a
muitas práticas comerciais “desleais” da China e continuarão a “tomar medidas
coordenadas com nossos aliados e parceiros em reação [a elas]”. As medidas na
área das cadeias de suprimentos, entre as quais a “terceirização [da produção]
para países amigos”, é um dos resultados disso.
A abordagem de Von der Leyen é complementar.
Ela também afirma que “o descolamento é, evidentemente, uma coisa não viável,
não desejável ou mesmo não prática para a Europa”. Mas a China, argumenta ela,
“virou agora a página da era da ‘reforma e abertura’ e caminha para uma nova
era de ‘segurança e controle’”. O foco de Von der Leyen, em muito semelhante ao
dos EUA, está em “eliminar o risco” da relação. Uma das maneiras de fazer isso
é retirar as vulnerabilidades e preservar a autonomia estratégica. Como no caso
dos EUA, isso envolve investimentos estratégicos em determinados setores-chave.
Outra maneira passa pelo uso ativo dos
instrumentos de defesa do comércio. Um terceiro é inventar novos instrumentos
para garantir que o capital e o conhecimento das empresas europeias “não sejam
usados para ampliar o potencial militar e de inteligência daqueles que são,
também, nossos rivais sistêmicos”. Isso poderia incluir a criação de controles
sobre os investimentos voltados para o exterior. Uma última maneira é
aprofundar a cooperação com os parceiros.
No livro recente, notadamente pessimista,
“The avoidable war”, Kevin Rudd, ex-premiê da Austrália, argumenta em favor do
que chama de “competição estratégica administrada” entre os EUA e a China de Xi
Jinping. Yellen e Von der Leyen, pode-se argumentar, teriam detalhado os
elementos econômicos desse enfoque.
Se for assim, é pouco provável que
funcione. Esforços unilaterais envidados por um dos lados para se sentir mais
seguro certamente fazem com que o outro lado se sinta mais inseguro. Isso,
evidentemente, se confirma na área de segurança, em sentido restrito. Quando um
dos lados lidera em uma tecnologia fundamental, o outro ficará vulnerável. Mas
também se confirma na economia. A recusa em vender tecnologias ou recursos
naturais estrategicamente vitais - ou mesmo a possibilidade de isso ocorrer em
algum momento no futuro - fará com que o outro lado se sinta inseguro
economicamente.
De fato, ficou claro em Pequim que os
chineses bem-informados acreditam que os EUA pretendem, realmente, coibir sua
ascensão econômica. Os controles dos EUA sobre as exportações de chips podem
visar fortalecer a segurança dos EUA. Mas eles ao mesmo tempo coíbem a economia
chinesa. As duas coisas não podem ser separadas.
Esse conflito tampouco tende a se atenuar.
Medidas em termos comparáveis (em “paridade do poder de compra, PPC”), as
economias dos EUA e seus aliados continuam cerca de 80% maiores que as de China
e Rússia juntas. Mas a China ainda é um país pobre: em PPC, o Produto Interno
Bruto (PIB) per capita da China em 2022 ainda correspondia a menos de 30% do
dos EUA. Suponhamos que ela consiga alcançar a atual posição relativa da Coreia
do sul. Sua economia equivaleria, então, a quase 50% das economias dos EUA e
União Europeia (UE), somadas. Será que isso vai acontecer? Provavelmente, não.
Mas, em vista do desempenho passado, essa possibilidade não pode ser
descartada. Seja como for, a China já tem uma economia forte, um grande peso no
comércio mundial e um enorme poderio militar.
A era do confronto estratégico em que
ingressamos é apavorante. Isso é verdadeiro especialmente no caso dos que,
entre nós, querem que os ideais de liberdade individual e de democracia
floresçam, ao mesmo tempo que querem cooperar com a China tanto na sustentação
da paz e da prosperidade quanto na proteção do nosso querido planeta.
De alguma maneira, temos de cooperar e de
competir, evitando, ao mesmo tempo, o conflito militar. Nosso ponto de partida
tem de ser alcançar a maior transparência possível em torno de nossos
propósitos e planos. Aprendemos a necessidade disso após a crise dos mísseis de
Cuba, em 1962. Mas precisaremos de muito mais do que isso e, provavelmente, por
um tempo maior. Poucos foram os dirigentes na história que tiveram de arcar com
um encargo moral mais pesado do que os dirigentes de hoje. (Tradução de Rachel Warszawski)
*Martin Wolf é editor e principal analista econômico do Financial Time
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